18/05/2024 - Edição 540

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Israel responde terror com terror ao tratar 1 milhão de palestinos como sub-humanos

Com ataques a hospitais, escolas e contra a população civil palestina, israelenses perdem legitimidade da auto-defesa

Publicado em 14/10/2023 8:53 - Leonardo Sakamoto, Josias de Souza e Jamil Chade (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação Mohammed Abed/AFP/Getty Images

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Em seu esforço de responder à matança terrorista do Hamas com crimes contra a humanidade, o governo de Israel mandou que 1,1 milhão de moradores da região norte da Faixa de Gaza se desloquem ao sul do território em 24 horas porque o seu exército vai chegar chegando.

Considerando que nem transferência de gado para o abate poderia ser tão rápida, o resultado caótico dessa onda instantânea de refugiados vai ser sofrimento e morte, caso boa parte dos moradores decida ir. Tal como o sofrimento e morte que esperam boa parte dos moradores que decidirem ficar e encarar a invasão israelense.

Um semovente desavisado dirá “Ah, mas o trajeto do centro da cidade de Gaza até Haffa, ao sul, é de uns 35 quilômetros, mais ou menos o que separa o centro de São Paulo até o condomínio Alphaville, em Santana do Parnaíba. Ou seja, os palestinos conseguem fazer isso em algumas horas”.

Para além da estupidez de achar que é possível mover 1,1 milhão de almas, incluindo idosos, crianças, pessoas com deficiência, doentes, feridos dos hospitais em um dia, há o agravante de que a população está enfraquecida devido ao aprofundamento do cerco a Gaza. Falta água, comida, medicamentos. Falta combustível e eletricidade para deslocar toda essa gente.

Como o Egito ainda não concordou com um corredor humanitário para que a população civil saia do território pelo Sul, nem Israel acenou em parar de bombardear para que isso aconteça, o trânsito de mais de 1 milhão de pessoas provocaria, segundo as Nações Unidas, “consequências humanitárias devastadoras”.

E, como era de esperar, o Hamas, de forma criminosa, está contraordenando aos moradores do norte para que fiquem em suas casas. Precisam de escudo humano. E sabem que se Israel produzir uma montanha de corpos, perderá o apoio de grande parte da comunidade internacional.

O cálculo dos cidadãos de Gaza é mais racional, contudo: chegando lá, eu fico aonde? Dormindo e cagando na rua?

Israel tem direito a defender a sua existência e punir o grupo que matou mais de mil pessoas em seu território. Mas o que estamos assistindo não é a reação de um estado que se diz democrático tentando resgatar reféns e prender criminosos, mas de uma punição coletiva ao moradores de Gaza – que não são culpados pelo Hamas.

Punição que tem requintes de crueldade. A Human Rights Watch denunciou que Israel está bombardeando Gaza com fósforo branco, que provoca queimaduras profundas, fritando carne e ossos. As escaras abertas por ele em corpos não cicatrizam facilmente. Era usado até a Guerra do Vietnã, mas uma das Convenções de Genebra condenou seu uso como arma onde existam civis.

Ao mesmo tempo, campos de refugiados e centros de saúde têm sido atingidos pela competente artilharia “cirúrgica” de Israel, que também mata funcionários da ONU.

Não é surpreende que boa parte do mundo assista calado a um crime de guerra ser construído sob a justificativa de que após a matança hedionda de centenas em um ataque terrorista, o governo de Israel pode tudo. Até cometer terrorismo de Estado.

Provavelmente, se uma ordem esdrúxula de deslocamento fosse dada a 1 milhão de cabeças de gado haveria mais indignação planetária de governos. Mas como são apenas palestinos, toca o berrante e segue o jogo.

Ultimato a civis de Gaza expõe o calcanhar de Israel: legitimidade

O ultimato de Israel para que a população civil abandone o norte da Faixa de Gaza expõe um paradoxo. Por um lado, sinaliza que é irreversível a decisão do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de impor a supremacia militar israelense sobre o Hamas. Por outro, lança luz sobre o calcanhar de vidro da estratégia. Um massacre de civis em Gaza tornaria ilegítima a resposta de um Estado democrático à carnificina promovida pelos terroristas do Hamas no território de Israel no dia 7 de outubro.

Dito de outro modo: a força de Israel converte-se na sua principal fragilidade. Até aqui, confiando na hipotética eficiência dos seus serviços de inteligência e na suposta eficácia dos escudos tecnológicos de proteção que imaginava ter construído, Israel limitava-se a aparar as ramagens mais salientes do Hamas. Diante das falhas que permitiram aos terroristas executar mais letal invasão da história ao seu território, com o assassinato de mais de mil pessoas e a captura de algo como 150 reféns, Israel se autoimpôs a missão de arrancar o mal pela raiz, eliminando o Hamas do mapa.

O cerco de Israel a Gaza e os bombardeios à distância revelam-se insuficientes. Tornou-se incontornável uma invasão por terra de um dos pedaços urbanos mais populosos do mundo, com mais de 2 milhões de habitantes espremidos num território de escassos 363 km². O inevitável extermínio de civis inocentes não passará como mero efeito colateral de uma guerra incontornável.

O que vinha sendo tratado como legítimo direito de reação de Israel contra a incursão terrorista do Hamas está na bica de se converter num crime de guerra contra palestinos e estrangeiros que a comunidade internacional terá dificuldades para ignorar ou justificar. Abra-se, por inevitável, um parêntese: há brasileiros na zona de guerra.

Nesse novo contexto, o esforço do Conselho de Segurança da ONU, momentaneamente presidido pelo Brasil, para abrir corredores humanitários na Faixa de Gaza é um asterisco que escancara a disfuncionalidade de um organismo internacional incapaz de se impor contra violações aos mais rudimentares direitos humanos. Para complicar, a reunião do Conselho foi inconclusa. O ultimato de Israel já expirou. E as negociações diplomáticas rodam como parafuso espanado.

Antes mesmo de ser construída, a saída esboçada pela ONU revelou-se uma iniciativa natimorta, pois a abertura de corredores de fuga dependeria de um cessar-fogo que Israel não parece disposto a conceder; de uma boa vontade do Hamas, que governa Gaza com mão de ferro; e da irrestrita boa vontade do Egito, que hesita em abrir suas fronteiras para um êxodo palestino.

Em pronunciamento feito nesta sombria Sexta-feira 13, Benjamin Netanyahu disse que o ataque a Gaza é apenas o início de uma campanha muito maior, na qual Israel destruirá o Hamas. “Vamos vencer”, ele disse. Faltou definir vitória.

“Falta água para 2 milhões de pessoas em Gaza”, alerta ONU

Uma semana depois de Israel ser alvo de ataques pelo Hamas e de responder com um cerco sobre Gaza, a agência da ONU para os refugiados palestinos – UNRWA – anuncia que mais de 2 milhões de pessoas estão em risco devido à falta de água e que quase 1 milhão de pessoas estão deslocadas dentro da região.

“Isso se tornou uma questão de vida ou morte. É uma necessidade. O combustível precisa ser entregue agora em Gaza para disponibilizar água para 2 milhões de pessoas”, disse Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, neste sábado.

Há uma semana não é permitida a entrada de suprimentos humanitários em Gaza.

“A água potável está acabando na Faixa de Gaza, depois que a estação de tratamento de água e as redes públicas de água pararam de funcionar”, disse a entidade.

“As pessoas agora são forçadas a usar água suja de poços, aumentando os riscos de doenças transmitidas pela água. Gaza também está sob um apagão de eletricidade desde 11 de outubro, o que afeta o abastecimento de água”, alertou.

Nas redes sociais, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, alertou que a situação pode ser “mortal” para populações vulneráveis e o surgimento de doenças.

Na base da ONU no sul da Faixa de Gaza, para onde a UNRWA transferiu suas operações, a água potável também está acabando. “Milhares de pessoas buscaram refúgio lá depois que Israel emitiu um aviso aos residentes exigindo que eles deixassem suas casas na parte norte da Faixa”, disse.

“Somente nas últimas 12 horas, centenas de milhares de pessoas foram deslocadas. O êxodo continua à medida que as pessoas se deslocam para a parte sul da Faixa de Gaza. Cerca de 1 milhão de pessoas foram deslocadas somente em uma semana”, constata.

“Precisamos transportar combustível para Gaza agora. O combustível é a única maneira de as pessoas terem água potável”, disse o comissário. “Caso contrário, as pessoas começarão a morrer de desidratação grave, entre elas crianças pequenas, idosos e mulheres. A água é agora a última salvação que resta. Faço um apelo para que o cerco à assistência humanitária seja levantado agora”, acrescentou Lazzarini.

De acordo com a ONU, três usinas de dessalinização de água, que antes produziam 21 milhões de litros de água potável por dia, interromperam suas operações.

“O fornecimento de água potável de Israel foi cortado em 9 de outubro, causando uma grave escassez de água potável para mais de 650.000 pessoas”, completou a agência.

Israel cai na armadilha montada pelo grupo terrorista Hamas

O Hamas teve a intenção de chocar Israel e chamar a atenção do mundo com as atrocidades que cometeu em 7 de outubro. Matar famílias inteiras que dormiam ou que mal tinham acordado ao som dos tiros, jovens que se divertiam em uma festa, pessoas que tentavam fugir em carros é um ato de puro terror.

Israel tem o direito não só de se defender, mas de ir à guerra contra os que lhe causaram tanta dor. Ocorre que Israel, dono de um dos exércitos mais poderosos do mundo e de um serviço de inteligência capaz de localizar e matar seus inimigos onde quer que eles se escondam, não deveria responder ao terror com terror.

O presidente americano, Joe Biden, alertou o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, para que respeite a Convenção de Genebra, que estabelece as regras de guerra. É guerra o conflito que provoca mil mortes por ano. Israel, e não só desta vez, decidiu ignorar regras e advertências. Pagará um alto preço por isso.

Netanyahu está com sangue nos olhos porque sabe que sua carreira política está perto do pior dos fins, marcado pelo fracasso como estrategista e banhado em sangue. Nunca correu tanto sangue israelense em período tão curto desde a criação de Israel. Netanyahu enganou-se e foi feito de bobo pelo Hamas.

É impossível entender a guerra sem apontar o maior erro que Netanyahu cometeu: fortalecer o Hamas e enfraquecer a Autoridade Palestina para sabotar qualquer acordo territorial com os palestinos. Em reuniões com seus companheiros de governo, ele dizia que transformara o Hamas em um aliado de Israel.

Explica o historiador israelense Dmitry Schumsky:

“O objetivo dessa doutrina era perpetuar o conflito entre o Hamas em Gaza e a Autoridade Palestiniana na Cisjordânia. Isto preservaria a paralisia diplomática, afastando o ‘perigo’ de negociações com os palestinos sobre a partilha da Palestina em dois Estados. Esta duvidosa estratégia permitiu transformar o Hamas de grupúsculo terrorista num exército letal”.

O general na reserva Gershon Hacochen, colaborador do primeiro-ministro, formulou assim a questão em 2019:

“Temos de falar verdade. A estratégia de Netanyahu para evitar a opção de dois Estados é fazer do Hamas um parceiro próximo. Abertamente, é um inimigo. Secretamente, é um aliado”.

Os serviços de inteligência de Israel estavam dormindo ou sem ânimo. É comum que se informe aos superiores o que eles querem ouvir. É comum que chefes só ouçam o que lhes interessa. Tzachi Hanegby, conselheiro para a segurança de Bibi, garantiu, dias antes do 7 de Outubro, que nada havia a temer do lado do Hamas.

Ministros de extrema direita, Itamar Ben-Gvir (Segurança) e Bezalel Smotrich (Finanças e Territórios) incentivaram ações violentas de colonos contra palestinos na Cisjordânia. E como os colonos poderiam se revoltar, o governo pôs três quartos dos seus efetivos militares para protegê-los no norte do país.

A base eleitoral do governo de extrema direita de Netanyahu fica no norte. Foi pelo Sul, que vota majoritariamente na esquerda, que o Hamas entrou em 7 de outubro. Denuncia o politólogo israelita Samy Cohen:

“Os cidadãos israelitas que mais beneficiaram da solicitude do governo foram os colonos da Cisjordânia, clientela dos aliados extremistas de Netanyahu. Este deveria responder pela decisão do seu governo de reforçar maciçamente a segurança das colônias, já protegidas em excesso, sem dar suficiente atenção à população do Sul, deixada com uma proteção irrisória”.

O objetivo do Hamas é sobreviver sem perder relevância. Atraiu Israel para uma guerra indesejável. Uma guerra que Israel será obrigada a travar em mais de uma frente de batalha, com um saldo de mortos e feridos, por enquanto, inimaginável. A maior vítima, porém, serão os palestinos. Sempre eles.


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