18/05/2024 - Edição 540

Especial

UM PAÍS ATRASADO

Com 2,5 mil vítimas em 2022, Brasil chega a 60 mil resgatados da escravidão

Publicado em 27/01/2023 4:13 - Leonardo Sakamoto (UOL) - Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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O Brasil encontrou 2.575 pessoas em situação análoga à de escravo em 2022, maior número desde os 2.808 trabalhadores de 2013, segundo informações do Ministério do Trabalho e Emprego. Com isso, o país atinge 60.251 trabalhadores resgatados desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995. Nesses 28 anos, R$ 127 milhões foram pagos a eles em salários e valores devidos.

Celebra-se, neste sábado (28), o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, que também marca o aniversário da Chacina de Unaí, quando funcionários do Ministério do Trabalho foram executados durante uma fiscalização rural em 2004.

Ao todo, foram 462 operações para verificar denúncias em todo o país. Elas não flagraram o crime apenas em Alagoas, no Amapá e no Amazonas. Minas Gerais foi o estado com mais operações de combate ao trabalho escravo, com 117 empregadores fiscalizados e o maior número de resgatados: 1.070. Desde 2013, o estado lidera em número de flagrados em situação de escravidão contemporânea.

Neste ano, Minas também ficou com o maior resgate individual de trabalhadores, no município de Varjão de Minas, com 273 no corte de cana. O recorde histórico ainda está na mão da usina Pagrisa, em Ulianópolis (PA), com um resgate de 1064 resgatados em 2007.

Goiás (49) e Bahia (32) vêm logo atrás na quantidade de fiscalizações, mas Goiás ficou em segundo lugar (271) em número de vítimas, seguido por Piauí (180), Rio Grande do Sul (156) e São Paulo (146).

Os 2.575 resgatados receberam R$ 8,19 milhões em salários e verbas rescisórias. Mais de R$ 2,8 milhões foram recuperados para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

As operações são coordenadas pela Inspeção do Trabalho em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências Regionais do Trabalho nos estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.

“O resgate tem por finalidade fazer cessar a violação de direitos, reparar os danos causados no âmbito da relação de trabalho e promover o devido encaminhamento das vítimas para serem acolhidas pela assistência social”, afirmou à coluna o auditor fiscal do trabalho Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho e Emprego.

Mais de 80% dos resgatados se declararam negros

Dos resgatados, 92% eram homens, 29% tinham entre 30 e 39 anos, 51% residiam no Nordeste e 58% nasceram na região. Quanto à escolaridade, 23% declararam não ter completado o 5º ano do ensino fundamental, 20% haviam cursado do 6º ao 9º ano incompletos e 7% eram analfabetos.

No total, 83% se autodeclararam negros, 15% brancos e 2% indígenas.

Três indígenas Guarani-Kaiowá de 23, 20 e 14 anos foram resgatados de condições análogas às de escravo em uma área de produção de eucalipto em Ponta Porã (MS), em 19 de abril do ano passado, Dia dos Povos Indígenas. Contando com pouca comida, eles caçavam passarinhos para matar a fome quando foram encontrados.

Os três estavam alojados em um barraco de lona, usando espumas e colchões velhos para dormir sobre o chão de terra. Usavam um brejo para tomar banho e uma cacimba para retirar água a fim de cozinhar e beber. A comida era descontada do pagamento, o que é ilegal. No momento da fiscalização, havia pouca à disposição, então os jovens se alimentavam com passarinhos que eles mesmos caçaram.

Dos resgatados, 148 eram migrantes de outros países, o que representa o dobro em relação a 2021, sendo 101 paraguaios, 14 venezuelanos, 25 bolivianos, quatro haitianos e quatro argentinos.

No ano passado, 35 crianças e adolescentes foram submetidos ao trabalho análogo ao de escravo. Desses, dez tinha menos de 16 anos e 25 possuíam entre 16 e 18 anos no momento do resgate. O cultivo de café foi a atividade em que mais crianças e adolescentes foram resgatados, com 24% das vítimas.

Mas escravidão contemporânea também foi flagrada junto a menores de 18 anos em atividades esportivas, produção florestal, cultivo de arroz, cultivo de coco-da-baía, criação de bovinos, fabricação de produtos de madeira, produção de carvão vegetal, cultivo de soja e confecção de roupas.

O cultivo da cana-de-açúcar foi a atividade com maior número de resgatados em 2022, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, com 362 vítimas. Na sequência, aparece atividades de apoio à agricultura (273), produção de carvão vegetal (212), cultivo de alho (171), de café (168), de maçã (126), a extração e britamento de pedras (115), criação de bovinos (110), cultivo de soja (108), extração de madeira (102) e construção civil (68).

Do total de resgatados, 87% estavam em atividades rurais.

Trabalhadora foi resgatada após 72 anos escravizada pela mesma família

A Inspeção do Trabalho vem registrando um aumento de casos de trabalho escravo doméstico nos últimos anos. Em 2022, foram 30 vítimas em 15 unidades da federação, sendo dez apenas na Bahia.

O caso mais emblemático foi o de uma mulher de 84 anos resgatada de condições análogas às de escravo, em março, após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro. Nesse período, ela cuidou da casa e de seus moradores, todos os dias, sem receber salário, segundo a fiscalização.

De acordo com dados do Ministério do Trabalho, essa é a mais longa duração de exploração de uma pessoa em escravidão contemporânea desde que o Brasil criou o sistema de fiscalização para enfrentar esse crime.

Quando a trabalhadora, que é negra, passou a atuar para a família, a Lei Áurea (1888) tinha apenas 62 anos, o presidente era Eurico Gaspar Dutra e o Rio, a capital do país.

De acordo com a fiscalização, seus pais trabalhavam em uma fazenda no interior do estado que pertencia à família Mattos Maia. Aos 12 anos, ela se mudou para a residência do casal proprietário para realizar serviços domésticos. Quando faleceram, migrou para a casa da filha deles, onde manteve suas atividades, incluindo o cuidado com as crianças.

Ao ser resgatada, atuava como cuidadora da empregadora, apesar de ambas terem idade semelhante. Ao todo, serviu três gerações da família, uma vez que, na residência na Zona Norte da cidade, também reside o neto dos patrões originais. Os empregadores foram procurados época do resgate pela coluna, mas não responderam os pedidos por um posicionamento.

“Em razão da grande repercussão do resgate da trabalhadora doméstica Madalena Gordiano no final de 2020 em Patos de Minas, o número de denúncias aumentou”, afirmou o auditor fiscal Maurício Krepsky.

Chacina de Unaí completa 19 anos sem cumprimento de pena dos mandantes

O 28 de janeiro foi escolhido como Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo para marcar o aniversário da Chacina de Unaí, quando os auditores fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira foram executados em uma fiscalização de rotina no Noroeste de Minas Gerais em 2004.

Os irmãos Antério e Norberto Mânica, grandes produtores de feijão, foram apontados como os mandantes do crime pela Polícia Federal. Entre ida e vindas, julgamentos e anulações, eles foram condenados. Porém, aguardam recursos em liberdade.

O inquérito entregue pela Polícia Federal à Justiça sobre a chacina de Unaí afirmou que a motivação do crime foi o incômodo provocado pelas insistentes multas impostas pelos auditores à família de fazendeiros, sendo que o auditor-fiscal do trabalho Nelson José da Silva era o alvo principal. Ele já havia aplicado cerca de R$ 2 milhões em infrações a fazendas da família Mânica por descumprimento de leis trabalhistas.

O motorista Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do local com o carro e foi socorrido. Levado até o Hospital de Base de Brasília, Oliveira não resistiu e faleceu. Antes de morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel teria parado o carro da equipe e homens fortemente armados teriam descido e fuzilado os fiscais. Os auditores fiscais morreram na hora.

Chicotadas, uso de crack, ameaças: Escravizados relatam terror em MG

Após receber a denúncia de um trabalhador que fugiu de uma fazenda de café, uma operação resgatou sete pessoas de condições análogas às de escravo em Aimorés (MG). As vítimas eram exploradas por conta de sua dependência em drogas, trabalhando para pagar dívidas de crack e álcool contraídas com o capataz da fazenda. Também eram alvo de chicotadas.

“Eles nos relataram que frequentemente sofriam castigos físicos por parte do capataz e de sua esposa, por meio de chicotadas”, afirma Rodrigo de Carvalho, coordenador da operação que contou com a participação da Inspeção do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Estadual e da Polícia Militar. Ele e seus colegas estavam há mais de um ano sem receber dinheiro algum na fazenda Centenário.

Relatos das vítimas apontam para um quadro de servidão por dívida, um dos elementos que constituem as condições análogas às de escravo, de acordo com o artigo 149 do Código Penal. Normalmente, em casos assim, o endividamento fraudulento ocorre cobrando-se por botas, ferramentas de trabalho e produtos de higiene pessoal valores acima do que é praticado no comércio.

O capataz da fazenda, contudo, vendia psicoativos, como crack, maconha e bebidas alcoólicas aos trabalhadores – que se mantinham presos pela dívida e presos pela dependência com as drogas.

“Eles estavam presos pelo vício. E não podiam sair, porque se tentassem, eram ameaçados de morte”, afirma Carvalho. Os empregados afirmaram que os patrões faziam questão de mostrar que andavam armados.

A dependência era tamanha que, durante a fiscalização, os trabalhadores pediram para usar os produtos porque não estavam aguentando a abstinência.

Havia também um local usado para rituais onde foi identificado um crânio, que seria de um macaco, segundo a fiscalização. “Os trabalhadores disseram que eram agredidos a qualquer momento, mesmo durante os rituais”, afirmou o coordenador da ação.

As vítimas estavam alojadas em três casas sem condições de higiene e segurança. Em uma delas, um empregado dormia junto com agrotóxicos usados na produção. As necessidades fisiológicas eram feitas no mato. Não havia fornecimento de equipamentos de proteção individual.

Diante da fiscalização, os empregadores Murilo e Reinaldo Oliveira aceitaram pagar os salários e direitos atrasados, verbas rescisórias e providenciar alimentação e transporte para que os trabalhadores voltassem para as suas casas. Ao todos, foram pagos R$ 75 mil. Todos terão acesso a três parcelas de seguro-desemprego garantidas aos libertados do trabalho escravo.

O advogado dos empregadores afirmou que não iriam se posicionar. Afirmou, contudo, eles não entendem o caso como sendo de condição análoga à de escravo.

Relatos de que as condições se repetiam em outra propriedade dos mesmos empregadores levaram a Inspeção do Trabalho, o Ministério do Trabalho e a Polícia Rodoviária Federal a uma fazenda no município de Brejetuba (ES). No local, verificaram que o alojamento havia sido esvaziado, provavelmente após a primeira fiscalização.

Encontraram apenas um casal de trabalhadores. O marido estava aposentado, mas não recebia nada. Segundo a fiscalização, o representante do empregador teria dito que seu cliente “tomava conta” do dinheiro do funcionário sob a justificativa de que ele era analfabeto e não saberia mexer com números.

Minas é o estado recordista em vítimas de escravidão desde 2013

O Brasil encontrou 2.575 pessoas em situação análoga à de escravo em 2022, maior número desde os 2.808 trabalhadores de 2013, segundo informações divulgadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego nesta terça (24).

Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, 60.241 trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.

Em 2022, Minas Gerais foi o estado com mais operações de combate ao trabalho escravo, com 117 empregadores fiscalizados e o maior número de resgatados: 1.070. Desde 2013, o estado lidera em número de flagrados em situação de escravidão contemporânea. No ano passado, também ficou com o maior resgate individual de trabalhadores, em Varjão de Minas (MG), com 273 no corte de cana.

Celebra-se, neste sábado (28), o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Nessa data, há 19 anos, quatro funcionários do Ministério do Trabalho foram executados a mando dos fazendeiros Antério e Norberto Mânica, no ficou conhecido como a Chacina de Unaí. Ambos foram condenados, mas ainda recorrem em liberdade.

Trabalho escravo hoje no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Como denunciar

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 2022, 1.654 foram enviadas pelo sistema. Denúncias também podem ser feitas através do Ministério Público do Trabalho, unidades da Polícia Federal, sindicatos de trabalhadores, escritórios da Comissão Pastoral da Terra, entre outros locais.

Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.


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Uma resposta para “UM PAÍS ATRASADO”

  1. Odair disse:

    Uma questão complexa, fala na reportagem um “grande” número de resgatados, Leonardo *equivocado* Sakamoto fez um comentário que parte discordável, pois se grande resgate anual indica boa fiscalização. Se acham que não existe no Brasil precisam viajar pra o Brasil mais vezes. MT, MS, GO e outros tem e não é pouco, trabalho e condições bem adversas.

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