18/05/2024 - Edição 540

Especial

Um bufão

Publicado em 25/02/2022 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A decisão do presidente Jair Bolsonaro (PL) de visitar a Rússia na semana passada entrará para a história da diplomacia presidencial brasileira como um dos maiores equívocos cometidos por um chefe-de-estado. Os ataques conduzidos pelo presidente russo Vladimir Putin contra a Ucrânia expõem o Palácio do Planalto e, na avaliação de negociadores estrangeiros, isolam ainda mais Bolsonaro entre o bloco de democracias.

Há uma semana, Bolsonaro desafiou militares brasileiros, uma ala do Itamaraty e a pressão do governo dos EUA e optou por manter sua viagem ao Kremlin. Encurralado e disposto a mostrar que seu governo não iria ceder às pressões do presidente norte-americano Joe Biden, ele manteve a missão, Mas bastou um deslize de sua parte, anunciando "solidariedade" aos russos, para que a viagem se transformasse em uma dor de cabeça para a chancelaria.

O jornalista Jamil Chade (UOL) apurou que, nos bastidores, a crise ucraniana foi mencionada apenas "marginalmente" na conversa de mais de uma hora entre Bolsonaro e Putin. Mas foi a ausência de um apelo forte do brasileiro para que o russo aderisse a um pacto de não agressão que chamou a atenção internacional.

Oficialmente, a UE (União Europeia) não comenta a viagem de Bolsonaro, enquanto fontes diplomáticas brasileiras apontam que Bruxelas deixou a crítica explícita ser feita pelo governo de Joe Biden. A Otan também se recusou a tecer um comentário oficial.

Mas nos altos círculos diplomáticos da Europa, o sentimento é de que Bolsonaro foi "ridicularizado", principalmente depois de usar a viagem para vender a ideia de que ele convenceu Putin a retirar tropas da região.

Para um embaixador na ONU de uma das maiores economias da UE, a viagem de Bolsonaro e seu comportamento em Moscou mostrou que o brasileiro "nutre uma simpatia maior por autocratas como Putin e Xi Jinping que por líderes europeus".

No governo brasileiro, o argumento é de que Bolsonaro tentou ser recebido pela Europa Ocidental. Mas teve as portas fechadas, inclusive pelo premiê Boris Johnson, no Reino Unido.

Para outro negociador europeu, isso não é motivo para, então, sair em busca de líderes autoritários como chancela de seu reconhecimento internacional. "Essa viagem foi um enorme tiro no pé. Mas, no fundo, quem é que fica hoje surpreendido pelas ações de Bolsonaro", afirmou um embaixador do bloco europeu.

Ávido por mostrar ao seu eleitorado que não estava isolado, Bolsonaro conseguiu aprofundar seu status de pária internacional.

De acordo com negociadores em Paris, o Itamaraty imediatamente iniciou um processo de esclarecimento da postura brasileira e, na noite de quarta-feira, chegou a declarar na ONU que um ataque era "inaceitável". Mas, ao longo dos últimos dias, a chancelaria tem evitado usar a palavra "condenação" e muito menos citar Putin em seus discursos, apenas indicando que todos os atores precisam ter suas preocupações ouvidas.

"Não sabemos qual a política externa do Brasil. A do Itamaraty, que parece estar em uma insurreição interna, ou a do presidente", acusou um embaixador estrangeiro.

Avanço de Putin expõe Jair Bolsonaro ao ridículo

Coincidência ou não, o autocrata russo expôs Bolsonaro ao ridículo. Fez isso no instante em que reconheceu as regiões separatistas da Ucrânia e empurrou para dentro de território alheio o que chamou de "tropas de paz".

Durante sua visita inoportuna ao Kremlin, Bolsonaro quis tirar uma casquinha do conflito. Tropeçando na língua, declarou-se "solidário" à Rússia sem esclarecer com o que se solidarizava. Depois, disse ser solidário a "todos os que se empenham pela paz".

Fornecendo material para os memes do bolsonarismo nas redes sociais, o presidente insinuou que "parte das tropas russas deixaram a fronteira" por conta da sua visita a Moscou. "Não se fala mais em guerra", exagerou o ministro sanfoneiro do Turismo, Gilson Machado, ao celebrar o grande feito do chefe.

A Casa Branca declarou que o Brasil "parece estar do outro lado de onde está a maioria da comunidade global." O Itamaraty rebateu a porta-voz de Joe Biden afirmando que as posições do Brasil foram manifestadas no Conselho de Segurança da ONU. Ali, àquela altura, a diplomacia brasileira havia defendido uma reunião para discutir a encrenca da Ucrânia, posicionando-se contra sanções à Rússia.

Agora, o Itamaraty e próprio Bolsonaro se obrigam a dizer meia dúzia de palavras sobre um conflito que, não fosse a visita do presidente a Moscou, não diria respeito aos brasileiros. De resto, um país como o Brasil, com pretensões de ocupar uma poltrona de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, precisa dizer o que pensa sobre questões como a soberania dos povos e a integridade territorial as nações.

Ao poupar Putin, Bolsonaro alinha Brasil à China

Em condições normais, o Brasil seria mero figurante no enredo que desaguou na guerra iniciada pela Rússia na Ucrânia. Mas Bolsonaro —por ação e omissão— converteu o Brasil em protagonista de um eloquente fiasco diplomático. Agiu equivocamente ao solidarizar-se com os russos em visita a Vladimir Putin. Omite-se desastrosamente ao se abster de condenar com a veemência devida a invasão russa ao território ucraniano. Bolsonaro prefere condenar a "peruada" do seu vice, Hamilton Mourão, que comparou a movimentação de Putin ao expansionismo da Alemanha nazista, defendendo o socorro militar do Ocidente à Ucrânia.

Ironicamente, a negligência do presidente acomoda o Brasil ao lado da China, uma das nações mais execradas por Bolsonaro e pelo bolsonarismo. Os dois países contemporizaram com o Kremlin, evitando a condenação explícita aos ataques contra a Ucrânia. Esquivaram-se de apoiar sanções econômicas contra a Rússia. Numa nota vaga, o Itamaraty limitou-se a informar que acompanha o conflito com "grave preocupação" e a rogar pela "suspensão imediata das hostilidades".

O dia histórico de 24 de fevereiro de 2022, data em que Putin virou a página da história para trás, o mundo acordou com dois barulhos. O som das bombas que caíam desde a noite anterior sobre a Ucrânia e o ruído do vozerio dos líderes das nações democráticas que condenaram a Rússia nas primeiras horas do dia.

Bolsonaro despertou em silêncio. No cercadinho do Alvorada, perguntou sobre o placar do jogo do Palmeiras. Na cidade paulista de São José do Rio Preto, fez comícios disfarçados de inaugurações antes de um passeio motocicleta com seus devotos. À noite, na transmissão ao vivo pela internet, o presidente constrangeu o chanceler Carlos França, convertendo-o em adereço de mais uma live patética.

No futuro, quando os historiadores puderem falar sobre essa tragédia sem ter que aguardar pela atualização do número de mortos, de feridos e de refugiados, reservarão um parágrafo num rodapé de página para mencionar o silêncio cúmplice de um capitão precário que passou pela Presidência do Brasil.

Ataque russo prejudica economia do Brasil e complica os planos de Bolsonaro

Do ponto de vista historiográfico, o mundo presencia nas últimas horas um recuo de 77 anos. Ressurgem fantasmas que todos imaginavam que haviam sido exorcizados pelo sistema criado em 1945, no pós-guerra. Do ponto de vista doméstico, naquilo que afeta mais diretamente o Brasil, a incursão da Rússia na Ucrânia produziu uma instabilidade econômica que terá impactos negativos na economia, com reflexos na política.

A inevitável alta do preço dos combustíveis e fertilizantes tende a puxar a inflação para cima. O Banco Central terá de esticar a fase dos juros altos. O esforço para deter os preços anestesia a economia.

O dólar, que estava em queda, deve inverter a curva. Em ambiente de risco, o investimento costuma buscar refúgio em praças mais seguras do que países emergentes e instáveis como o Brasil.

Potencializa-se a perspectiva de um crescimento econômico pífio —ou negativo— neste ano eleitoral de 2022. Tudo isso complica o plano político de Bolsonaro de obter um segundo mandato.

As pesquisas detectam uma preocupação acentuada do eleitor brasileiro com temas econômicos, sobretudo inflação e desemprego. Vladimir Putin ordenou o ataque à Ucrânia num instante em que a prévia da inflação oficial no Brasil subiu em fevereiro para 0,99%, puxando o índice acumulado em 12 meses para 10,76%.

O Banco Central estimava que a inflação atingiria o pico até maio, quando começaria a declinar. A crise irradiada a partir da Ucrânia deve prolongar o ciclo de carestia, empurrando a irritação dos brasileiros para mais perto das urnas.

Metade da população brasileira sobrevive com uma renda familiar mensal inferior a dois salários mínimos. Dois terços da população têm rendimento abaixo de três salários mínimos. É esse contingente, que rala para encher a geladeira, que decide a eleição. A exemplo do que fez na pandemia, Bolsonaro sempre poderá tentar terceirizar responsabilidades, culpando a crise internacional e os governadores.

O problema é que, no presidencialismo brasileiro, a crise costuma ter a cara do presidente. O superlucro de R$ 106 bilhões que a Petrobras acaba de anunciar, com repasse de R$ 37 bilhões para o Tesouro Nacional, compromete o esforço de Bolsonaro para grudar no ICMs dos estados a culpa pela alta dos combustíveis.

De resto, ao manifestar sua "solidariedade" à Rússia e fazer pose de pacificador ao lado de Putin na visita que fez ao Kremlin há uma semana, Bolsonaro como que se transportou para a zona de guerra. Era a pessoa errada, no local impróprio, na hora mais indevida. Não foi por falta de aviso.

Com Damares na ONU, aliança de Bolsonaro com Putin será testada

A aproximação promovida pelo presidente Jair Bolsonaro aos governos da Rússia e da Hungria será testada quando o Conselho de Direitos Humanos da ONU iniciar seus trabalhos, na próxima semana.

Na agenda oficial divulgada pela ONU, a delegação brasileira será liderada pela ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). O evento contará com mais de cem ministros de todo o mundo, além de alguns chefes de governo. O Itamaraty acenou que a viagem de fato ocorrerá, enquanto o ministério de Damares indicou que apenas divulgará sua agenda no momento adequado.

Mas, num período de pré-campanha eleitoral no Brasil, fontes no Itamaraty acreditam que o palco da ONU será usado para uma radicalização das posições e discursos do governo de Bolsonaro, na esperança de mandar sinais claros para sua base mais radical, evangélica e olavista.

Governos europeus e de outras partes do mundo, que acompanharam de perto a viagem de Bolsonaro na semana passada, também acreditam que a sessão do Conselho pode servir para testar até que ponto a nova aliança entre Bolsonaro e a Rússia vai se traduzir em votos em conjunto na ONU.

Fontes diplomáticas confirmaram que a crise ucraniana entrará com força na agenda do Conselho, depois que o governo americano apresentou neste fim de semana às Nações Unidas um documento cobrando da alta comissária da ONU, Michelle Bachelet, uma resposta diante das ameaças de Moscou. A Ucrânia também solicitou que uma sessão especial seja convocada para tratar dos abusos de direitos humanos por parte do governo Putin, o que irá exigir do Brasil um posicionamento.

No encontro em Moscou entre Putin e Bolsonaro, o tema de direitos humanos não fez parte da agenda. Mas, por pressão do Palácio do Planalto, há uma instrução clara a não denunciar o comportamento do líder russo e nem condená-lo pelos ataques.

Brasil e Rússia fazem parte do Conselho e, em 2021, o Itamaraty já ensaiou posições simpáticas em relação às propostas de Moscou, principalmente em temas como gênero, meninas e movimento LGBT. Mas nem sempre votou a favor das propostas apresentadas pelos russos, mantendo algumas das posições tradicionais de governos anteriores no Brasil sobre direitos humanos.

O que governos estrangeiros tentam saber, agora, é se a aproximação de Bolsonaro a Putin significará uma mudança no padrão de votos ou de participação do país.

A delegação americana não esconde que espera que o Itamaraty seja capaz de contornar as exigências de aproximação entre Bolsonaro e Putin.

Na agenda do dia 15 de março, por exemplo, está prevista uma sessão sobre a situação das mulheres em crises humanitárias. Há também resoluções que serão submetidas à votação sobre temas como a proteção de crianças e situação de ativistas de direitos humanos.

Em Moscou, na semana passada, Bolsonaro destacou como os dois países "compartilham de valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família".

Em Budapeste, uma vez mais Bolsonaro voltou a repetir como Deus e família garantiam uma proximidade entre o Brasil e a Hungria de Viktor Orban. O comunicado final emitido pelos dois chefes de governo também destacou o mesmo ponto, indicando que "compartilham valores fundamentais e a convergência de visões no plano das relações internacionais". Isso, segundo o comunicado, inclui o "compromisso com a defesa da família e da liberdade religiosa".

A Hungria não faz parte do Conselho. Mas um de seus principais aliados, a ultraconservadora Polônia, representa a região e os valores do bloco de líderes da extrema-direita.

Para Orban, também em plena campanha eleitoral, a família é composta por um homem e uma mulher. Ao lado de Bolsonaro, o húngaro ainda anunciou que fechou um acordo com o Brasil para evitar que, nas entidades internacionais, a imigração seja apresentada como um "aspecto positivo".

Questionado sobre o acordo, o Itamaraty indicou que não comentaria declarações de outros líderes. Mas não esclareceu se o entendimento existe ou não.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *