18/05/2024 - Edição 540

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Cidadãos de países africanos sofrem racismo no êxodo ucraniano

Publicado em 04/03/2022 12:00 -

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Para além da própria guerra e da destruição causada pelos ataques da Rússia à Ucrânia, imigrantes negros moradores de cidades ucranianas têm relatado racismo de autoridades de países da Europa que, segundo eles, estão insultando essas populações e dificultando a entrada delas nos países vizinhos.

Os relatos apontam desde horas esperando no final das filas para embarcar em trens para fora da Ucrânia até agressões físicas. Pelo menos 660.000 pessoas fugiram da Ucrânia nos cinco dias após o início da invasão da Rússia. A maioria é ucraniana, mas boa parte dos migrantes são estudantes ou trabalhadores vindos da África, Ásia e Oriente Médio.

Um homem identificado como Alexander Somto no Twitter publicou um vídeo, segundo seu próprio relato, gravado na fronteira da Ucrânia com a Polônia.

Nas imagens, que viralizaram nas redes sociais, viaturas bloqueiam uma estrada com policiais armados. Jovens aparecem nos vídeos gritando e avisando que são apenas estudantes.

"Veja como eles estão ameaçando atirar em nós! Estamos atualmente na fronteira Ucrânia-Polônia. Sua polícia e exército se recusaram a deixar os africanos atravessarem, eles só permitem ucranianos. Alguns dormiram aqui por 2 dias sob este frio escaldante", diz Alexander Somto na publicação.

A hashtag #AfricansinUkraine tem sido usada para denunciar casos de racismo semelhantes. Basta pesquisar no Twitter para encontrar vídeos de pessoas negras passando graves apuros para conseguir deixar a Ucrânia.

Um outro usuário publicou um vídeo em que homens negros discutem com um militar fardado em uma estação de trem. Ele afirma que os oficiais estavam barrando o embarque de africanos nas locomotivas.

Em entrevista à BBC, a estudante de medicina nigeriana Jessica Orakpo também diz que sofreu racismo ao tentar deixar a Ucrânia.

"Eu estava implorando. O oficial literalmente olhou nos meus olhos e disse, em sua língua: 'Apenas ucranianos. É isso'. Disse que se você for negro, você deveria ir andando", contou Orakpo ao jornal britânico.

O jornal norte-americano The New York Times conversou com Chineye Mbagwu, uma médica nigeriana de 24 anos, que disse ter ficado presa na fronteira da Polônia com a Ucrânia, na cidade de Medyka, porque autoridades deixavam apenas ucranianos cruzarem a fronteira.

"Os guardas ucranianos não nos deixaram passar. Eles estavam espancando as pessoas com paus. Batiam neles e os empurravam para o final da fila. Foi terrível", contou a médica.

Também ao Times, Taha Daraa, um estudante marroquino de 25 anos, disse que ele e seus colegas foram maltratados. Ele disse que viu guardas atirando para o ar para provocar o recuo de um grupo com outros dois marroquinos e africanos que tentavam sair da Ucrânia.

"Nunca senti tanto medo na minha vida. Ele nos pediu para voltar. A neve estava caindo sobre nós. À medida que a multidão aumentava, eles desistiram e deixaram todos passar", disse Daraa ao NYT.

O jornal inglês The Guardian publicou que grupos nacionalistas poloneses também começaram a divulgar falsos crimes atribuídos a imigrantes — desmentidos pela própria polícia polonesa.

A União Africana, organização internacional de países africanos, disse estar acompanhando essas denúncias de perto.

"Relatos de que africanos são selecionados para tratamento dissimilar inaceitável são chocantemente racistas e uma violação da lei internacional", diz o comunicado, assinado por Macky Sall, presidente da entidade e do Senegal, e por Moussa Faki Mahamat, presidente da Comissão da União Africana e ex-primeiro ministro do Chade.

Para a doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI-UERJ), Raquel Araújo de Jesus, os relatos refletem o racismo estrutural. "Isto tudo é constitutivo da própria ideia de modernidade, que surge na Europa, ao menos a partir do século XVI, e cujo projeto ordenador é estruturado em lógicas binárias, que contrapõe, por um lado, o 'eu' moderno, o sujeito europeu, branco, e o 'outro', a quem é negada a própria condição de humano através do processo de racialização", explicou.

2 milhões de refugiados

Em apenas uma semana de guerra, 2 milhões de ucranianos foram obrigados a deixar suas casas e fugir. Os dados foram apresentados na manhã desta quinta-feira pela ONU, durante a abertura de uma reunião de emergência convocada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

O objetivo do encontro é o de votar a proposta da Ucrânia de criar uma comissão de inquérito para investigar os crimes cometidos pelos russos.

Ao abrir o debate, a alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, alertou que "o ataque militar da Federação Russa à Ucrânia abriu um novo e perigoso capítulo na história mundial" e, citando o secretário-geral, Antônio Guterres, chamou esta situação como sendo "a mais grave crise global de paz e segurança dos últimos anos".

"Mais de dois milhões de pessoas foram forçadas a fugir de suas casas, um milhão ainda dentro da Ucrânia. Mais 1.040.000 refugiados procuraram segurança nos países vizinhos nos últimos sete dias", disse Bachelet, lembrando que muitas viajam por dias de bicicleta ou a pé, em condições de congelamento. Segundo ela, até quatro milhões de pessoas poderiam deixar o país nas próximas semanas se o conflito continuar.

A chilena ainda fez um alerta sobre os casos de racismo diante de alguns dos refugiados. Segundo ela, a ONU agradece os países europeus por receber os ucranianos. Mas ela alerta que nem todos estão tendo as mesmas facilidades. "Esta recepção deve ser estendida a todos aqueles que fogem do conflito, independentemente de sua cidadania, etnia, migração ou outro status. Tem havido indícios preocupantes de discriminação contra cidadãos africanos e asiáticos durante a fuga, e o Escritório estará atento a esta situação", disse.

Mortos e feridos

A ONU também apresentou os novos números de vítimas confirmadas. "O ataque que começou em 24 de fevereiro está gerando um impacto maciço sobre os direitos humanos de milhões de pessoas em toda a Ucrânia", disse Bachelet. "Os elevados níveis de ameaça às armas nucleares sublinham a gravidade dos riscos para toda a humanidade", declarou.

Segundo ela, as operações militares estão aumentando ainda mais neste momento, com ataques militares em grandes cidades, incluindo Chernihiv, Kharkiv, Kherson, Lysychansk, Sievierodonetsk, Sumy, Mariupol e Zhytomyr, e a capital, Kyiv. "A cidade de Volnovakha, na região de Donetsk, foi quase completamente destruída por bombardeios, e seus residentes remanescentes têm se escondido em porões", disse.

Até terça-feira à noite, a ONU indica que havia registrado e confirmado 752 vítimas civis, incluindo 227 mortos – 15 deles crianças. Pelo menos 525 pessoas foram feridas, incluindo 28 crianças.

65 mortos e 258 feridos foram registrados nas regiões de Donetsk e Luhansk. 429 vítimas (162 mortos e 267 feridos) foram registrados em outras regiões da Ucrânia.

"Devo enfatizar que os números reais serão muito mais altos, já que muitas outras baixas estão pendentes de confirmação, e as informações de algumas áreas envolvidas em hostilidades intensas têm sido adiadas", disse. Um membro da Unidade de Monitoramento da OSCE na Ucrânia foi morto em Kharkiv enquanto recebia suprimentos para sua família.

"A maioria das baixas civis foi causadas pelo uso de artilharia pesada, sistemas de foguete e ataques aéreos em áreas povoadas, com relatos de uso de munições de fragmentação que atingiram alvos civis", alertou Bachelet. "Foram infligidos danos maciços a edifícios residenciais. O uso de armas com efeitos de área ampla em áreas urbanas densamente povoadas é inerentemente indiscriminado, e eu apelo para a imediata cessação de tal força", apelou.

Bachelet ainda denunciou um número significativo de ataques a alvos civis, incluindo um hospital, escolas e jardins de infância. "A infraestrutura essencial foi fortemente danificada – cortando suprimentos e serviços críticos, incluindo eletricidade, água e acesso à saúde", disse a chilena. Em 26 de fevereiro, as tropas russas perto de Kherson teriam disparado em uma ambulância que transportava vítimas gravemente feridas; o motorista foi morto e um paramédico foi ferido.

Perseguição

Segundo a ONU, dezenas de milhões de pessoas permanecem no país, em perigo potencial de morte. "Estou profundamente preocupada que a atual escalada das operações militares aumente ainda mais os danos que elas enfrentam. Milhares de pessoas, incluindo idosos, mulheres grávidas, assim como crianças e pessoas com deficiências, estão sendo forçadas a se reunir em abrigos subterrâneos e estações de metrô para escapar de explosões. Muitas pessoas em situação de vulnerabilidade são separadas das famílias e efetivamente aprisionadas", disse Bachelet.

Ela ainda destaca como grupos temem perseguição se as tropas russas avançarem, incluindo membros da comunidade Tatar da Crimeia na Ucrânia continental, assim como proeminentes defensores dos direitos humanos e jornalistas.

Num apelo, ela insistiu que os estados devem respeitar o direito internacional e os princípios fundamentais que mantêm a vida humana, e a dignidade humana, intactos. Ela também pediu que o "pleno acesso para a entrega de assistência humanitária a civis em todo o país", além de proteção aos civis.


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