18/05/2024 - Edição 540

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Relatores da ONU citam ‘genocídio em formação’: um a cada 57 palestinos já foi morto ou ferido

Brasileiros que saíram de Gaza são ameaçados agora no país e pedem proteção

Publicado em 16/11/2023 12:10 - Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Foto: AP Photo/Abed Khaled

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Em declaração emitida nesta quinta-feira (16), mais de duas dezenas de relatores de direitos humanos da ONU afirmam que as graves violações cometidas por Israel contra os palestinos após 7 de outubro, especialmente em Gaza, “apontam para um genocídio em formação”.

Eles citaram o que seriam evidências do aumento do “incitamento genocida”, da intenção evidente de “destruir o povo palestino sob ocupação”, dos apelos em voz alta por uma “segunda Nakba” em Gaza e no restante do território palestino ocupado e do uso de armamentos poderosos com impactos inerentemente indiscriminados, resultando em um número colossal de mortes e na destruição da infraestrutura de sustentação da vida.

“Muitos de nós já alertamos sobre o risco de genocídio em Gaza”, disseram os especialistas.

Estamos profundamente perturbados pelo fato de os governos não terem atendido ao nosso apelo e não terem conseguido um cessar-fogo imediato. Também estamos profundamente preocupados com o apoio de certos governos à estratégia de guerra de Israel contra a população sitiada de Gaza e com o fracasso do sistema internacional em se mobilizar para evitar o genocídio.

Entre os relatores estão nomes como Francesca Albanese, Margaret Satterthwaite, Dorothy Estrada Tanck, Claudia Flores, Ivana Krsti, Haina Lu, Mary Lawlor e Irene Khan.

“Estamos profundamente angustiados com o fracasso de Israel em concordar com um cessar-fogo imediato — e com a falta de vontade da comunidade internacional em pressionar de forma mais decisiva por ele”, afirmam. “Se não for implementado um cessar-fogo com urgência, a situação poderá se transformar em um genocídio conduzido com meios e métodos de guerra do século XXI.”

Eles também falaram em “retórica genocida” e “desumanizadora” de altos funcionários do governo israelense, bem como de alguns grupos profissionais e figuras públicas, que pedem a “destruição total” e o “apagamento” de Gaza, a necessidade de “acabar com todos eles” e forçar os palestinos da Cisjordânia e do leste de Jerusalém a irem para a Jordânia.

Os especialistas afirmaram que Israel demonstrou ter a capacidade militar para implementar tais intenções criminosas. “É por isso que nosso alerta antecipado não deve ser ignorado”, disseram.

Eles pediram uma ação imediata dos Estados membros da ONU e do sistema da ONU como um todo.

A comunidade internacional, incluindo não apenas os Estados, mas também os atores não estatais, como as empresas, deve fazer tudo o que puder para acabar imediatamente com o risco de genocídio contra o povo palestino e, em última instância, acabar com o apartheid israelense e a ocupação do território palestino.

Dados

Segundo os especialistas, o bombardeio e o cerco a Gaza supostamente mataram mais de 11.000 pessoas, feriram mais de 27.000 e deslocaram 1,6 milhão de pessoas desde 7 de outubro — enquanto milhares ainda estão sob os escombros.

“Dos mortos, cerca de 41% são crianças e 25% são mulheres. Em média, uma criança é morta e duas são feridas a cada 10 minutos durante a guerra, transformando Gaza em um ‘cemitério de crianças'”, de acordo com o secretário-geral da ONU.

Quase 200 médicos, 102 funcionários da ONU, 41 jornalistas, defensores da linha de frente e dos direitos humanos também foram mortos, enquanto dezenas de famílias de cinco gerações foram dizimadas, de acordo com a entidade.

“Isso ocorre em meio ao endurecimento do bloqueio ilegal de Gaza por Israel, que já dura 16 anos e impede que as pessoas fujam e as deixa sem comida, água, remédios e combustível há semanas, apesar dos apelos internacionais para que seja fornecido acesso à ajuda humanitária essencial. Como dissemos anteriormente, a fome intencional equivale a um crime de guerra”, disseram os especialistas.

Eles observaram que metade da infraestrutura civil em Gaza foi destruída, incluindo mais de 40.000 unidades habitacionais, bem como hospitais, escolas, mesquitas, padarias, tubulações de água, redes de esgoto e eletricidade, de uma forma que ameaça tornar impossível a continuidade da vida palestina na região.

Essas violações flagrantes não podem ser justificadas em nome da autodefesa após os ataques do Hamas em 7 de outubro, que condenamos da forma mais veemente possível.

“Para ser legítima, a resposta de Israel deve estar estritamente dentro da estrutura da lei humanitária internacional”, disseram os especialistas da ONU.

Segundo eles, a presença de túneis subterrâneos em partes de Gaza não elimina o status civil de indivíduos e infraestruturas que não podem ser alvos diretos nem sofrer desproporcionalmente.

Um a cada 57 palestinos já foi morto ou ferido

O chefe de direitos humanos da ONU, Volker Turk, apresentou hoje (16) o informe mais duro sobre a situação em Gaza até agora tornado público e pediu que a resolução aprovada pelo Conselho de Segurança — que estabelece uma pausa humanitária — seja “imediatamente implementada”.

Segundo ele, os ataques sobre Gaza ocorrem em uma intensidade raramente vista neste século e um de cada 57 palestinos já foi morto ou ferido. “Nos poucos hospitais que ainda funcionam, os médicos operam crianças que gritam sem anestesia, usando telefones celulares como luz”, alertou.

Falando aos governos de todo o mundo numa reunião extraordinária, Turk pediu:

– Uma investigação internacional sobre os crimes cometidos em Gaza.

– O fim da ocupação dos territórios palestinos por Israel.

– A implementação da resolução do Conselho de Segurança da ONU aprovado ontem — e que prevê uma pausa humanitária.

Para a ONU, a resolução do Conselho de Segurança é “necessária” e precisa ser “imediatamente implementada”. Mas, pelo sistema internacional, não existe uma forma de obrigar um governo a cumprir o que diz o documento.

O chefe da instituição defendeu uma “assistência humanitária rápida e desimpedida em toda a Faixa de Gaza”. “É preciso pôr fim às graves violações dos direitos humanos, principalmente contra as crianças. Todas as formas de punição coletiva devem chegar ao fim. Todos os reféns devem ser libertados”, disse Volker Turk.

“Deve haver um cessar-fogo por motivos humanitários e de direitos humanos e o fim dos combates – não apenas para fornecer alimentos e água urgentemente necessários, mas para criar o espaço para uma saída desse horror”, disse Turk.

Troca de acusações e reunião sob alta tensão

A reunião foi tomada por uma troca de acusações entre governos e a ONU. O governo de Benjamin Netanyahu anunciou que não irá aceitar nem as críticas e nem os apelos internacionais, num sinal de que não pretende cumprir a resolução do Conselho de Segurança.

“O que Israel deve fazer então? O que eu ouço é que nada pode ser feito. Deixe os terroristas vencerem. Isso não faremos. Vamos lutar contra o Hamas e vamos vencer. Vamos trazer os reféns de volta para casa e levaremos os autores disso à Justiça”, afirmou Meirav Eilon Shahar, embaixadora israelense.

O governo Netanyahu criticou Turk e disse que “não se pode fazer uma equivalência moral entre Israel e Hamas”. Para os israelenses, há uma tentativa deliberada de se reescrever o direito internacional. “Não vamos deixar Israel ser deslegitimado”, insistiu Meirav Eilon Shahar.

O governo palestino reagiu. “Acordem”, disse Ibrahim Mohammad Khraishi, embaixador palestino na ONU em discurso aos demais governos. “Isso é um genocídio”, afirmou.

Para ele, é lamentável que Israel tenha já anunciado que não irá cumprir a resolução do Conselho de Segurança. O palestino acusou o governo Netanyahu de “bater recorde de mentiras”.

“Vocês todos ficaram cegos. Cegos por defender Israel”, acusa Ibrahim Mohammad Khraishi, embaixador palestino.

Já o governo americano afirmou que o Hamas usa hospitais como base militares.

Testemunho de chefe da ONU

Turk, usou o encontro para descrever o que viu na região — apesar de não ter sido autorizado por Israel a entrar em Gaza. Ele disse que ficou “impressionado com os ferimentos horríveis de muitos pacientes no hospital de El Arish, incluindo várias crianças”.

“Também ouvi vários israelenses falarem sobre sua angústia, incluindo famílias de crianças e adultos sequestrados pelo Hamas e outros grupos armados palestinos.

Poucas vezes ouvi um testemunho tão perturbador sobre os danos catastróficos que as pessoas comuns sofreram e que continuam a aumentar. E nunca, em minha carreira de trabalho em muitas situações de crise em todo o mundo, encontrei tamanha manifestação de medo, raiva e desespero.

O povo de Gaza, que há anos vive profundamente empobrecido atrás de cercas de arame farpado, está sofrendo bombardeios das Forças de Segurança de Israel de uma intensidade raramente experimentada neste século.

Uma em cada 57 pessoas que vivem na faixa de Gaza foi morta ou ferida nas últimas cinco semanas. Mais de 11.100 pessoas foram mortas, das quais mais de 4.600 eram crianças. 102 dos mortos eram membros da equipe da ONU: pessoas cujo único objetivo é prestar assistência a civis.

A morte de tantos civis não pode ser descartada como dano colateral. Não em um kibutz. Não em um campo de refugiados. E não em um hospital”, afirmou Volker Turk.

De acordo com ele, mais de 26.000 pessoas foram feridas, muitas delas gravemente. E presume-se que pelo menos mais 2.000 pessoas estejam presas sob os escombros, onde não há capacidade de alcançá-las ou resgatá-las. “Uma população inteira está sendo profundamente traumatizada”, afirmou.

Turk destacou ainda a violência do Hamas contra Israel. “A nação ficou em estado de choque”, disse.

Ele criticou o fato de que, de ambos os lados, alguns consideram a morte de civis como um dano colateral aceitável ou como uma arma de guerra deliberada e útil. “Essa é uma catástrofe humanitária e de direitos humanos. Ela representa um colapso do respeito mais básico pelos valores humanos”, disse.

De acordo com a ONU, nos poucos hospitais que ainda funcionam, os médicos operam crianças que gritam sem anestesia, usando telefones celulares como luz.

A OMS registrou pelo menos 137 ataques a serviços de saúde em Gaza, com impacto especialmente grave no Hospital Al-Shifa nos últimos dias, onde recém-nascidos com suporte de vida estão morrendo devido a cortes de energia, oxigênio e água, enquanto muitos outros pacientes de todas as idades estão em risco — assim como médicos e pessoas que se abrigam no terreno do hospital.

Para Turk, a lei humanitária internacional exige proteção especial para as unidades médicas em todos os momentos, para que elas possam continuar seu trabalho de salvar vidas.

O esgotamento total dos suprimentos de combustível é iminente, de acordo com a equipe de direitos humanos da ONU, e seria catastrófico em toda a Faixa de Gaza, levando ao colapso total dos serviços de água, esgoto e saúde essenciais, e acabando com a assistência humanitária que tem sido permitida até o momento. Surtos maciços de doenças infecciosas e fome parecem inevitáveis.

ONU rejeita ‘zona segura’ proposta por Israel

Em seu discurso, Turk apontou que as propostas atuais de Israel para criar “zonas seguras” são “insustentáveis”. “A zona não é segura nem viável para o número de pessoas necessitadas.”

Ele também insistiu que “ninguém está acima da lei e o direito internacional humanitário é claro”. Segundo a ONU, as partes envolvidas em qualquer conflito devem, em todos os momentos, distinguir entre civis e combatentes e entre objetos civis e objetivos militares.

Turk listou crimes:

– Ataques direcionados a civis ou a objetos civis protegidos — hospitais, escolas e mercados e padarias que constituem uma linha de vida — são proibidos.

– Ataques indiscriminados são proibidos — por exemplo, apontar projéteis indiscriminados para o sul de Israel.

– Ataques em que a probabilidade de morte de civis e de danos a objetos protegidos seja desproporcional à vantagem militar concreta e direta — como o risco constante do uso de armas explosivas por Israel com efeito de área ampla em áreas densamente povoadas de Gaza — também são proibidos.

– O deslocamento forçado é proibido.

– A tomada e a manutenção de reféns são proibidas, assim como qualquer uso de civis para proteger locais de operações militares.

– A punição coletiva, como no caso do bloqueio e do cerco imposto por Israel a Gaza, é proibida.

ONU defende investigação

Para a ONU, investigações internacionais precisam ocorrer. “Alegações extremamente graves de violações múltiplas e profundas do direito internacional humanitário, independentemente de quem as cometa, exigem investigação rigorosa e total responsabilização”, defendeu Turk.

Quando as autoridades nacionais não quiserem ou não puderem realizar essas investigações, e quando houver narrativas contestadas sobre incidentes particularmente significativos, será necessária uma investigação internacional. (…) E deve ficar claro que as violações do direito humanitário internacional — até mesmo os crimes de guerra — cometidas por uma das partes não isentam a outra de cumprir os princípios claros do direito de guerra.

Turk destacou como “todo conflito que foi resolvido de forma duradoura alcançou essa resolução por meio do avanço da justiça, da responsabilidade e dos direitos humanos”. Para ele, a responsabilização pelos crimes é “chave”.

Hoje, tanto entre israelenses quanto entre palestinos, estão surgindo narrativas totalmente distintas, paralelas umas às outras e sem nenhuma conexão entre elas. Traumas históricos profundos foram revividos. Peço a todos que reconheçam e reconheçam essa profundidade da dor, a realidade da humanidade e o sofrimento do outro.

“Não podemos perder o controle da realidade para o mito de que a dor pode ser erradicada ao ser lançada em um bode expiatório. Devemos insistir na verdade”, pediu.

Fim de ocupação de Israel

Para a ONU, apenas o fim da ocupação de Israel pode abrir caminho para uma solução. “É essencial garantir os direitos dos palestinos à autodeterminação e ao seu próprio Estado. E é essencial reconhecer que Israel tem o direito de existir”, declarou Turk.

“Quem pode vencer uma guerra em que tantas crianças foram mortas? Somente o extremismo. O extremismo que continuará a triturar os corpos e o futuro das crianças de ambos os lados — palestinos e israelenses — e dos filhos de seus filhos, até que seu futuro seja apenas desespero e derramamento de sangue”, disse.

Segundo ele, a liberdade dos israelenses está intrinsecamente ligada à liberdade dos palestinos. “Palestinos e israelenses são a única esperança de paz um do outro”, completou.

Brasileiros que saíram de Gaza são ameaçados agora no país e pedem proteção

Depois de fugir de bombas, da falta de alimentos, da morte e do medo, os brasileiros que conseguiram sair da Faixa de Gaza agora são ameaçados no Brasil. Um deles é Hasan Rabee e sua família, que optaram nesta semana por fazer um pedido oficial de proteção ao estado brasileiro.

“Saímos da guerra para nos sentir seguros em nosso país, e agora aqui não conseguimos ter segurança, xenofobia, ameaças”, disse Hasan Rabee, um dos 32 moradores de Gaza que chegaram ao Brasil nesta semana. “Da violência física da guerra para outras violências”, lamentou.

Ao UOL, antes de sair do Oriente Médio, ele havia dito que só tinha um plano ao sair de Gaza: “Quero trazer minha família ao Brasil. Não há outro plano…”, diz Hasan.

Ele ficou conhecido por seus vídeos que descreveram o cotidiano das famílias brasileiras em Gaza. Mas deixou para trás três pessoas que, agora, espera poder socorrer.

Nas redes sociais, Hasan vem sendo alvo de ameaças, além de campanhas de ódio e difamação. O UOL teve acesso a algumas dessas mensagens, revelando os ataques.

A operação de pedido de proteção está sendo realizada por Talitha Camargo da Fonseca, especialista em direito público e que atua na promoção e proteção de direitos humanos.

O sistema de proteção existente no Brasil para este caso é o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

“O PPDDH tem por objetivo oferecer proteção às defensoras e aos defensores de direitos humanos, comunicadoras e comunicadores e ambientalistas que estejam em situação de risco, vulnerabilidade ou sofrendo ameaças em decorrência de sua atuação em defesa desses direitos”, explica o programa.

Segundo Talitha, “como Hasan era um dos únicos com internet estável, ele acabou se tornando símbolo da divulgação da violência perpetrada em Gaza e é ativista por direitos humanos”.

Solicitei para Hasan e sua família amparo psicológico pelo programa pró-vítima. Pois não podemos receber pessoas de uma guerra sem oferecer oferta adequada de proteção e reconstituição de identidade depois de tudo que assistiram.Talitha Camargo da Fonseca, mestre em ciências, tecnologia e sociedade

O governo afirmou ao UOL que estava ciente dos ataques sofridos por Hasan. A reportagem ainda aguarda um posicionamento oficial tanto do Itamaraty como do Ministério dos Direitos Humanos.


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