18/05/2024 - Edição 540

Mundo

Mortes em Gaza disparam, mas importam menos aos EUA que aquelas em Israel

Americanos vetam proposta humanitária do Brasil na ONU, Rússia quer driblar o veto e convocará Assembleia Geral contra Israel

Publicado em 18/10/2023 1:38 - Leonardo Sakamoto, Jamil Jade e Josias de Souza (UOL) - Edição Semana On

Divulgação Imagem: Mohammed Salem

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Nenhuma vida vale mais do que outra e todas as vidas importam. A frase só faz sentido no papel porque, na prática, vivemos em sistemas que criam rankings de valor para a existência. Uma morte a bala de um branco rico nos Jardins ou no Leblon provoca mais comoção do que dezenas de corpos negros no Guarujá ou no Jacarezinho.

A matança terrorista do Hamas provocou mais de 1,4 mil mortes em Israel. A resposta não veio na forma de busca por justiça, mas de aplicação de vingança coletiva com o terror promovido pelo governo de Benjamin Netanyahu em Gaza. A ação, que se enquadra em crime de guerra contra civis segundo a 4ª Convenção de Genebra, matou mais de 3 mil pessoas com bombas e privou 2,2 milhões de comida, água, remédios e eletricidade.

E por conta do veto dos Estados Unidos à proposta de resolução brasileira no Conselho de Segurança da ONU, nesta quarta (18), que previa o fim dos bombardeios e a criação de corredores humanitários permanentes, os números vão continua escalando.

A justificativa da embaixadora norte-americana na ONU, Linda Thomas-Greenfield, foi a ausência do direito de Israel em se defender. Na verdade, o que incomodou Tel Aviv foi a condenação da ordem de evacuar a metade norte de Gaza.

O sofrimento pela morte de um único ente querido é imensurável, então não é possível dizer que a dor de um lado é maior que a de outro. Mas a contagem de corpos impõe uma medida objetiva que demonstra a assimetria entre os envolvidos e precisa ser levada em conta. Lembrando que em um dos lados não está o Hamas, uma ínfima minoria que usa seu povo como escudo, mas toda a população vulnerável de Gaza.

Nesse contexto, alguns chamam certas mortes de “crimes” e outras, de “danos colaterais” ou “baixas de conflito”. Tudo depende de quem morre e quem enterra o morto. E, claro, de quem conta a sua história – o que joga para setores da imprensa um papel fundamental em criar mortos de primeira e segunda classes ao dar espaço e tratamento diferentes para certas tragédias em detrimento de outras.

A terrível execução de 260 pessoas em uma rave em Israel pelas mãos do Hamas não dá sinais de que irá se repetir. Por outro lado, o massacre de mais 500 pessoas no hospital de Al-Ahly Arab, em Gaza, pode se repetir caso não haja um cessar-fogo – uma vez que médicos e enfermeiros de outras instituições semelhantes já avisaram que não atenderão às ordens de evacuação e os hospitais permanecerão abertos.

Importa muito saber quem disparou o míssil, mas importa também saber quem é capaz de garantir de que mísseis deixem de ser disparados.

A questão presente neste texto é bem simples: qual o patamar de mortos que fará com que os Estados Unidos e parte do Ocidente passem a encarar o que está acontecendo em Gaza como uma matança da mesma forma que já encararam como matança o que foi perpetrado pelo Hamas em Israel? Ou seja, a partir de quando o “direito de defesa” se transforma em “crime contra a humanidade”?

Um dos mais conhecidos políticos palestinos, o médico Mustafa Barghouti, líder da Iniciativa Nacional Palestina, disse ao jornalista Leonardo Sakamoto (UOL), em entrevista a partir da Cisjordânia, que o ataque a Gaza não era Justiça, mas uma “punição coletiva” perpetrada pelo governo Netanyahu.

Sakamoto questionou se esmagar os civis em Gaza, aplicando violência demasiada na resposta, não levaria a comunidade internacional a se voltar contra Tel Aviv. Ele respondeu que isso acontecerá, mais cedo ou mais tarde, mas que, neste momento, o mundo ainda está em choque pelas mortes causadas pelo Hamas e, o governo de Israel usa o fato como vantagem.

“É triste reconhecer que isso pode acontecer depois que 3 mil palestinos forem mortos e quando as imagens com crianças morrendo circularem pelo mundo, aí então as coisas devem mudar”, afirmou.

Chegamos aos 3 mil, e apesar do incômodo gerado pelas cenas de hospitais e escolas destruídas, com crianças mortas, nada indica que o bombardeio vá cessar.

Qual o patamar para o “agora deu”? Mais de 5 mil? 10 mil? 50 mil corpos palestinos? Existe tal patamar ou o racismo e o cálculo geopolítico atropela tudo?

Com a resposta, o Conselho de Segurança da Nações Unidas, que coloca em xeque a razão de sua própria existência.

O texto proposto pelo Brasil foi vetado pelos Estados Unidos e, portanto, não foi aprovado. Mas cotaram a favor Brasil, França, Malta, Japão, Gana, Gabão, Suíça, Moçambique, Equador, China, Albânia e Emirados Árabes. E se abstiveram Rússia e Reino Unido. Os EUA preferiram apoiar o aliado Israel do que frear um crime contra a humanidade.

Nesse sentido, o CS da ONU poderia, pelo menos, ter a dignidade de criar o Fundo das Nações Unidas para Enterros de Vítimas de Conflitos. Porque o cheiro dos corpos em decomposição no Norte de Gaza, como contam médicos que atuam na área, já impregna o ar.

EUA vetam proposta do Brasil na ONU e resolução sobre Gaza é rejeitada

Com um veto dos EUA, o Conselho de Segurança da ONU não conseguiu aprovar hoje a resolução costurada pelo Brasil e que propunha que uma pausa humanitária fosse estabelecida em Gaza para socorrer milhares de civis. O bloqueio aprofunda a crise política e escancara a incapacidade das potências de chegar a um entendimento para frear o ciclo de mortes.

O governo de Israel agradeceu os americanos pelo veto anunciado em Nova York. Já a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas Greenfield, declarou que não havia qualquer indicação de que Israel seja o responsável pelos ataques contra o hospital de Al Ahli, que fez mais de 500 mortos na noite de terça-feira, em Gaza. Governos árabes acusaram Tel Aviv, que negou qualquer envolvimento. Segundo a embaixadora, ainda que informações estejam sendo coletadas, “a análise atual é de que Israel não é o responsável pela explosão”.

A situação das últimas horas, de fato, permeou os debates. Para ser aprovada, uma resolução no Conselho precisa de pelo menos nove votos dos 15 membros do órgão. Mas não pode contar com nenhum veto. Apenas cinco países têm esse direito de vetar um texto: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França.

Ao final de um longo processo de negociação, o texto brasileiro somou 12 votos de apoio:

– Brasil, França, Malta, Japão, Gana, Gabão, Suíça, Moçambique, Equador, China, Albânia, e Emirados Árabes.

Duas abstenções:

– Rússia e Reino Unido.

Mas o poder de veto dos EUA, um tradicional aliado de Israel, foi suficiente para derrubar a proposta. O voto era visto como um teste para a credibilidade do Conselho que, nos últimos sete anos, não conseguiu aprovar nenhum entendimento entre as potências no que se refere à crise entre palestinos e israelenses.

O Brasil, nas últimas horas, amenizou o texto, na esperança de conseguir o apoio dos EUA. O UOL apurou que, antes mesmo do processo negociador começar, a Casa Branca já havia avisado de forma sigilosa ao Itamaraty que os americanos não queriam qualquer tipo de ação do Conselho de Segurança sobre o tema.

“Tristemente, muito tristemente, o Conselho mais uma vez não conseguiu adotar uma resolução. Silêncio e inação prevaleceram, para o interesse de ninguém no longo prazo de ninguém”, lamentou Sérgio Danese, embaixador do Brasil na ONU.

Para ele, o projeto era equilibrado e lembrou que os civis não podem continuar sofrendo. Segundo Danese, houve um esforço por parte do Brasil para acomodar posições opostas. “O realismo político nos guiou, mas nossa visão sempre esteve no imperativo humanitário”, disse.

Itamaraty não vê resultado como derrota

Nos bastidores, diplomatas brasileiros não consideraram o resultado como uma derrota do Itamaraty, sinalizando que a ampla votação favorável mostrou que construção do texto havia sido exitosa e que as negociações conseguiram acomodar os interesses de muitos.

Também foi destacado o fato de que governos como o da França, Suíça, Gabão, Moçambique e outros elogiaram publicamente o trabalho de Danese.

O que dizia a resolução do Brasil:

Condenava os atos terrorista do Hamas

Pedia a libertação dos reféns israelenses

Cobrava de ambos os lados a proteção à população civil

Denunciava os ataques indiscriminados sobre Gaza

Pedia que Israel abandonasse a ordem de evacuar palestinos do norte de Gaza

Estabelecia uma pausa humanitária e pedia que um corredor humanitário seja criado em Gaza

EUA explica seu veto; China chama veto de “inacreditável”

O governo americano explicou seu veto e lamentou que o texto não fazia uma referência para que fosse estabelecido o direito de autodefesa por parte de Israel. “Todos os países têm esse direito”, diz Linda Thomas Greenfield, embaixadora dos EUA na ONU.

Ela ainda deixou claro que o “duro trabalho diplomático” está ocorrendo e que o presidente dos EUA, Joe Biden, está na região justamente para negociar um acordo. “Precisamos deixar aquela diplomacia ocorrer”, insistiu.

O governo russo não poupou críticas ao governo Biden. “Somos testemunhas da hipocrisia dos EUA. Eles não queriam uma solução aqui”, afirmou Vassily Nebenzia, embaixador russo na ONU.

Já o embaixador da China, Zhang Jun, afirmou estar “em choque” diante do comportamento dos EUA e apontou que o texto brasileira era “a visão da comunidade internacional”. O chefe da delegação de Pequim qualificou o gesto americano de “inacreditável” e destacou como os EUA não manifestaram oposição ao texto nos últimos dias. “Esperávamos que iriam votar a favor”, disse.

Diante do voto, o embaixador palestino na ONU, Riyad Mansour, fez um apelo emocionado. “Parem o banho de sangue e parem agora”, disse. Segundo ele, Israel vem cometendo “diariamente um massacre”.

“Quem não quer o cessar-fogo perde credibilidade e compartilha a responsabilidade pela devastação”, denunciou, num recado aos americanos.

As críticas também vieram do campo dos ativistas de direitos humanos.

“Mais uma vez, os EUA usaram de forma cínica seu poder de veto para impedir que o Conselho de Segurança da ONU atue em relação a Israel e Palestina em um momento de violência sem precedentes”, afirmou a Human Rights Watch.

“Ao fazerem isso, vetaram demandas que eles mesmos insistem, com frequência, em outros contextos, quais sejam: que todas as partes cumpram a lei humanitária internacional e garantam que a ajuda humanitária vital e os serviços essenciais cheguem às pessoas que mais precisam”, disse. “Eles também vetaram a condenação do ataque de 7 de outubro, realizado pelo Hamas, assim como a exigência de libertação dos reféns. Diante do impasse no Conselho, os países membros da ONU deveriam pedir à Assembleia Geral que tome medidas urgentes para proteger os civis e evitar atrocidades em grande escala”, completou.

A crise ainda ficou clara quando, antes da votação do texto brasileiro, o Conselho de Segurança não chegou a um acordo sobre uma emenda apresentada pela Rússia e que pedia duas coisas: uma condenação aos ataques contra o hospital de Al Ahli e um apelo explícito por um cessar-fogo. O governo americano vetou os termos.

Quando a resolução brasileira foi considerada, portanto, o clima já era de tensão.

Inicialmente, foram os russos quem apresentaram um projeto de resolução, numa ato de interpretado como um oportunismo diplomático por parte de Vladimir Putin para se reposicionar no cenário internacional como um defensor da paz.

O texto, porém, sequer mencionava o Hamas e foi rejeitado pelo Ocidente. Na esperança de impedir um impasse, o Brasil —que preside o Conselho— submeteu aos governos um projeto alternativo. A votação foi adiada em duas ocasiões, na esperança de que um consenso pudesse ser negociado. Mas não foi suficiente.

Depois de cinco dias de intensas negociações, a esperança do Itamaraty era de que o documento fosse considerado como equilibrado o suficiente para impedir que EUA ou Rússia vetassem os termos propostos pelo Brasil.

Mas isso tampouco foi suficiente. O órgão da ONU já havia se reunido em três ocasiões desde o começo da nova fase do conflito. Mas, por exigência dos americanos, o encontro ocorreu a portas fechadas. Não houve um entendimento sequer para pedir o fim da violência.

Agora, foi o veto que impediu um acordo.

Há sete anos o Conselho da ONU não chega a um consenso sobre a questão entre Israel e Palestina. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que preside o órgão no mês de outubro, esperava usar o encontro e a iniciativa para mostrar seu protagonismo em debates sobre a segurança internacional.

Mas o veto de hoje representa um sinal claro da dificuldade que a comunidade internacional terá para chegar a um acordo.

Rússia quer driblar veto dos EUA

O conflito entre Israel e o Hamas se transforma numa disputa particular entre Rússia e EUA na ONU. Depois de o governo de Joe Biden ter vetado a proposta do Brasil de criar uma pausa humanitária na guerra, Moscou anunciou que planeja uma forma de driblar a decisão da Casa Branca e levar adiante o plano de conseguir uma condenação de Israel nas Nações Unidas.

Instantes depois de a resolução brasileira ter sido bloqueada no Conselho de Segurança pela diplomacia dos EUA, o embaixador da Rússia na ONU, Vassily Nebenzia, anunciou que vai enviar uma carta à Assembleia Geral para convocar o órgão a uma reunião extraordinária para lidar com a crise.

No Conselho de Segurança, uma aprovação de uma condenação apenas pode ocorrer se não houver o veto de todos os cinco membros permanentes da entidade. Mas, na Assembleia Geral, a regra é outra: basta que uma resolução tenha a maioria dos 192 votos.

“Considerando que o Conselho de Segurança não terá uma resposta, a Rússia vai iniciar o pedido por uma sessão especial da Assembleia Geral da ONU para tratar da proteção de população civil em Gaza”, explicou o embaixador. Segundo ele, a carta à presidência da Assembleia já está pronta e deve ser enviada nos próximos dias.

Segundo ele, é a paralisia do Conselho de Segurança que aprofunda crise.

A manobra de Moscou é uma resposta do Kremlin a um gesto que o governo americano realizou contra os russos, quando o governo de Vladimir Putin também usou seu poder de veto no Conselho e impediu a aprovação de uma resolução que os condenava pela invasão da Ucrânia.

A Casa Branca, então, levou o caso para a Assembleia Geral e, ali, conseguiu votos suficientes para aprovar uma resolução condenando Putin.


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