18/05/2024 - Edição 540

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Apesar da trégua de quatro dias, Israel impede palestinos de voltarem para suas casas na Faixa de Gaza

'Estávamos fechados em Gaza e agora estamos fechados no Brasil', diz Hasan. Palestina ligou para marido no Brasil: 'Pode encontrar nova família. Vamos morrer aqui'

Publicado em 24/11/2023 11:03 - Augusto de Sousa (DCM), Jamil Chade (UOL), DW – Edição Semana On

Divulgação Foto: Motaz Azaiza/UNRWA

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Apesar do período de cessar-fogo entre Israel e o Hamas iniciado nesta sexta-feira (24), milhares de palestinos que buscavam retornar para suas casas no norte da Faixa de Gaza encontram resistência das forças israelenses. O Exército sionista impede a passagem dos moradores por considerar uma área estratégica para o conflito.

Enquanto os palestinos tentam retornar para buscar pertences e até localizar corpos de parentes, a situação humanitária se agrava. Com 22 dos 36 hospitais fechados devido aos conflitos, uma operação coordenada pela ONU permitiu que 10 ambulâncias resgatassem pacientes em meio ao cessar-fogo. Além disso, caminhões de combustível e gás entraram no território para abastecer as cidades no sul.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e autoridades militares de Israel deixaram claro que o cessar-fogo de quatro dias não marca o fim do conflito, e relatos indicam que as forças israelenses estão usando medidas para evitar a volta de civis ao norte da Faixa de Gaza.

Segundo relatos do site Al-Jazeera, as forças israelenses chegaram a disparar bombas de gás para impedir o retorno dos palestinos. A região norte apresenta prédios destruídos e ruas devastadas, criando obstáculos adicionais para os que conseguem chegar à área.

Israel afirma utilizar redes sociais e panfletos para alertar os palestinos sobre os riscos da viagem de volta. O porta-voz das Forças de Defesa de Israel (FDI), Avihai Adrai, em mensagem no X, antigo Twitter, em árabe, pediu que os civis evitem a área de combate, descrevendo-a como uma “zona de guerra perigosa”.

“A área norte da Faixa de Gaza é uma zona de guerra perigosa e é proibido mover-se para lá”, advertiu Avihai Adrai. “Só se pode atravessar do norte da Faixa de Gaza para o sul através da estrada Salah al-Din. A faixa ao norte não será permitida de forma alguma.”

As FDI justificam a restrição ao retorno, afirmando não estar preparadas para manter a separação entre a parte norte e sul da Faixa de Gaza e para evitar o regresso de membros do Hamas à região.

O cessar-fogo é uma das disposições do primeiro grande pacto firmado entre os dois desde que passaram a se enfrentar, cerca de um mês e meio atrás.

A trégua temporária, em vigor desde as 7h no horário local (2h, horário de Brasília), marca um intervalo de quatro dias no conflito que possibilitará a libertação de reféns capturados.

‘Estávamos fechados em Gaza e agora estamos fechados no Brasil’, diz Hasan

Hasan Rabee e sua família passaram semanas fechados em Gaza, para evitar as bombas e a morte. A ordem era a de evitar sair à ruas. Agora, no Brasil, voltou a ficar confinado. Desta vez, o motivo são os ataques que ele e sua família continuam recebendo, principalmente de perfis da extrema direita. “Estávamos fechados em Gaza e agora estamos fechados no Brasil”, disse Hasan.

Logo que desembarcou, ele passou a ser alvo de ataques nas redes sociais, com mais de 200 mensagens ofensivas e ameaçadoras em apenas poucos dias.

Nos dias da retirada do grupo de Gaza e viagem ao Brasil, circularam nas redes sociais postagens antigas de Hasan nas quais ele teria sugerido queimar ônibus em Israel, em 2015. Dias depois, no Jornal Nacional, ele afirmou que não se lembrava das postagens e que poderia ter postado “com raiva”.

“Não sou a favor de violência nenhuma, sou a favor da conversa, sempre”, disse. “Pode ser que eu tenha postado com raiva. Mas, em 2015, não me lembro de nada”, completou.

A coluna revelou com exclusividade que, diante da situação, a advogada Talitha Camargo da Fonseca pediu a inclusão dele e de sua família no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos do governo federal. As autoridades brasileiras ainda anunciaram uma mobilização para investigar os autores dos ataques xenófobos e racistas.

Mais de uma semana depois, porém, a ofensiva nas redes sociais contra o brasileiro de origem palestina continua e não perde força. O resultado tem sido uma decisão por ele e sua família de sair apenas quando necessário às ruas. O local onde estão não foi revelado.

Trégua abre esperança para evacuação de pessoas de Gaza ao Brasil

Enquanto Hasan e sua família vivem ainda sob o medo no Brasil, a trégua estabelecida entre o Hamas e Israel a partir de sexta-feira para que ajuda humanitária e a liberação de reféns ocorram é considerada pelo governo como uma possibilidade para que a evacuação de pessoas em Gaza que queiram viajar ao Brasil seja acelerada.

Há duas semanas, depois de intensa negociação entre o Itamaraty, Israel, Hamas e Egito, 32 brasileiros que estavam em Gaza foram autorizados a deixar o local. Cruzaram a fronteira com o Egito e, de lá, embarcaram para o Brasil.

Mas muitos deles chegaram ao país já com a esperança de retirar de Gaza o restante da família e parentes.

Agora, a nova lista brasileira conta com 86 nomes, numa operação que o próprio Itamaraty considera que será mais complicada e mais lenta. Muitos dos nomes não contam com cidadania brasileira, apesar dos vínculos com as pessoas que já deixaram Gaza.

Só Hasan Rabee, um dos beneficiados pela evacuação, quer a transferência ao Brasil de mais três de seus familiares.

Mas o acordo anunciado nesta semana é visto como uma possibilidade real de que o pedido brasileiro possa ser atendido.

Da primeira evacuação de 7 mil estrangeiros de mais de 30 nacionalidades que estavam em Gaza, praticamente todos já foram retirados. Mas uma nova lista de 3 mil parentes agora aguarda para começar a ser atendida.

Dentro do Itamaraty, a expectativa é de que a nova lista brasileira apenas será atendida após a consideração dessas três mil pessoas. Mas com a saída potencial de 500 pessoas por dia de Gaza, em poucos dias essa evacuação pode ser solucionada.

Palestina em Gaza ligou para marido no Brasil: ‘Pode encontrar nova família. Vamos morrer aqui’

A jovem palestina Samira Hasan, 25 anos, e seu filho Hamza Abuharbid, 1 ano, visitavam a família na Faixa de Gaza quando começou o conflito entre o grupo palestino Hamas e Israel. Assustada, ela ligou para o marido, que estava em Florianópolis, e disse: “Pode encontrar uma nova família para você. Nós vamos morrer aqui.”

Naquele momento, Samira não sabia que, após uma jornada de medo e privações, ela e o filho estariam entre os 32 brasileiros e palestinos resgatados pelo Brasil na última semana.

Só quando cruzou a fronteira da Faixa de Gaza com o Egito, no dia 12 de novembro, um domingo, Samira sentiu-se segura.

“Ao mesmo tempo, só pensava na minha família que tinha ficado para trás e que pode morrer a qualquer momento.” O pai, a mãe e quatro irmãos continuam no território palestino —uma quinta irmã vive na Turquia.

Formada em literatura inglesa, Samira havia deixado Gaza em 2020 e migrado para a Turquia em busca de um lugar mais seguro para viver. Lá, casou-se com o também palestino Ahmed Abuharbid, 31 anos, mestre em administração hospitalar.

Em julho de 2022, decidiram se mudar para Florianópolis, um lugar que consideram bonito e protegido.

Samira estava grávida de sete meses. Em setembro, Hamza nasceu, tornando-se, portanto, cidadão brasileiro. Apesar de ambos terem formação superior, ainda não são fluentes em português e tiveram de buscar alternativas como fontes de renda: ela faz bolos e tortas para uma cafeteria, e o marido trabalha como motorista de aplicativo.

Em julho deste, um ano após se mudar para o Brasil, Samira voltou a Gaza para visitar a família e apresentar o filho. Os pais e irmãos moravam em Rimal, bairro nobre ao norte da região. Foram dias alegres, com viagem à Turquia, refeições em restaurantes, passeios à beira-mar e a festa de aniversário de um ano de Hamza.

Até que, em 7 de outubro, um sábado, enquanto os avós brincavam com o neto na confortável sala de sua casa, o Hamas atacou Israel. O grupo fundamentalista islâmico, considerado uma organização terrorista por Israel, União Europeia, Estados Unidos e outros países ocidentais, assassinou ao menos 1.200 pessoas e levou outras 240 como reféns para dentro de Gaza. Israel reagiu primeiro com bombardeios e, há três semanas, com uma ampla incursão por terra.

Dias depois, um funcionário da embaixada brasileira ligou para Samira perguntando se ela e o filho queriam deixar a Faixa de Gaza, já que o menino é brasileiro. Ela não hesitou. “Meu pai disse: ‘Não quero que você e seu filho morram aqui. Seu marido está esperando vocês no Brasil’.”

Medo e longa espera

No início do conflito, a família de Samira permaneceu em sua casa, em Rimal. Depois, foram para a residência de amigos, onde se sentiam mais seguros. A escolha se mostrou acertada. “Logo vimos nos jornais a casa dos meus pais destruída.” O bairro foi atingido pelos bombardeios de Israel e está em ruínas.

Na casa de amigos, ela passou pelo período mais tenso da jornada.

“A todo instante escutávamos o som de mísseis e bombas. Nenhum lugar era seguro, nem hospitais, nem escolas.”

Toda vez que ouvia o barulho das bombas, Hamza se assustava: encolhia todo o corpo e colocava as mãos na frente do rosto, como se estivesse tentando se proteger.

Em 12 de outubro, o exército de Israel deu um ultimato para que os habitantes do norte migrassem para o sul, sugerindo que a região seria atacada. A família de Samira seguiu então até Khan Younis, cidade próxima à fronteira com o Egito. O percurso de 30 quilômetros costumava ser feito em 40 minutos. Mas dessa vez durou mais de duas horas.

“As estradas estavam destruídas. Esperávamos que eles nos matassem a qualquer momento”, recorda. Depois que chegaram, o carro em que viajavam também foi destruído.

Eles se refugiaram em um acampamento em uma escola de Khan Younis, mesmo local onde estavam outros brasileiros. Alternavam dias no acampamento com dias na casa de amigos. Samira já não encontrava leite nem fraldas para o filho. E praticamente tudo o que tinham para comer era um biscoito industrializado de tâmaras. “Era nosso café da manhã, almoço e jantar”.

A partir de então, Samira ficou na expectativa pelo resgate do governo brasileiro. Mas até deixarem Gaza pela passagem de Rafah, houve outros momentos de muita tensão. Primeiro, receberam a informação de que iriam deixar o enclave na manhã seguinte.

“Mas ninguém apareceu. Na segunda tentativa, fomos até a fronteira e ficamos 12 horas esperando, mas tivemos que voltar, pois a fronteira não abriu. Não comi nada, nem mesmo os biscoitos, pois queria deixar para meu filho.”

Só na terceira tentativa cruzaram a fronteira. Uma das lembranças mais marcantes de Samira foi sua primeira refeição completa depois de muito tempo.

“Nós comemos peixe. Mas só conseguia pensar em todos que permaneciam em Gaza, principalmente minha família, que não tinham o que comer”.

Resgate da família

Samira frequenta o primeiro nível de um curso de português para estrangeiros na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para conversar com a reportagem, levou um papel com anotações que não queria esquecer.

“Primeiramente, quero agradecer ao presidente do Brasil, presidente Lula da Silva, à Força Aérea Brasileira e a todos que nos ajudaram a sair de Gaza. Meu filho e eu nos sentimos seguros aqui”, escreveu.

E frisou o que espera do governo brasileiro.

“Todos em Gaza correm risco de morte. Tenho medo pela minha família. Espero que o Brasil possa resgatá-los. Não quero que eles morram.”

As sensações contraditórias de alívio por estar a salvo e angústia pelos que ficaram em Gaza perpassa quase todas suas falas.

O Brasil está preparando uma nova lista de interessados em deixar o território palestino para apresentar a Israel e Egito, que precisam autorizar a saída de estrangeiros. Ainda é preciso, segundo o Itamaraty, verificar seus documentos e se cumprem os requisitos para cruzar a fronteira.

Enquanto isso, Samira está aflita porque não consegue se comunicar com a família desde que deixou Gaza.

“Uma das coisas mais difíceis é não ter notícias da minha família, dos amigos. Não sei se estão vivos ou mortos. A única coisa que posso fazer é rezar.”

Ela também não tem notícias da sua melhor amiga, Shorouq, a quem tentou ligar muitas vezes. Mas já sabe que alguns primos e uma amiga morreram no conflito: “A Viola era cristã e foi se refugiar em uma igreja, que acabou sendo bombardeada.”

Samira tem o visto de residência permanente e vai solicitar o passaporte brasileiro. Como o filho nasceu no Brasil, ela também tem direito à cidadania, desde que cumpra alguns requisitos: precisa estar vivendo no país há pelo menos um ano e ser aprovada em uma prova de português. Por enquanto, pretende permanecer em Florianópolis. Ela deseja muito retornar a Gaza. Mas só faria isso após a criação de um Estado palestino.

Desde que chegou em Florianópolis, Samira diz que mal consegue dormir, pois está sempre pensando na família e no conflito. “E quando durmo, tenho pesadelos com a guerra.” Ela chegou na capital catarinense em uma quarta-feira à tarde. Era 15 de novembro, feriado da Proclamação da República, com fortes chuvas caindo na cidade. “Até o barulho da chuva me lembra das bombas caindo.”


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