04/05/2024 - Edição 540

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Senado rejeita megadecreto de Milei

Presidente argentino segue passos de Bolsonaro ao semear a fome e pode ter governo curto

Publicado em 15/03/2024 11:44 - DW, Leonardo Sakamoto (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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O Senado da Argentina rejeitou na quinta-feira (15/03) o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) assinado em dezembro do ano passado pelo presidente Javier Milei, que visa desregulamentar a economia do país.

O megadecreto foi rejeitado por 42 votos contra, 25 a favor e quatro abstenções, e segue agora para votação na Câmara dos Deputados, o que significa que, por enquanto, continua em vigor.

O DNU – um tipo de ordem em caráter de urgência que o presidente pode emitir em ocasiões específicas – sobre as “bases para a reconstrução da economia argentina” foi assinado por Milei em 21 de dezembro, poucos dias depois de ele assumir a presidência.

O decreto, juntamente com o projeto da chamada lei omnibus, forma o núcleo das ambiciosas reformas desejadas por Milei, que visam a revogação de cerca de 80 leis e modificam outras 300 regulamentações.

As reformas enfrentam a resistência de grande parte da oposição, tanto no Congresso quanto entre os governadores dos estados. Após ser rejeitado pelos senadores, o projeto deverá enfrentar dificuldades também na Câmara, onde o governo também não tem maioria.

Entraves legais e políticos

O (DNU) 70/2023 inclui a revogação do regime de empresas estatais e regulamentos que impedem a privatização de empresas públicas, a revogação da lei do aluguel, a possibilidade dos clubes de futebol se tornarem sociedades anônimas e a autorização da transferência total ou parcial da participação acionária da Aerolíneas Argentinas.

O decreto também revoga a Lei de Abastecimento, que prevê sanções contra empresas em casos de escassez de determinados produtos, bem como a Lei de Gôndolas, que obriga os supermercados a oferecer um número mínimo de produtos fabricados por pequenas empresas.

Além disso, as medidas incluem a reforma do Código Aduaneiro para “facilitar” o comércio internacional e “proibir a proibição de exportações”, nas palavras do presidente populista de direita.

Um capítulo do decreto que se refere a uma reforma trabalhista foi suspenso por um tribunal a pedido dos sindicatos. Outros aspectos foram contestados na Suprema Corte do país pelo estado de La Rioja. Os juízes, porém, ainda não se pronunciaram a respeito da constitucionalidade do DNU.

Segundo revés no Congresso

Além do decreto, Milei enviou ao Congresso em dezembro uma minuta da Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos, a chamada lei omnibus, com uma série de medidas e reformas abrangentes que incluíam a transferência ao Executivo de poderes que pertencem ao Legislativo.

A lei, no entanto, não conseguiu avançar devido à falta de um acordo entre oposição e do governo sobre vários aspectos do projeto. No início de fevereiro, o megapacote retornou ao estágio inicial de tramitação quatro dias depois de ter sido aprovado em termos gerais.

Após o fracasso na Câmara dos Deputados, Milei propôs em 1º de março aos governadores a assinatura de um novo “pacto fundacional”, com dez pontos referentes a temas econômicos e políticos, na condição de que seja aprovado um novo acordo sobre questões fiscais, assim como uma nova versão da lei omnibus.

“Traidores da pátria”

Esta foi a primeira vez em 30 anos que um DNU foi rechaçado por uma das casas do Legislativo, que por lei, deve analisar os decretos do Executivo em caráter de urgência. Após a rejeição no Senado, Milei, em postagem na rede social X, chamou de “traidores da pátria” os parlamentares que votaram contra o pacote.

A ministra da Segurança, Patricia Bullrich, criticou a “resistência à mudança e a defesa dos privilégios” e disse que o governo não retrocederá das reformas.

O ministro da Economia, Luis Caputo, afirmou também através do X que “ir contra o DNU é ir contra o voto do povo argentino, os 56% que querem a mudança”. “Os mesmos de sempre não querem perder os privilégios de sempre.”

O porta-voz de Milei, Manuel Adorni, disse que se o decreto for rechaçado na Câmara o governo possui um “plano B e um plano C”.

Milei segue passos de Bolsonaro ao semear a fome e pode ter governo curto

O presidente Javier Milei é um homem de palavra. Disse na campanha eleitoral que cortaria gastos e daria um choque na Argentina a qualquer custo e está cumprindo a promessa – mesmo que o preço disso seja a fome da classe trabalhadora.

O nosso vizinho está imerso em crises econômicas há décadas, geridas por governos à direita e à esquerda. E mudanças duras eram esperadas. O problema é que as medidas de Milei, que culpa o tamanho do Estado pelo aumento da pobreza, afetam principalmente os mais vulneráveis.

Ele cortou subsídios de transporte e de combustíveis, liberou preços e reajustes de aluguel, fez uma revisão ruim dos benefícios sociais. A moeda sofreu uma grande desvalorizacão, a inflação e os juros estão nas alturas, bem como o endividamento das famílias. Faltam alimentos, sobra fome e até os restaurantes populares, que servem comida subsidiada, vivem uma crise.

Entre dezembro e janeiro, a taxa de pobreza passou de 49,5% para 57,4%, o patamar mais alto desde 2004, segundo o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina. A tendência é que passe de 60% neste mês.

A última vez que a taxa chegou na casa dos 70% foi em 2002 com a crise que levou à renúncia do então presidente Fernando de la Rúa. Ele não conseguiu resolver os problemas sociais e econômicos e fugiu da Casa Rosa de helicóptero em dezembro de 2001.

O Congresso argentino negou a Milei o seu pedido por poderes despóticos, bem como o direito de baixar reformas como a trabalhista, a política e a eleitoral sem discussão com os parlamentares. Enfurecido, comprou briga com governadores e continua xingando a classe política, mesmo tendo minoria no Legislativo.

Para manter o suporte de seus seguidores radicais, vem adotando uma tática bem conhecida por quem viveu sob o bolsonarismo: a cortina de fumaça. Fechou, por exemplo, a Télam, a mais antiga agência pública de notícias e, em uma cena ridícula, mandou a polícia cercar seus escritórios. A extrema direita foi ao delírio. Mas o estômago dos trabalhadores não parou de roncar.

A inflação e a fome são capazes de derrubar governos – ou impedir que eles não se reelejam. Não foi o rótulo de “genocida” ou de “golpista” que fez Jair perder para Lula em 2022, mas o de “Bolsocaro”.

Uma das coisas que mais irritavam o ex-presidente brasileiro eram os dados da pesquisa Vox Populi encomendada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que apontou a fome escalando de 19 milhões, no final de 2020, para 33,1 milhões no início de 2022.

Ficaram célebres como registro da fome as cenas de pessoas disputando ossos e carcaças no Rio de Janeiro e revirando a caçamba de caminhão de lixo em Fortaleza. Seguidores mais radicais chegaram a dizer nas redes que o PT havia contratado atores para fingir que estavam buscando comida apenas para atrapalhar o “mito”.

Por enquanto, Milei ainda tem o voto de confiança de uma parte do eleitorado, mas isso vai se esgotando à medida em que a carne bovina se torna apenas uma lembrança distante.

Por mais que ele tenha criminalizado protestos de rua, pode chegar o momento, se o contexto econômico não melhorar, que a população desesperada saíra de casa em peso, atendendo o chamado dos sindicatos e da oposição, para exigir sua cabeça. A pergunta é: se isso acontecer, ele fugirá também de helicóptero?


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