04/05/2024 - Edição 540

Mundo

Brasil trabalhará com Portugal para adotar medidas concretas de reparação

Revolução dos Cravos deu fim à regime de extrema direita com ligações com a ditadura brasileira

Publicado em 25/04/2024 10:51 - Jamil Chade (UOL), Matheus Gouvea de Andrade (DW) – Edição Semana On

Divulgação Ricardo Stuckert/PR

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O governo brasileiro já entrou em contato com Portugal para debater formas de transformar o reconhecimento pelos crimes cometidos durante a escravidão em ações concretas de reparação. A informação foi dada pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Segundo a ministra do governo Lula, a declaração do chefe de Estado português é “realmente importante e contundente”. “Pela primeira vez estamos fazendo um debate desta dimensão em nível internacional”, disse Anielle Franco.

Ela destacou que a reação portuguesa é “fruto de séculos de cobranças da população negra”. O gesto do presidente português ainda ocorre uma semana depois da reunião do Fórum de Afrodescendentes na ONU, em Genebra.

“Esse tema foi central, e muitas organizações do movimento negro cobraram uma posição mais firme de Portugal, justamente sobre esse tema”, disse.

Segundo ela, a declaração do presidente de Portugal “deve vir seguida de ações concretas”. Sua avaliação é de que o país europeu se comprometeu a seguir esse caminho.

“Nossa equipe já está em contato com o governo português para dialogar sobre como pensar essas ações e quais passos serão tomados”, explicou.

Chanceler viaja para Portugal e movimento cobra na ONU reparações

A declaração ainda ocorre às vésperas da chegada do chanceler brasileiro, Mauro Vieira, em Lisboa. Nesta quinta-feira, ele participa das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos. A esperança dos portugueses, porém, era de que a data marcasse uma visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A postura do governo português ocorre uma semana depois que entidades de mulheres negras do Brasil cobraram do país europeu a responsabilização por séculos de escravidão e pedem que Lisboa se comprometa com ações de reparação.

O Instituto Marielle Franco, o Odara – Instituto da Mulher Negra, as Redes da Maré, o Fundo Agbara, os Movimento Mulheres Negras Decidem e o Observatório da Branquitude protestaram contra a diplomacia portuguesa e manifestaram a “profunda irresignação diante da ausência absoluta de posicionamento da República Portuguesa a respeito de medidas concretas de reparação à população negra brasileira pelos danos profundos causados pela escravização e o tráfico transatlântico, graves crimes contra a humanidade”.

A declaração havia sido emitida depois que o governo de Portugal, durante os debates na ONU, fez um discurso de combate ao racismo. Mas não assumiu qualquer compromisso e nem ofereceu medidas de reparação diante da escravidão.

Segundo a delegação portuguesa, o combate ao racismo é uma prioridade no país. Portugal admitiu que esse fenômeno “tem uma história”. Mas, naquele momento, se limitou a dizer que se trata de uma “história do comércio transatlântico de escravos, que acreditamos ter constituído um crime contra a humanidade e a história do colonialismo”.

A diplomacia portuguesa admitiu a “importância de olhar para o passado e processos de reconciliação”. Mas insistiu que tem os “olhos no futuro” para “soluções concretas” para que os afrodescendentes tenham seus direitos respeitados.

Diante da fala, a reação das mulheres negras brasileiras foi quase imediata. “Durante o período de vigência do sistema escravocrata português, mais de um milhão de pessoas foram sequestradas de diferentes partes do continente africano, sendo imediatamente submetidas a diferentes formas de discriminação e violência”, disseram as entidades.

“Hoje, a população negra brasileira conforma a maior população negra em diáspora justamente por conta desse processo. Mesmo após a abolição formal da escravatura, em 13 de maio de 1888, a população negra segue profundamente estigmatizada e negada de exercer plenamente diversos de seus direitos mais fundamentais”, afirmam.

Segundo elas, a expansão portuguesa “é indissociável da escravatura”. “É fundamental que Portugal – Estado que se beneficiou social, econômica, política e culturalmente de um sistema colonial de poder e da exploração negra – se responsabilize e ofereça respostas efetivas voltadas à memória, verdade, justiça, reparação e não repetição”, defenderam.

Durante o evento, as entidades apresentaram as seguintes demandas ao Estado português:

– Adotar medidas reparatórias concretas e intersetoriais em resposta aos impactos estruturais do colonialismo, da escravatura e do tráfico transatlântico para a realidade brasileira, incluindo a criação de museus, centros de memórias e outros equipamentos públicos que reconheçam os impactos da colonização sobre a população afro-brasileira;]

– Incluir no currículo oficial da Rede de Ensino portuguesa a obrigatoriedade da temática “História dos Impactos Nocivos do Colonialismo Português para o Contexto Brasileiro”;

– Comprometer-se publicamente com a adoção dessas medidas;

– Firmar pactos e acordos de colaboração efetivos com o Brasil – bem como junto a outros países que foram colonizados por Portugal – com o objetivo de promover a reparação a partir de investimentos financeiros, da salvaguarda de memórias e de revisão dos pactos e parcerias de nacionalidade e trânsito entre os países;

– Encorajar todos os países da Europa fundados a partir de sistemas coloniais a adotar medidas reparatórias aos países do Sul Global que se fundaram a partir da exploração colonial;

– Adotar medidas efetivas de combate à xenofobia e ao racismo contra a população afrodescendente em Portugal.

Corte Europeia acata denúncia de racismo contra Justiça portuguesa

A Corte Europeia de Direitos Humanos aceitou a denúncia feita por advogados brasileiros que acusaram a Justiça portuguesa de “colonialismo” e racismo em um processo contra um angolano.

Conduzida por dois advogados brasileiros e integrada por ex-juízes do tribunal europeu, a queixa se refere ao polêmico luso-angolano Álvaro Sobrinho e se arrasta por mais de 13 anos nas cortes portuguesas.

A decisão de acatar o caso foi comemorada pela defesa. 98% das denúncias que chegam ao tribunal a cada ano são declaradas como inadmissíveis.

Conhecido no meio jurídico português como o “Processo do Preto”, o caso envolve o empresário com investimentos em empresas como a YooMee Africa e Hotspur Geothermal no Reino Unido, um Banco de Investimento nas Ilhas Maurício, investimentos imobiliários na Alemanha e na Suíça, além de projetos nas áreas hoteleira e financeira em Angola.

Junto com sua expansão, porém, vieram os processos. Desde 2010, ele é acusado de abuso de confiança, lavagem de dinheiro e associação criminosa.

Sobrinho foi o presidente executivo do Banco Espírito Santo Angola (Besa), e acusado de ser o responsável por desvios de fundos ocorridos durante sua gestão. A denúncia é que sua administração precipitou a queda do Banco Espírito Santo, em Portugal, um dos maiores do país e que chacoalhou com o sistema financeiro.

O caso ainda implicou a Suíça, já que o empresário foi acusado de ter usado o sistema financeiro local para transferir os fundos. A denúncia era que, às vésperas da queda da instituição, ele transferiu para os cofres suíços cerca de US$ 400 milhões. Os procuradores em Berna congelaram as suas contas bancárias e os seus imóveis.

O vazamento de documentos do Suisse Secrets revelou ainda que Sobrinho abriu 12 contas no banco Credit Suisse, sendo que a maior delas tinha 78 milhões de francos suíços.

O ex-banqueiro foi investigado e, em 2021, o Ministério Público da Confederação arquivou o caso.

Em Portugal, porém, novas medidas foram adotadas contra ele a partir de 2022, no mesmo processo com 24 volumes e uma acusação de mais de 800 páginas, com a afirmação do juiz Carlos Alexandre de que se tratava de um “ato de fé”.

Racismo, colonialismo e prepotência, diz defesa

Para a defesa, trata-se de uma iniciativa “que viola gravemente os direitos garantidos pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, nele figurando discriminação pelo racismo, colonialismo e prepotência, que transcende o caso concreto”.

A petição da defesa, assinada pelos advogados brasileiros Rafael Valim e Walfrido Warde e pelo ex-juiz da Corte Europeia e do Tribunal Supremo da Espanha, Javier Borrego, ainda cita um “problema sistêmico” no judiciário português.

O processo contra o angolano foi iniciado em 2010 pelo procurador português Orlando Figueira, que anos depois, seria condenado a seis anos de prisão por corrupção.

O caso ainda tem o papel central do juiz Carlos Alexandre que, nos últimos anos, se transformou numa personalidade midiática e frequentemente associada ao ex-juiz brasileiro Sergio Moro, hoje senador.

Em 2022, depois de 11 anos de tramitação do processo, o juiz Carlos Alexandre, do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, determinou o pagamento de uma caução de 6 milhões de euros, o maior valor já aplicado em Portugal. Também exigiu que Sobrinho se apresente a cada seis meses diante das autoridades portuguesas, proibiu de a saída do Espaço Schengen e determinou entrega de todos seus passaportes.

Nos documentos entregues à Corte Europeia e obtidos com exclusividade pelo UOL, a defesa de Sobrinho acusa os portugueses de “racismo”.

Sobrinho teria sido o único a sofrer medidas de coação, ainda que os demais acusados no mesmo processo tenham sido denunciados por crimes de maior gravidade. Segundo a defesa de Sobrinho, todos os demais são brancos. Os advogados lembram ainda que seu pai era o líder nacionalista de Angola, Carlos de Oliveira Madaleno.

A defesa questiona também a decisão de Portugal de confiscar o passaporte angolano do suspeito, alegando até mesmo “pirataria”. Para eles, o passaporte é um documento do Estado que o emite. Portanto, não estaria prevista na norma portuguesa o confisco de um passaporte de um país estrangeiro.

Para seus advogados, a dimensão “racista” é evidente. Caso ainda ocorre em meio a um debate sobre os 50 anos das independências das colônias portuguesas e de intensas acusações contra movimentos políticos de estarem instrumentalizando a xenofobia. Por esse motivo, segundo a defesa, Sobrinho decidiu acionar a Corte Europeia.

Revolução dos Cravos deu fim a regime com ligações no Brasil

Em 25 de abril de1974, a Revolução dos Cravos derrubava em Portugal o regime conhecido como Estado Novo. Iniciado em 1933, o regime, também chamado de salazarismo, possuía grande ligações com o Brasil, influenciando até movimentos políticos na antiga colônia. Hoje, 50 anos após o fim da ditadura portuguesa, o tema é alvo de fortes discussões em um momento no qual amplos setores da sociedade pressionam para que Portugal revisite seu passado.

O Estado Novo português é com frequência comparada com o período homônimo brasileiro, sob o comando de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, incluindo a arquitetura de ambos na época. Segundo o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Francisco Carlos Palomanes Martinho, a característica fundamental em comum dos dois governos é o corporativismo.

“São regimes com pendor autoritário e antiliberal, que contavam com um modelo de interesses a partir do Estado. Havia uma estrutura verticalizada com grande controle dos sindicatos”, afirma. Por outro lado, o professor lembra que, no caso do português, o papel da Igreja Católica, um dos pilares do salazarismo, foi bem mais importante que no regime de Vargas.

Neste contexto, ganhou força o movimento integralista brasileiro, comandado por Plínio Salgado, que foi retomado por setores políticos brasileiros nos últimos anos. O professor de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná Gilberto Grassi Calil aponta que o salazarismo e o integralismo brasileiro faziam parte do mesmo campo ideológico do fascismo internacional ascendente nas décadas de 1920 e 1930.

Com o rompimento entre os integralistas e Vargas e a fracassada “intentona integralista” de maio de 1938, Salgado se exilou em Portugal e reforçou seus laços com o salazarismo, proferindo conferências e colaborando com a imprensa vinculada ao regime e à Igreja Católica, aponta Calil.

“A identificação de Salgado com o salazarismo se deu pela camada ideológica. Vale destacar a profunda vinculação entre a Igreja Católica e a ditadura salazarista e o aprofundamento dos vínculos de Salgado com diversos membros da posição católica”, pontua o professor.

Outra influência retomada na política brasileira recentemente é o lema “Deus, Pátria e Família”, usado pelo salazarismo a partir dos anos 1930, e propagado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo Calil, “é um lema tipicamente fascista”, que conta com “forte apelo emocional”. O professor destaca que “cada um de seus termos interpela seus adeptos a um combate em defesa de valores assumidos como inegociáveis”.

Exílio no Brasil após o fim do regime

António Salazar deixou o comando de Portugal em 1968, após sofrer um acidente doméstico que o incapacitou, vindo a morrer em 1970. O ditador foi substituído por Marcelo Caetano, que liderou o regime até 1974, quando a revolução comandada por militares e com amplo apoio popular deu fim ao salazarismo.

Naquela época, uma série de figuras relevantes do antigo regime, incluindo o próprio Caetano, rumou para um exílio no Brasil. Na visão de Martinho, que é autor de uma biografia sobre o líder português, uma das razões foi a língua, e o fato de se tratar de um país em que muitos poderiam seguir uma vida acadêmica ativa. “Foi um cenário de melhores empregos, e no qual foi possível seguir trabalhando”, aponta.

O professor conta que a vida de Caetano no Brasil ficou longe do ostracismo. Ele deu aulas de Direito na Universidade Gama Filho até a sua morte, em 1980, e era bem-visto por partes da comunidade portuguesa no país.

Apoio às independências

A questão colonial foi uma das mais relevantes nos anos finais do regime, e colocou o Brasil em campo oposto a Portugal. O salazarismo apostou na manutenção de suas posses em outros continentes, que ganharam o status de “territórios ultramarinos”. O resultado foi um maior isolamento de Portugal internacionalmente, e as chamadas guerras coloniais na África.

Até então, o Brasil costumava apoiar a postura portuguesa. Por sua vez, segundo Martinho, nos anos 1970, o governo brasileiro percebeu que havia grande rechaço aos interesses do país no continente africano devido à sua posição. Neste cenário, o Brasil reconheceu a independência da Guiné-Bissau em 1974, o que “foi visto como uma ingerência que incomodou Lisboa”.

Depois, o país foi o primeiro a reconhecer Angola como independente, em novembro de 1975, causando ainda mais insatisfação. Martinho aponta que o movimento brasileiro ofereceu ao país grande acesso ao novo Estado independente, especialmente para as empresas de construção civil e à Petrobrás nos anos seguintes.

Silêncio sobre passado colonial

A postura salazarista em relação às colônias sempre se apoiou em uma visão de que Portugal não foi um colonizador tão ruim em comparação com outras países. Em 1940, o regime realizou a Exposição do Mundo Português em Lisboa, na qual o Brasil era o convidado especial. Segundo Martinho, havia a intenção de apresentar o “bom colonialismo”, especialmente naquele que à época já era considerado o “país do futuro”.

Nesta época, as visões do escritor brasileiro Gilberto Freyre foram amplamente exploradas pelo salazarismo. O professor do Departamento de História do King’s College de Londres Francisco Bethencourt aponta que Salazar se apoiou nas visões do sociólogo, e o convidou para visitar as colônias portuguesas em 1950, do que resultaram vários livros.

“O lusotropicalismo, que tinha sido rejeitado nos anos 1930 e 1940, passou a ser integrado na política salazarista por conta da onda descolonizadora em uma série de países”, afirma. “A imagem que o regime de Salazar pretendia projetar era da excepcionalidade portuguesa e da ausência de colônias, que seriam territórios ultramarinos harmoniosos”, pontua Bethencourt.

Neste cenário, diferente de países como Reino Unido e Holanda, onde movimentos recordando os crimes do passado colonial emergiram nos últimos anos, em Portugal, o reconhecimento da brutalidade do período é menor. Para Bethencourt, o problema é a ausência de políticas de memória em Portugal nos últimos 50 anos, após a Revolução dos Cravos. “Houve uma espécie de pacto de silêncio não só sobre o passado colonial”, avalia.

Um dos grandes pontos de discussão são monumentos em exaltação ao período colonial, que recentemente foram derrubados em uma série de países. Em Portugal, um exemplo é o caso dos brasões do jardim da Praça do Império em Lisboa, legado do período salazarista. Na representação, constam as antigas colônias portuguesas. A prefeitura tentou acabar com a referência, o que gerou uma série de protestos, especialmente da extrema direita, que acabou vencendo a disputa.

“O resultado final foi transformar os jardins num empedrado anacrônico com os brasões das antigas colônias, um insulto aos novos países independentes”, aponta Bethencourt.

Por sua vez, nesta semana, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, sugeriu que o país considere pagar reparações por crimes cometidos durante o período colonial, em uma mudança brusca na visão tradicional do governo português.

“Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, disse.

Quando essa reparação virá ainda é uma incógnita. Após as declarações de Rebelo de Sousa, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, pediu “ações concretas” por parte de Portugal. “Nossa equipe já está em contato com o governo português para dialogar sobre como pensar essas ações e a partir daqui quais passos serão tomados”, destacou.


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