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Por que a Rússia diz combater o nazismo na Ucrânia – e qual é a verdade?

Publicado em 25/02/2022 12:00 -

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No comunicado para justificar a invasão da Ucrânia, o Kremlin afirmou que o objetivo da operação era desmilitarizar e “desnazificar” o país vizinho. A mídia russa pró-governo e Vladimir Putin costumam fazer tábula rasa e associar os ucranianos de forma indistinta ao nazismo e ao fascismo. Os russos exploram um fato inegável: o nacionalismo que impulsionou os protestos de 2014, a chamada Revolução Euromaidan, que depôs um governo pró-Moscou e deu início à aproximação com o Ocidente, é ideologicamente de extrema-direita. A principal facção se chama Movimento Azov, organização paramilitar integrada por células neonazistas e acusadas de crime de guerra nos confrontos na região separatista de Donbas. Tortura, saques, estupros, limpeza étnica e perseguição a judeus e homossexuais são alguns dos delitos atribuídos ao movimento.

O fundador do movimento, antes batalhão, Andriy Biletski, nega que o grupo tenha pendores neonazistas, apesar de integrantes da facção exibirem suásticas e bandeiras do sol negro, além de se cumprimentarem com a saudação romana adotada na Alemanha durante o III Reich. “Somos nacionalistas e visamos defender os interesses da Ucrânia”, afirmou em diversas entrevistas. Em 2015, a unidade foi reconhecida pela Guarda Nacional e passou a receber soldos regulares. Nas eleições locais de 2019, a organização tentou ingressar na política oficial, mas não conseguiu eleger representantes no Parlamento. Também em 2019 a milícia acabou expulsa do Facebook por espalhar discursos de ódio. Dois anos antes, ao destinar 150 milhões de dólares à área militar do governo ucraniano, os EUA determinaram oficialmente que os recursos não fossem usados para incrementar o movimento. “As quantias, emprestadas no âmbito desse projeto de lei, não podem ser usadas para fornecer armas, realizar treinamento ou prestar qualquer outro apoio ao Batalhão Azov”, descreve o acordo. Não se sabe de o Pentágono monitorou a aplicação do dinheiro.

O Azov é a principal força de resistência nas bordas da região separatista de Donbas. Os confrontos no extremo-leste ucraniano, onde dois territórios se declaram independentes, a República de Donestk e a República de Lugansk, reconhecidas por Putin na terça-feira 22, prenúncio da invasão ocorrida na quarta 23, se desenrolam desde 2014 e deixaram um saldo de 14 mil mortes. Nem os dois acordos de Minsk, assinados em setembro daquele ano, renovados mais tarde e agora rasgados pela Rússia, nem os sucessivos armistícios negociados foram respeitados pelas partes.

O Azov arma e treina ucranianos na região de Mauripol e arredores. Crianças e mulheres formam a maioria da população orientada pelos paramilitares. Há muitas idosas nas fileiras, o que deu origem ao “Esquadrão das Babushkas (avós)”. Na cidade litorânea retomada dos separatistas, os integrantes do grupo são tratados como heróis. Em entrevista à rede de tevê Al Jazeera, Valentyna Konstantinovska, de 79 anos, uma das babushkas, disse não compartilhar da ideologia do movimento, mas que estará ao lado de quem defender a Ucrânia dos russos. “Desde 2014 sonho em aprender a usar uma arma. Antes me disseram: ´babushka, você está velha demais, será derrubada com o recuo (da arma). Amo minha cidade, não vou embora. Vamos defender nosso país até o fim”.

Obviamente, Putin e Moscou não podem ser considerados bastiões da democracia e das liberdades. Não é disso que se trata a atual crise na Ucrânia, embora o Ocidente também tente transformar o conflito em uma batalha entre o bem e o mal. O discurso de que Ucrânia é um país nazista visa conquistar o apoio de movimentos de esquerda ao redor do mundo. A Rússia dos dias atuais nada tem a ver, porém, com os ideais do socialismo da antiga União Soviética. Putin mira nos tempos dos czares quando imagina retomar os tempos de grandeza e glória. Os ícones comunistas caíram por terra e deram lugar a símbolos cada vez mais imponentes da Igreja Ortodoxa.

Putin age na Ucrânia como agiram Bush e Obama no Iraque, Líbia e Síria

Vladimir Putin age como George W. Bush e Barack Obama agiram no Iraque, Síria e Líbia. A Rússia usa a mesma desculpa dos EUA para atuar como polícia do mundo: o interesse nacional, no caso, a defesa do seu território contra uma ameaça externa (terroristas, como apontou Washington, ou um cerco da Otan, como argumenta Moscou).

Nesse contexto, há um alto grau de hipocrisia em jogar somente na conta de Putin a responsabilidade pela eclosão da guerra na Ucrânia. Autocrata, o presidente russo não é flor que se cheire.

O uso da força sempre deve ser condenado nas relações internacionais, mas as razões da guerra remontam a uma escalada de movimentos da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) tanto quanto a uma estratégia russa de afirmação geopolítica num século em que EUA e China replicam a bipolaridade pós-Segunda Guerra Mundial entre Washington e Moscou.

Nas últimas três décadas, mais de uma dezena de países se filiou à aliança militar ocidental, que foi criada em 1949 no contexto da Guerra Fria entre EUA e a então União Soviética.

A expansão da Otan no Leste Europeu sempre foi uma pedra no sapato da Rússia. Em 2014, com forte apoio dos EUA, houve uma revolução na Ucrânia que virou o jogo de poder interno: caiu um governo pró-Moscou e subiu ao poder um grupo interessado em se aproximar mais da União Europeia e ingressar na Otan. Seria muita ingenuidade imaginar que Putin assistiria a um ingresso da Ucrânia na Otan sem uma forte reação.

Quando invadiram o Iraque, Líbia e Síria, os Estados Unidos ignoraram a ONU (Organização das Nações Unidas). Ora, a Rússia, maior país em extensão territorial do planeta e uma potência nuclear, considera legítimo imitar os americanos e usar o porrete em vez da diplomacia nas relações internacionais.

Portanto, vilanizar Putin, como fazem parcelas da imprensa brasileira, americana e europeia, não vai ajudar ninguém a entender e/ou solucionar a crise na Ucrânia. Tampouco contribui retratar Putin como um novo Adolf Hitler. A bem da verdade, neonazistas existem e são bem aceitos na Ucrânia.

Uma solução que levasse a Ucrânia a ser militarmente neutra seria a ideal e a justa para a atual crise. A autodeterminação dos povos é um princípio do direito internacional que deve ser respeitado, mas os EUA e a Europa fazem jogo político com a Ucrânia da mesma forma que a Rússia. A autodeterminação dos povos sempre encontrou um limite na força das superpotências.

Em 1999, a Otan interveio no Kosovo para frear o exército sérvio. Com incentivo do governo Bill Clinton, houve uma rápida intervenção que levou Slobodan Milosevic à queda no ano seguinte. Com a Rússia, a conversa é outra. O poderio militar de Moscou não recomenda uma escalada bélica da parte da Otan.

Nos próximos dias, deveremos assistir a um avanço russo no território ucraniano e uma situação consumada. Putin deverá levar essa, como os EUA levaram em ações militares semelhantes. Não há mocinhos e vilões nesse conflito no Leste Europeu.


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