18/05/2024 - Edição 540

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O brasileiro que faz a Espanha se olhar no espelho e relembrar o fascismo

O VOX é o partido dos herdeiros políticos da extrema-direita de Franco e tem como eleitor o presidente da La Liga, Javier Tebas

Publicado em 22/05/2023 10:49 - Jamil Chade (UOL), Matheus Moreira (DW), BDF – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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Neste momento, um brasileiro está obrigando uma parcela da Espanha – um país que sequer lidou com seu passado colonial e nem com sua mais recente ditadura – a se olhar no espelho.

Vinicius Jr. não é hoje apenas vítima de crimes. Ele também sofre com a omissão e silêncio ensurdecedor de uma parte da sociedade que rejeita confrontar seu passado e lidar com seu presente.

Fica visível, pelo comportamento de um segmento da imprensa local, de dirigentes esportivos e mesmo de políticos, o quanto a questão incomoda.

Até hoje, o racismo não fui tipificado no Código Penal da Espanha. Ele entra como “delito de ódio”. E só depois o ato criminoso pode ser definido como “motivos racistas”.

Em 2021, o partido de extrema direita VOX, aliado ao bolsonarismo, fez uma proposta assustadora: apresentou um projeto de resolução para que o termo “motivos racistas” fossem retirados da definição do delito de ódio.

Diga-se de passagem que o VOX é também o partido dos herdeiros políticos de Franco e que tem como seu eleitor o presidente da La Liga, Javier Tebas.

Nesta segunda-feira, a presidente da Comunidade de Madri, Isabel Díaz Ayuso, insistiu que a Espanha “não é um país racista”, ainda que admita que tal fenômeno precisa ser lidado. Para justificar, lembrou que “isso também ocorre” com as “ofensas contra o rei”. Ou seja, não entendeu nada. Ou não quer entender.

Enquanto isso, todos os indicadores apontam para uma alta nos incidentes racistas no país. Os dados oficiais coletados pelo espanhol indicam que 1,7 mil delitos de ódio foram reportados às autoridades em 2021. Desses, 639 deles tinham “motivação racista”, um número 24% aos dados registrados em 2019.

De acordo com a entidade SOS Racismo, 34% das vítimas desses ataques são sul-americanos. Metade das vítimas vivem legalmente no país.

Nada disso é novo. Em 2013, uma relatoria da ONU visitou o país e alertou que a Espanha não contava com leis eficientes para combater o racismo.

Por anos, todas as promessas de diferentes governos em lidar com a situação ficaram paralisadas. A Lei contra o Racismo que havia sido prometida jamais foi submetida ao Parlamento e mesmo os compromissos assumidos por Madri com a Europa não saíram do papel.

Hoje, um brasileiro escancara um mal-estar que muitos prefeririam não ter de lidar.

Vini Jr. coloca um país diante do espelho. E parte da imagem que se vê não é nada agradável.

Quando parecia impossível piorar o cenário, o presidente da Liga Espanhola conseguiu fazer isso. Javier Tebas Medrano fez questão de passar uma reprimenda à vítima, em tom ainda ligeiramente ofendido, como se o erro fosse de Vini: “Já que quem deveria não explica o que é e o que pode fazer @A Liga em casos de racismo, tentamos explicar-lhe, mas você não apareceu em nenhuma das duas datas combinadas que você mesmo solicitou. Antes de criticar e insultar @A Liga, é necessário que você se informe adequadamente @Vinijr”, escreveu ele no Twitter.

Ele concluiu de forma ofensiva, sugerindo que o brasileiro – um dos principais jogadores atualmente do mundo – seria “manipulado” e  não sabe do que fala: “Não se deixe manipular e certifique-se de compreender plenamente as competências de cada um e o trabalho que temos feito juntos.

Veja a resposta rápida e afiada de Vini Jr:

Reação da CBF

Em nota divulgada nas redes sociais na noite deste domingo, Ednaldo Rodrigues, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), questionou “até quando ainda vamos vivenciar, em pleno século 21, episódios como o que acabamos de presenciar, mais uma vez, em La Liga?”.

Rodrigues ressaltou ainda que o racismo é crime e prestou solidariedade ao jogador brasileiro. “Não há alegria onde há racismo. A cor da pele não pode mais incomodar”, afirmou.

Lula pede providências

Após o ataque racista contra Vini Jr. na Espanha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou solidariedade e pediu que autoridades esportivas tomem medidas sérias para combater a discriminação racial no futebol.

“A Fifa e a Liga Espanhola têm que tomar sérias providências, não podemos permitir que o fascismo e o racismo tomem os estádios de futebol”, disse antes de uma coletiva de imprensa no Japão, onde participou da cúpula do G7.

O Ministério da Igualdade Racial disse repudiar o racismo contra Vini Jr. e que a pasta notificará as autoridades espanholas e a LaLiga sobre o incidente.

“O governo brasileiro não tolerará racismo nem aqui nem fora do Brasil! Trabalharemos para que todo atleta brasileiro negro possa exercer o seu esporte sem passar por violências”, afirmou a pasta.

Não foi a primeira vez

Em janeiro deste ano, Vini Jr. havia sido vítima de outro ato racista. Horas antes de uma partida com o rival Atlético de Madrid, um boneco com a camisa do Real Madrid com o número 20 — usada por Vini Jr. — foi pendurado em uma ponte da capital espanhola, simulando um enforcamento.

No ano passado, um convidado de um programa de televisão espanhol criticou o hábito de Vini Jr. de dançar ao comemorar gols e disse que ele deveria “parar de fazer macaquices”.

Em dezembro, torcedores do Valladolid xingaram o atleta e atiraram objetos contra ele enquanto deixava o campo.

Os ataques contra Vinicius Jr. não são algo isolado. Em 2021, dos casos de discriminação envolvendo atletas brasileiros no exterior, dez estiveram relacionados com racismo no futebol, segundo o 8º Relatório Anual de Discriminação Racial no Futebol.

Fifa declara apoio a Vinícius e pede que todos adotem regras contra racismo

O presidente da Fifa, Gianni Infantino, usou as redes sociais para sair em apoio ao jogador brasileiro Vinicius Jr, depois que o craque foi alvo de insultos racistas em Valência, no fim de semana. O cartola ainda insistiu que as regras de combate ao racismo precisam ser aplicadas por todos, inclusive em ligas.

“Toda nossa solidariedade a Vinicius”, escreveu o suíço. “Não há lugar para o racismo no futebol e nem na sociedade, e a Fifa apoia todos os jogadores e jogadoras que tenham sofrido isso”, disse.

“Os acontecimentos ocorridos durante a partida entre Valencia e o Real Madrid mostram como essa luta é crucial”, afirmou o dirigente máximo do futebol. No domingo, ele havia sido cobrado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva que adotasse medidas.

Infantino, em sua mensagem, explicou que existe um processo de três etapas nas competições realizadas pela Fifa e que tais medidas são recomendadas também para “todos os níveis do futebol”.

De acordo com ele, a regra consiste nos seguintes passos:

– Em primeiro lugar, a partida é interrompida e se anuncia o motivo

– Numa segunda etapa, os jogadores abandonam o terreno de jogo e se anuncia no estádio que, se as agressões continuam, a partida será suspensa.

– O jogo volta a ser disputado e, se numa terceira etapa as agressões continuam, a partida é parada e os três pontos irão ao adversário.

“Essas são as normas que teriam de ser aplicadas em todos os países e em todas as ligas”, disse Infantino.

Ele admite que é mais fácil falar que agir. “Mas temos de fazer isso e temos de apoiar (tais medidas) por meio da educação”, completou.

Técnico também reage

O absurdo da situação fez o técnico do Real, Carlo Ancelotti, sair em defesa de Vini e cobrar providências da Federação Espanhola. Se há meses Ancelotti – o favorito da CBF para assumir a seleção brasileira – relativizava as ofensas sofridas pelo carioca de 22 anos, desta vez ele se recusou a comentar a partida, concentrando sua entrevista pós-jogo no show de horrores.

“É inaceitável. A La Liga tem um problema que não é Vinicius, ele é a vítima. O que fazer? Não se pode jogar futebol assim. Eu diria o mesmo se tivesse ganhado É muito grave. Insultam Vinícius o tempo todo e depois dão vermelho para ele. Estou muito triste”, afirmou Ancelotti.

“Estamos em 2023. A única maneira é parar o jogo. É o jogador (Vini) que recebe mais faltas e mais insultos. Eu disse ao árbitro que ia tirá-lo e ele me disse que devia continuar. Com o cartão vermelho, todo o estádio gritava macaco, macaco, macaco. Estou muito triste. Nunca me aconteceu algo assim. Ele é uma criança e queria continuar, mas nessas condições é complicado”, disse o italiano. Veja abaixo a entrevista de Ancelotti.

 


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