18/05/2024 - Edição 540

Especial

VÃO-SE OS ANÉIS E FICAM OS DEDOS

Chantageado pelo Centrão, Governo Lula recua em pautas ambientais e indígenas para avançar na econômica

Publicado em 26/05/2023 1:45 - Mônica Bergamo, Thiago Resende e Lucas Marchesini (Folha de SP), Josias de Souza (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Uma parte importante do núcleo duro do governo Lula já jogou a toalha e entende que o presidente precisa entregar diversos anéis para permanecer com os dedos. Ou seja, abrir mão de políticas públicas concretas e também simbólicas, como na área do meio ambiente, para conseguir avanços em ao menos um tema central: o do desenvolvimento econômico, sem o qual o governo poderá fracassar de forma retumbante.

Na análise de um integrante de primeiro escalão da equipe do petista – em conversa com a colunista da Folha de SP, Mônica Bergamo – Lula comanda hoje um governo sob cerco: enfrenta oposição dentro do aparato estatal, com uma opinião pública dividida e apenas 130 votos no Congresso —o número da bancada mais leal a ele— para defender suas pautas.

“Um parlamentar que é também dirigente do PT e amigo do presidente afirma que o governo tem hoje diversos canhões apontados para ele o tempo todo”, diz Bergamo. O governo não teria, portanto, cacife nem força para comprar todas as brigas ao mesmo tempo.

Neste contexto, a administração petista teria que evitar, por exemplo, entrar na discussão de pautas de comportamento. E deveria se “conformar” com o esvaziamento de ministérios como o do Meio Ambiente e o de Povos Indígenas que está sendo promovido pelo Congresso.

Lula deveria, assim, abrir mão “de tudo o que é secundário”, na opinião de um integrante do governo, para “centrar no desenvolvimento”, sem o qual até mesmo a democracia voltaria a correr risco.

Com sucesso econômico, o governo Lula conseguiria se fortalecer para, ao fim e ao cabo, garantir que direitos não fossem “massacrados”, diz o mesmo governista.

A derrota do governo nesta semana, diante do desmonte das atribuições dos ministérios do Meio Ambiente (de Marina Silva) e dos Povos Originários (Sonia Guajajara), é o resultado mais recente da sinuca de bico em que se encontra o Governo Lula.

A votação em regime de urgência do Marco Temporal – agendado para a semana que vem pelo presidente da câmara, Arthur Lira, é o próximo golpe. O que significa isso? Significa que o projeto não será discutido em nenhuma comissão. Não haverá audiências públicas ou qualquer tipo de contraditório. O tema vai direto para votação em plenário.

A proposta do Marco Temporal limita a demarcação das terras indígenas à terras que estavam ocupadas antes da Constituição de 88. Bolsonaro tentou aprovar este projeto durante todo o seu mandato e não conseguiu. Há sobre este tema uma ação pendente de julgamento no STF, e a ministra Rosa Weber elegeu-o como prioridade em sua gestão, marcando para junho o julgamento. Mas, o Congresso se adiantou a uma possível derrota no Supremo

O Governo federal abriu mão de pautas ambientais e indígenas para aprovar a MP que reconfigurou os Ministérios. Se a MP caísse – e o prazo de validade dela espira em 1º de junho – a esplanada voltaria ao tamanho deixado por Bolsonaro. Sob este argumento o Governo cedeu tudo. Seus prepostos, os operadores políticos do Palácio do Planalto, quando se pronunciaram, o fizeram do lado do atraso, para liberar a bancada para votar nesta atrocidade, mesmo com todo o esvaziamento do ministério de Marina Silva, com a transformação do Ministério dos Povos Indígenas num asterisco ao transferir a demarcação de terras indígenas das mãos da ministra Sonia Guajajara para as de Flávio Dino, como se isso fosse uma mudança de 6 por meia dúzia. Não é. A noite veio a complementação do golpe, quando aprovou-se o regime de urgência para a questão do Marco Temporal. Também as mãos de Flávio Dino estarão atadas.

Tudo isso acontece com um aval tácito de Lula, sob o argumento de que é preciso ceder para não amargar derrotas ainda maiores.

O que se verifica hoje é a falência do modelo em que os governos obtinham apoio do Congresso cedendo nacos da Esplanada dos Ministérios. Isso não funciona mais. Hoje, parlamentares têm acesso direto ao orçamento e cada um deles virou líder de si mesmo. Sabem que terão sua cota no orçamento e valorizam o seu voto acima das lideranças. Hoje, na prática, o governo tem que negociar com 513 deputados e 81 senadores.

Arthur Lira, observando esta nova formatação, que ele ajudou a criar durante o governo Bolsonaro, quando implementou o orçamento secreto, age como um facilitador dos parlamentares, apressando a liberação de verbas, articulando temas para votação – como ocorreu com a nova regra fiscal – e os parlamentares terceirizam este poder à ele, que o exerce para chantagear o Governo federal. Nesta semana Lira deu ao Governo a prova de que o poder é ele; o poder no Brasil, hoje, se chama Arthur Lira.

Lula está impotente diante do Congresso. Há uma oposição que não é adversária, é inimiga, pessoas ressentidas que querem prejudicar o governo. É uma oposição arcaica, e está dando as cartas.

Do céu ao inferno

Em menos de 24 horas, o governo foi do céu ao inferno. Num dia, a Câmara aprovou a nova regra fiscal do ministro Fernando Haddad com uma votação consagradora. No dia seguinte, os parlamentares invadiram o organograma do governo para impor à gestão Lula uma estrutura de dar inveja a Bolsonaro. No Meio Ambiente, por exemplo, desvirtuou-se o ambiente inteiro. Os dois extremos —o celestial e o infernal— têm algo em comum. Ambos trazem as digitais de Arthur Lira.

Dono da pauta, Lira providenciou para que as pauladas viessem depois do afago para demarcar a diferença entre o Legislativo atual e o Congresso dos dois primeiros mandatos de Lula, mais permeável e concessivo. Antes, Lula cultivava os aliados e transacionava com com adversários. Hoje, lida com inimigos. Para toureá-los, faz concessões que desnorteiam aliados e debilitam o governo.

Cavalgando uma oposição de perfil inédito, mais atrasada do que conservadora, Lira injeta 2026 no 2023 de Lula. Antecipa a sucessão em três anos e meio. O imperador da Câmara diz aos aliados que a próxima disputa presidencial será vencida por um candidato de direita. Costuma citar o governador paulista Tarcísio de Freitas.

Lira prevê que um político menos tosco do que Bolsonaro arrastará os 58 milhões de eleitores que optaram por ele no ano passado, adicionando a esse cesto os votos de centro-direita que foram para Lula porque não se identificaram com o radicalismo do capitão. Nessa equação, Bolsonaro vale mais como um cabo eleitoral inelegível do que como candidato.

O governo Lula precisa dar errado para que a bola de cristal de Lira acerte. Por isso, a boa vontade com o varejo das propostas de aroma liberal, como a regra fiscal e a reforma tributária, não se confunde com o apoio à agenda de Lula no atacado. De resto, o imperador se equipa para fazer manter o governo no cabresto, fazendo o seu sucessor no comando da Câmara.

Lira articula desde logo a eleição de Elmar Nascimento, atual líder da bancada do União Brasil, para chefiar a Casa nos dois últimos anos do terceiro mandato de Lula. Elmar obteve sob Bolsonaro o controle da Codevasf, uma estatal por onde as verbas federais escoam pelo ladrão.

Ironicamente, Lula manteve no comando da estatal o apadrinhado do candidato de Lira à sua própria sucessão. Consolidou-se na Codevasf um ninho suprapartidário de desvios que sobreviveu à alternância no Poder. Lula demora a perceber. Mas está financiando com verbas do Tesouro a pavimentação do seu próprio caminho para o inferno.

A dura realidade

Na política, você não escolhe interlocutor; dialoga com o que se oferece. Quando foi deposto pela ditadura militar da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo dos Campos, em São Paulo, Lula seguiu negociando reajuste de salários com o então ministro do Trabalho, Murilo Macedo.

Foi no início dos anos 1980. Lula fazia de conta que Macedo não era um dos seus algozes, e o ministro, que Lula ainda estava no comando do sindicato, ou que pelo menos ali ainda dava as cartas. E dava, de fato. Os dois se reuniram muitas vezes às escondidas numa fazenda de Macedo. O governo sabia, mas fingia que não.

Era importante para Lula arrancar do governo benefícios que nas assembleias do estádio da Vila Euclides prometera à massa de operários que acreditava nele. A continuidade de sua liderança dependia também disso. Ao governo interessava que a insatisfação operária não ultrapassasse os limites da região do ABC paulista.

Lula, à época, tinha seus 30 e tantos anos; agora, 77. Não deve ter desaprendido a negociar. Certamente não desaprendeu a avaliar sua força e a dos adversários. Pode ser menos paciente, a lamentar que o tempo tenha avançado tornando as coisas mais difíceis para ele. Bem, mas não foi obrigado a estar onde está hoje. Quis.

No país já existiu um regime chamado de presidencialista. Nele, acima de tudo, mandava o presidente da República. Mesmo assim, um deles matou-se porque queriam derrubá-lo. Outro renunciou porque queria mais poder. Um foi vítima de golpe. O Congresso derrubou dois por meio de um processo de impeachment.

Na prática, o semipresidencialismo foi inaugurado no governo de Temer e chegou ao ponto que está no de Bolsonaro. Para o único presidente que tentou se reeleger e não conseguiu, o fortalecimento do Congresso pouco se lhe dava. O que queria era construir um regime autoritário travestido de democracia.

Lula acabou herdando um semipresidencialismo sem responsabilidade. O Congresso pode quase tudo, jamais pôde tanto, e sua responsabilidade é zero. O governo que arque sozinho com as consequências dos seus atos. Não importa ao Congresso que a maioria dos brasileiros tenha aprovado o programa de Lula.

O que vale é o programa à base de palpites que está na cabeça da parcela mais numerosa de deputados federais e senadores. São 513 empreendedores na Câmara e 81 no Senado, cada um preocupado com seus negócios. Um Congresso de direita em confronto permanente com um presidente de esquerda.

Não tem mais mensalão ou petrolão para enfrentar dificuldades. Ou Lula abre os olhos e promove uma repactuação do poder ou não governará. Arthur Lyra, presidente da Câmara dos Deputados, tem dito isso com o refinamento típico de um diplomata das Alagoas. O pior, infelizmente, é que ele tem razão.

Afagos têm limites na conjuntura atual

O governo Lula liberou cerca de R$ 1,1 bilhão em emendas parlamentares na terça-feira (23), mesmo dia em que a Câmara dos Deputados votou o texto-base do novo arcabouço fiscal.

O novo lote de recursos para emendas priorizou deputados aliados do governo e integrantes do centrão, grupo de partidos liderado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. Foram autorizados R$ 800 milhões para deputados e R$ 288 milhões para senadores.

O pacote reúne emendas individuais –aquelas a que todos os deputados e senadores têm direito– previstas no Orçamento deste ano. Os partidos que mais receberam emendas foram PT, PSD, MDB, União Brasil, PP e Republicanos.

Os recursos foram liberados pelo Ministério da Saúde e estão previstos essencialmente para atendimento primário e assistência hospitalar. Os repasses pela pasta da saúde são mais rápidos do que os de outros ministérios por serem feitos diretamente aos municípios.

O plenário da Câmara aprovou o texto-base do novo arcabouço fiscal por 372 votos a 108. O placar mostrou uma ampla folga em relação ao mínimo de 257 votos que o governo precisava reunir para a aprovação de um projeto de lei complementar.

Na articulação política, o governo tem sido cobrado a destravar a verba para emendas diante de percalços políticos no Congresso, como a votação no início do mês na Câmara para derrubar de decretos que alteram regras do Marco do Saneamento.

Olival Marques (MDB-PA), Marreca Filho (Patriota-MA), Juarez Costa (MDB-MT) e Otto Alencar Filho (PSD-BA) estão na lista de deputados que mais receberam emendas no lote liberado na terça. Os repasses autorizados em nome deles variaram entre R$ 12,4 milhões e R$ 16 milhões.

Além deles, o ex-deputado federal Paulinho da Força (SP), vice-presidente do Solidariedade, recebeu cerca de R$ 14 milhões. A emenda de Paulinho foi apresentada no ano passado –quando ele ainda era parlamentar. Toda a bancada do Solidariedade votou a favor do arcabouço.

A distribuição das emendas na Câmara tem privilegiado aliados do governo e deputados próximos a Lira.

Considerando os recursos liberados desde o início do ano, os deputados Aluisio Mendes (Republicanos-MA) e o líder do mesmo partido na Câmara, Hugo Motta (PB), figuram na lista de mais contemplados.

Procurados, os deputados citados não responderam se votaram a favor do arcabouço fiscal por causa da liberação de verba.

De janeiro até agora, o governo liberou R$ 2,5 bilhões em emendas individuais. Apesar de serem obrigatórias, o Palácio do Planalto consegue ter uma margem de manobra para adiar os repasses para integrantes da oposição.

Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, como os deputados Capitão Augusto (PL-SP) e Bibo Nunes (PL-RS), estão entre os que menos receberam emendas –R$ 200 mil e R$ 332 mil, respectivamente.

O Orçamento de 2023 reserva R$ 21,2 bilhões para indicações de emendas individuais, feitas por deputados e senadores.

Cada deputado indicou cerca de R$ 32 milhões em emendas individuais em 2023. A cota dos senadores é de R$ 59 milhões.

Parte do Congresso e dos integrantes do governo considera que ainda é insuficiente o esforço para a liberação das emendas.

Integrantes do governo dizem que é normal começar a distribuir a partir de maio os valores de emendas. Isso porque existem prazos para apresentação e análises de propostas.

Em geral, são liberadas mais cedo as transferências de recursos do governo federal para fundos estaduais e municipais de saúde. Outros empenhos costumam levar mais tempo, como para a compra de tratores ou pavimentação de vias, que podem exigir licitações e medição.


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