18/05/2024 - Edição 540

Especial

Um país com medo

Bolsonaro ajudou a criar um país que teme por sua vida se falar de política

Publicado em 16/09/2022 9:21 - DW, Leonardo Sakamoto e Jamil Chade (UOL), RBA – Edição Semana On

Divulgação Midjourney by Victor Barone

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As eleições de 2022 têm sido marcadas por sucessivos casos de violência política. Um estudo realizado pelo Datafolha, divulgado na quinta-feira (15), traz números preocupantes sobre esse cenário. Mais de 67% dos entrevistados afirmam ter medo de serem agredidos fisicamente em razão de suas escolhas políticas.

Chama atenção o dado de que 3,2% dos entrevistados diz ter sido vítima de ameaças por suas posições políticas nos 30 dias anteriores à realização da pesquisa, conduzida entre 3 e 13 de agosto. O percentual corresponde a 5,3 milhões de eleitores, se extrapolada a amostra do estudo e considerada a população adulta.

A pesquisa Violência e Democracia: panorama brasileiro pré-eleições de 2022 foi encomendada pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram ouvidas 2.100 pessoas, em 130 municípios.

O coordenador de projetos do Fórum, David Marques, lembra que o Brasil apresenta um contexto problemático mesmo fora das eleições.

“O Brasil tradicionalmente tem problemas com relação à proteção de pessoas que se envolvem nesse universo da política e afrontam, de alguma forma, o poder econômico e político no país”, afirma.

De acordo com a ONG Global Witness, o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking de países com mais assassinatos de ativistas ambientais, por exemplo.

Marques ressalta que a especificidade do momento atual é a disseminação do medo de sofrer violência política na sociedade como um todo, e não apenas entre lideranças políticas e jornalistas.

“A gente tem vivido um cenário de bastante polarização política, principalmente a partir de 2014, com pontos altos em 2018. Nos últimos quatro anos, o debate político se tornou bastante acirrado e agressivo. Essa configuração da nossa arena política tem se refletido na sociedade, nas relações interpessoais”, observa.

Violência pode aumentar

O pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública assinala que há um risco elevado de escalada da violência conforme a eleição se aproxima – com possibilidade de se tornar ainda mais agravada em um eventual segundo turno da eleição presidencial.

“Temos lideranças políticas no Brasil que incentivam essa agressividade, que apostam nessa agressividade como ferramenta de luta na arena política. Esse cenário reforça o papel dos órgãos de segurança pública em fazer a contenção desse momento político delicado, como instituições de Estado que são”, diz.

Na semana passada, o trabalhador rural Rafael Silva de Oliveira, de 24 anos, foi presso após confessar ter assassinado um colega de trabalho durante uma discussão sobre política em uma chácara no Mato Grosso.

Em depoimento à polícia, Rafael, que é apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL), disse ter dado ao menos 15 facadas na vítima, Benedito Cardoso dos Santos, de 42 anos. O assassino utilizou um machado para tentar decapitar Benedito, apoiador de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Por meio de uma rede social, Lula lamentou o episódio e prestou condolências aos familiares de Benedito. “A intolerância tirou mais uma vida. O Brasil não merece o ódio que se instaurou nesse país”, afirmou.

Sem ter comentado o crime, o presidente Bolsonaro adotou um tom violento contra o Partido dos Trabalhadores em discurso realizado dois dias após o assassinato.

“O PT, esta praga sempre está contra a população. Este pessoal não produz nada, só gera desgraça para o povo. Com esta nossa reeleição, pode ter certeza, varreremos para o lixo da História este partido”, bradou o presidente, provocando aplausos e gritos de apoio da plateia.

Em julho, um caso semelhante foi registrado em Foz do Iguaçu (PR), quando o guarda municipal Marcelo Arruda foi morto a tiros pelo agente penitenciário Jorge Guaranho. Apoiador de Bolsonaro, Guaranho invadiu a festa de aniversário da vítima ao saber que a comemoração tinha como tema Lula e o PT.

Na última semana, Ciro Gomes (PDT), candidato à Presidência, e Guilherme Boulos (Psol), candidato a deputado federal por São Paulo, denunciaram ameaças de bolsonaristas durante eventos públicos de campanha. Em ambos os casos, os agressores diziam estar armados.

Apoio maciço à democracia

A pesquisa realizada pelo Datafolha trouxe indicadores positivos sobre o apoio dos brasileiros à democracia. Quase 90% dos entrevistados concordam que o vencedor das eleições nas urnas deve ser empossado em 1º de janeiro de 2023.

O estudo detalha que 89,3% dos entrevistados concordam com a frase “o povo escolher seus líderes em eleições livres e transparentes é essencial para a democracia”, enquanto 88,5% concordam que “o povo ter voz ativa e participar das principais decisões governamentais é essencial para a democracia”.

Os dados ganham destaque em um momento de questionamento da transparência das eleições e da confiabilidade das urnas eletrônicas por Bolsonaro e segmentos da sociedade brasileira.

A cientista política Mônica Sodré, diretora-executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, avalia que o Brasil está inserido em uma onda global de “autocratização”, caracterizada pela erosão interna das instituições.

“Isso vem pela tentativa de revisionismo histórico científico em material didático, pela tentativa do Estado de ter mais vigilância e controle sobre o dia a dia dos cidadãos, vem quando a gente ataca as instituições, as eleições, descredibilizando o processo”, detalha.

Em relatório publicado em 2019, o instituto V-Dem, um dos principais centros de estudos globais sobre a democracia, rebaixou o Brasil da posição de “democracia liberal” para a posição de “democracia eleitoral”. “Na prática, isso significa que a saúde e a qualidade da nossa democracia estão em decréscimo”, explica Sodré.

De acordo com a pesquisadora, o embasamento da pesquisa do Datafolha em uma metodologia científica minuciosa permite assegurar que as vozes de contestação ao processo eleitoral no Brasil não podem ser consideradas representativas da sociedade. No entanto, ela ressalta a importância da defesa permanente da democracia.

“A sociedade civil, partidos políticos, lideranças políticas, empresários, todos precisam estar atentos e vigilantes. A democracia é uma conquista civilizatória, relativamente recente. Nada garante que ela vá permanecer, e a tarefa de todos nós é sermos vigilantes e defendê-la”, alerta.

Bolsonaro ajudou a criar um país que teme por sua vida se falar de política

“Costumo encarar o que acontece comigo em períodos de comoção política como uma espécie de termômetro da propensão à violência no país. Quando fui alvo de frutas podres, em agosto, virei para o colega jornalista que estava ao meu lado e comentei que, enfim, a eleição presidencial havia começado. Semana passada, saindo do mercado, fui abordado por dois caras que me pararam para dizer que “lixos como você não vão durar muito”. Considerando que no segundo turno entre Bolsonaro e Haddad, em 2018, fui abordado três vezes perto de casa com ameaças de morte, podemos dizer que a situação ainda vai piorar bastante”, afirmou o jornalista Leonardo Sakamoto, do UOL.

Dessa forma, os 67,5% dos entrevistados que responderam ao Datafolha afirmando que têm medo de serem agredidos fisicamente pela sua escolha política ou partidária ainda devem aumentar. Principalmente, porque o presidente da República vem estimulando essa violência.

Ou seja, antes que o deputado Douglas Garcia partisse para cima da jornalista Vera Magalhães, que estava trabalhando no debate dos candidatos ao governo do Estado de São Paulo, no final da noite desta terça. Copiando os ataques que Bolsonaro fez a ela durante o debate presidencial na TV Bandeirantes, no dia 28 de agosto, gritou que ela era uma vergonha do jornalismo brasileiro, contou mentiras sobre sua remuneração, entre outros absurdos.

Isso significa que a maioria do eleitorado, principalmente aquele que não vota no presidente, tem medo de ir às ruas defender votos em seus candidatos. Eleições livres? Nem de longe.

Durante as eleições de 2014 e o processo de impeachment de Dilma Rousseff, dizia-se que não tínhamos que nos preocupar com a violência fomentada nas redes sociais porque era “só a internet”. “Eu que já fui cercado e apanhei na rua em uma ocasião, fui cuspido em outra e levei uma garrafada na cabeça em ainda outra tentava explicar que não era bem assim”, diz Sakamoto.

A percepção coletiva de que a violência on-line transbordava e se tornava off-line veio forte há quatro anos, com os tiros contra a caravana de Lula na região Sul do Brasil, com a facada contra o então candidato Jair Bolsonaro, com a morte do músico Moa do Katendê pelas mãos de um bolsonarista por ter votado em Fernando Haddad.

E não nos abandonou mais. Mas, agora, nas eleições, ela tende a escala a novos patamares.

No dia 8 de setembro, o Brasil produziu o segundo cadáver por ódio político desta eleição. Coincidentemente, a briga que levou ao crime começou algumas horas após o presidente da República defender, em comício na praia de Copacabana, que era necessário “extirpar da vida pública” adversários políticos da esquerda.

A Polícia Civil de Mato Grosso informou que Benedito dos Santos, eleitor de Lula, foi morto por Rafael de Oliveira, apoiador de Bolsonaro, após uma discussão política entre ambos na zona rural de Confresa, no nordeste do Estado, descambar para a briga na noite de 7 de setembro. “O que levou ao crime foi a opinião política divergente”, afirmou o delegado Victor Oliveira. Foram 15 facadas na cabeça e uma machadada no pescoço.

O presidente já havia sido duramente criticado após o assassinato do tesoureiro do PT e guarda civil Marcelo Arruda pelo agente penitenciário bolsonarista Jorge Guaranho, em Foz do Iguaçu (PR), no dia 9 de julho. Guaranho ficou sabendo da festa de aniversário de temática lulista de Arruda e foi lá provocar. O caso terminou com o petista morto e o bolsonarista preso.

É ignorância ou má fé afirmar que tanto Lula quanto Bolsonaro são igualmente responsáveis pelo aumento da violência de cunho político. Não são.

Com os dois casos e os constantes ataques a Vera Magalhães, Bolsonaro tem sido bastante cobrado para pedir a seus apoiadores em todo o Brasil baixarem as armas – e, neste caso, isso não é uma força de expressão.

Mas, ao invés de condenar a violência e pedir para que seus seguidores e os demais brasileiros desarmem os espíritos para a eleição, Bolsonaro vai no sentido contrário.

A sobreposição dos discursos de lideranças políticas, religiosas e sociais ao longo do tempo, fomentando ódio contra políticos, magistrados, jornalistas, entre outros, distorce a visão de mundo de seus seguidores e torna a agressão “necessária” para tirar o país do caos e extirpar o “mal”, alimentando a violência.

Da mesma forma, a sobreposição de discursos afirmando que o crime não tem relação política acaba por normalizar a violência política, que passa a ser encarada como briga de bêbado na esquina. Com isso, pessoas como ele ajudam a semear ainda mais sangue em uma eleição que será marcada por tumultos.

Com isso, chegamos ao ponto de que sete a cada dez brasileiros têm medo de apanhar por ter opiniões. O presidente ajudou a criar uma sociedade que teme por sua própria vida simplesmente por defender um posicionamento político.

A esperança de futuro trazida pela pesquisa é que os mais jovens, entre 16 e 24 anos, são os que mais abraçam uma agenda de direitos humanos, civis e sociais. Que essa geração seja capaz de enterrar a ignorância cultivada pelas anteriores e a sepultar a estúpida política do mais forte.

Brasil é um dos países que mais ameaça sua democracia

Estudo do instituto Variedades da Democracia (V-Dem), da Suécia, coloca o Brasil em uma lista de 12 países em situação de mais séria ameaça à democracia. De acordo com a análise, o viés autoritário do presidente Jair Bolsonaro é o que dá fundamento à conclusão de que as instituições brasileiras estão sob sério risco. “Partidos contrários à pluralidade política levam o país no sentido da autocracia.” Além do Brasil, o rol inclui Polônia, Níger, Indonésia, Botswana, Guatemala, Tunísia, Croácia, República Tcheca, Guiana, Ilhas Maurício e Eslovênia.

A Hungria é tratada pela entidade como um caso à parte. Governada pelo par ideológico de Bolsonaro, Viktor Orbán, o país do Leste Europeu já é considerado uma autocracia e não pode ser considerada democrático. Com Bolsonaro, o Brasil segue para o mesmo caminho.

O V-Dem aponta que, antes de uma ruptura ditatorial, as democracias tendem a sofrer com erosões progressivas. E ressalta que a ascensão de regimes que nutrem desprezo pela democracia está relacionada com a ascensão da extrema direita no mundo.

Os países que mais sofreram decadência democrática foram Brasil, Polônia, Hungria, Índia e Turquia. Todos eles viram a situação se degradar a partir da década de 2010. No Brasil, o cenário se desgastou severamente a partir de 2015, ano em que se iniciou o processo de golpe parlamentar contra a presidenta reeleita Dilma Rousseff (PT). A queda maior, indica o estudo, veio em 2018, ano da eleição de Bolsonaro.

Polarização e desinformação

A polarização política a partir da disseminação sem limites de discursos de ódio também tem relação com o enfraquecimento da democracia nos países apontados. Em 2011, apenas cinco nações apresentavam uma “polarização tóxica em ascensão”, de acordo com V-Dem. Já em 2021, 32 países apresentam o mesmo cenário.

Outro aspecto abordado pela pesquisa: em 2012, 42 países viviam em democracias consideradas avançadas. Contudo, o mesmo estado de plenitude do regime caiu para 34 no ano passado. Atualmente, apenas 14% da população mundial vive sob uma democracia sólida. “O declínio democrático é especialmente evidente na Ásia, Leste Europeu, Ásia Central, América Latina e Caribe”, relata a entidade.

Outro ponto de destaque do estudo é a escalada planetária de desinformação e fake news, tanto nas disputas eleitorais, como pelos próprios governos instituídos. “Governos aumentaram o uso de desinformação para manipular a opinião pública doméstica e internacional”, aponta o instituto sueco.

A entidade destaca as manifestações de “evidente caráter golpista”, como as observadas no Brasil nos dois últimos feriados de 7 de setembro. “O aumento no nível de mobilizações pró-ditaduras pode ser sinal de que os líderes autocráticos estão mais ousados na demonstração de suas ‘legitimidades’”.

Por outro lado, a entidade detecta e alerta para a baixa da intensidade das mobilizações pela democracia no Brasil e pelo mundo. “Mobilizações populares continuam em níveis baixos. Essa lacuna de atos pró-democracia deixam mais fortes os riscos de que ditaduras permaneçam sem contraponto”, completa o estudo.

160 grupos pedem que mundo se oponha às ameaças de Bolsonaro à democracia

Num gesto inédito, mais de 160 entidades da sociedade brasileira recorrem à comunidade internacional para pedir apoio contra qualquer tipo de ruptura democrática no país. A iniciativa ocorreu às vésperas do dia internacional de defesa da democracia, na quinta-feira (15).

As organizações pedem maior atenção às ameaças ao processo eleitoral e solicitam que estas instituições internacionais e governos sejam vocais e demonstrem, de forma concreta, que estão atentas e acompanhando a situação nacional.

As ameaças proferidas pelo presidente Jair Bolsonaro e seus aliados têm de fato mobilizado a sociedade civil em ações internacionais. Foram missões e apelos como esse que levaram congressistas norte-americanos a escrever uma carta ao presidente Joe Biden, pressionando para que a Casa Branca se recuse a dar qualquer sinalização de apoio ao governo brasileiro em seus ataques contra a democracia.

Na ONU, os alertas também surtiram efeito, com a alta cúpula da entidade se mobilizando para mandar mensagens claras contra qualquer ruptura. Nos últimos dias, uma missão de ativistas brasileiros também esteve com representantes europeus, solicitando que o resultado da eleição no país em outubro seja imediatamente reconhecido pela UE, num esforço para enfraquecer Bolsonaro.

Em preparação ao lançamento da carta de alerta, na última semana de agosto, representantes dessas entidades realizaram em Genebra mais de 30 reuniões bilaterais com países-membros das Organizações das Nações Unidas, denunciando os sucessivos ataques do governo federal e de seus aliados no Congresso Nacional aos direitos humanos, a ativistas que os defendem e às instituições democráticas.

“Apesar de todas as missões com as quais conversamos demonstrarem que estão atentas, todas ficaram surpresas com o nível da tragédia que pudemos detalhar nesses encontros”, diz Alessandra Nilo, coordenadora geral da Gestos e cofacilitadora do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030.

O documento é assinado por entidades como a Associação Brasileira de ONGs, ActionAid, Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APNs), Artigo 19 Brasil, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Católicas pelo Direito de Decidir, Centro Ecumênico de Cultura Negra, Conselho Nacional de Saúde, Geledes Instituto da Mulher Negra, Instituto Paulo Freire, Instituto Vladimir Herzog, Rede de Cooperação Amazônica RCA, UFRJ e USP.

“Alertamos que as eleições nacionais em curso no Brasil não representam uma comum disputa eleitoral para manutenção ou renovação dos representantes eleitos, mas significa um momento altamente crítico para a preservação da jovem e frágil democracia instaurada no país com a Constituição de 1988”, dizem as entidades na carta.

“Nossa situação de retrocesso político, econômico, ambiental e social se agudiza pelas ameaças de rompimento da ordem democrática e são barreiras ao avanço dos nossos compromissos e metas internacionais para o desenvolvimento sustentável. Ressaltamos que o aprofundamento do autoritarismo e de políticas antidemocráticas podem levar o Brasil a um cenário de conflito e tensões ainda maiores”, alertam.

“Pedimos, assim, maior atenção das autoridades, instituições internacionais e governos de todo o mundo comprometidos com a defesa de valores democráticos. E lhes pedimos que se posicionem de forma aberta em defesa da democracia, das eleições livres no Brasil e do total respeito ao seu resultado e ao espaço cívico da sociedade civil brasileira, em suas distintas faces”, concluem.


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