18/05/2024 - Edição 540

Especial

Patriotas por conveniência

O que os militares mais temem é a perda dos privilégios adquiridos

Publicado em 02/12/2022 9:49 - Ricardo Noblat (Metrópoles), Plinio Teodoro (Fórum), Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Maurício Thuswhold e Sérgio Lírio (Carta Capital), Victor Barone (Semana On) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Assim como se normalizou Bolsonaro e os absurdos que ele cometeu até aqui, o país correrá perigo caso normalize também a insubordinação militar diante do fato de Lula ter sido eleito.

É isso o que acontece no momento. Se vai haver ou não uma escalada da insubordinação, ninguém pode afirmar com segurança. Só depois que Lula for diplomado e tomar posse.

Nunca os militares acolheram manifestantes que pedem um golpe. Nunca os comandantes ameaçaram pedir demissão por se opor ao presidente eleito. É de insubordinação que se trata.

O Alto Comando das Forças Armadas bolsonarizou-se. O atual presidente governa por delegação dos seus antigos pares e, se dependesse somente deles, teria sido reeleito.

O golpe de 64 foi dado sob o pretexto de defender a democracia ameaçada pelo comunismo. Suprimiu-se a democracia por 21 anos. O comunismo, hoje, não existe mais, salvo na China capitalista.

Se houvesse um novo golpe, qual seria o pretexto? Que a previdência especial para os militares será suspensa? Que os mais de 6 mil militares empregados no governo perderão o emprego?

Alegações fisiológicas podem pesar, mas não ser admitidas publicamente. Como justificar um golpe? Por que os militares sempre foram de direita, e Lula e a sua turma de esquerda?

O Centrão, em acelerado processo de entendimento com o novo governo, é de esquerda? Geraldo Alckmin, o vice-presidente, é de esquerda? Simone Tebet (MDB) é? Foram todos abduzidos?

Sem falar do presidente americano, Joe Biden – que, se não vier à posse de Lula, estará pronto para recebê-lo antes disso na Casa Branca, como fez em 2002 o então presidente George Bush.

A revolta dos militares com a eleição de Lula alimenta-se do medo de perder os privilégios adquiridos. De volta ao poder sem disparar tiros, imaginaram ali permanecer por um longo tempo.

Lula e seu ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, terão uma parada indigesta pela frente, é verdade. Mas não lhes faltam habilidade e experiência para vencê-la. São bons negociadores.

Mas, todo cuidado é pouco

Às voltas com uma transição de governo atípica, Lula opera em Brasília com um olho no Congresso e outro na porta dos quartéis. Acelera o processo de escolha do ministro da Defesa e dos futuros comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Equilibra-se sobre um paradoxo. Embora queira expurgar das Forças Armadas a política, oferece aos militares tratamento análogo ao que dispensa aos políticos do centrão. Sinaliza que não haverá “caça às bruxas”. Em troca do estreitamento de inimizades, insinua que deve conservar os privilégios.

Bolsonaro tornou a bruxa de farda uma caça fácil e abundante. Lula poderia, por exemplo, apontar o dedo para qualquer um dos três comandantes militares e dizer: “É uma bruxa”. Simpatizantes dos atos antidemocráticos que clamam na frente dos quartéis por intervenção militar, o general Marco Antônio Gomes, o brigadeiro Carlos de Almeida Junior e o almirante Almir Garnier marcham na fronteira entre a descortesia e a insubordinação.

A trinca trama deixar os comandos das forças em dezembro, ainda sob ordens de Bolsonaro. Após negligenciar por três semanas a formação de um grupo de trabalho sobre Defesa no escritório de transição, Lula viu-se compelido a queimar etapas. Credenciou José Múcio Monteiro, um político de perfil conservador e acomodatício, como seu interlocutor junto aos militares. Com ares de provável futuro ministro civil da Defesa, Múcio foi bem recebido.

Lula deseja manter a praxe de acomodar na chefia das três armas os oficiais mais antigos de cada força. Resta saber se Bolsonaro fará o obséquio de assinar as indicações. Lula mandou dizer, de resto, que não cogita rever vantagens salariais e previdenciárias obtidas pelos militares durante a gestão do capitão.

Simultaneamente, Lula age para apressar a cerimônia de diplomação da chapa que formou com Geraldo Alckmin. Marcado inicialmente para 19 de dezembro, o evento deve ser antecipado para o dia 12. Tenta-se criar mais um fato consumado que desestimule o prolongamento dos atos antidemocráticos até o dia da posse, em 1º de janeiro.

As vivandeiras

As vivandeiras da ditadura estão em polvorosa. Nesta semana, proliferaram nas redes manifestação de gente fardada e civil pedindo uma “providência” das Forças Armadas contra a democracia.

Em novo tuite divulgado na terça-feira (29), o general da reserva Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, retomou o tom golpista de 2018 – quando fez uma publicação na rede às vésperas do julgamento de um habeas corpus pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que poderia libertar Lula (PT) da prisão – e se aliou à carta apócrifa de supostos militares da ativa pedindo golpe que circula em grupos de WhatsApp.

No tuite, em que se diz surpreendido pela divulgação por apoiadores de Jair Bolsonaro de “generais melancias” – verde por fora e vermelho por dentro, em relação a suposto apoio a Lula -, Villas Bôas diz que “nossa força, em algum momento, pode ser instada a agir”, em clara incitação a grupos golpistas que se concentram em frente a quarteis contestando o resultado das eleições presidenciais.

“Nesse momento extremo que a nação atravessa é imprescindível que a solidez das estruturas do Exército sejam preservadas. A história ensina que sempre que essas condições foram negligenciadas, produziu-se catástrofe para ela própria e para a Nação. Nossa força, em algum momento, pode ser instada a agir. Vamos, portanto, assegurar a tranquilidade necessária para a tomada de decisões por parte de nossos chefes”, diz o texto.

Em grupos bolsonaristas, o recado de Villas Bôas foi entendido como mensagem cifrada para se manter as mobilizações em frente aos quarteis.

O tuite vem sendo divulgado nos grupos juntamente com a carta apócrifa que teria partido de militares da ativa. Em consonância com o tom golpista do tuite de Villas Bôas, o texto diz que “os integrantes da Força Terrestre, coesos, motivados e conhecedores de sua história, sempre estarão prontos para cumprir suas missões constitucionais, com base no mais sublime dos juramentos de ‘(…) dedicar-me inteiramente ao serviço da Pátria, cuja honra, integridade e instituições, defenderei com o sacrifício da própria vida’”.

A carta fala ainda em “alinhamento dos participantes com a legalidade, liberdade e transparência, atualmente tão requeridas pelo povo brasileiro” e insinua que as Forças Armadas seriam o “sistema de freios e contrapesos” para a harmonia entre os três poderes determinados pela Constituição: Executivo, Legislativo e Judiciário.

“Consideramos importante, portanto, que os Poderes e Instituições da União assumam os seus papéis constitucionais previstos em lei e em prol da pacificação política, econômica e social, especialmente para a manutenção da Garantia da Lei e da Ordem e da preservação dos poderes constitucionais, respeitando o pacto federativo previsto na regra basilar de fundação da República Federativa do Brasil”.

O tema vem sendo tratado por oficiais-generais desde segunda-feira (28) e foi abordado na reunião do Alto Comando do Exército nesta terça (29). Os comandantes falam ainda em possível abertura de processos administrativos por transgressão disciplinar contra militares da ativa que assinarem o texto.

Em entrevista de mais de 13 horas ao diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, transcrita em livro, Villas Bôas afirmou que o tuíte contra libertação de Lula em 2018 foi decisão do Comando do Exército.

“Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20 horas”, afirmou ele, sempre no plural.

Em entrevista coletiva dias depois, Lula disse que se fosse presidente da República à época, general Villas Bôas seria exonerado.

“Eu fiquei preocupado com a carta do Villas Bôas. Não é correto que um comandante das Forças Armadas faça o que ele fez. E eu se fosse presidente da República e ele tivesse aquele comportamento, seria exonerado a bem do serviço público na hora. Ele não está lá para dar palpite na política. Ele não está lá para decidir que vai ser presidente ou não. Quem tem que decidir é a sociedade civil, através do voto”, ressaltou o ex-presidente.

“Eu fiquei oito anos na presidência e nunca tive um problema com os militares. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica sabem que não teve um presidente, nem os militares, que investiu como eu nas Forças Armadas”, destacou.

Zambelli tem que ser presa por estimular golpismo nos quartéis

O deputado federal mais votado de São Paulo nas eleições deste ano, Guilherme Boulos (PSOL), defendeu a prisão da segunda deputada mais votada, Carla Zambelli (PL), por tentar jogar as Forças Armadas contra a democracia.

“Zambelli tem que ser presa”, afirmou à coluna. “É inaceitável que uma parlamentar estimule golpismo nos quartéis e atente contra a democracia. Isso não é opinião, é crime”, afirmou.

A deputada divulgou um vídeo, na terça (29), em que incentiva generais a não reconhecerem o governo Lula e atenderem as demandas dos que acampam nas portas de quartéis pedindo um golpe militar.

“Dia 1º de janeiro, senhores generais quatro estrelas, vocês vão querer prestar continência a um bandido ou à nação brasileira?”. Ela também critica o Supremo Tribunal Federal e diz que os militares é que são a “garantia da lei e da ordem” no Brasil.

O material foi gravado por Zambelli após o Exército divulgar uma nota afirmando que militares da ativa são apartidários. Boulos afirmou que o PSOL vai entrar com uma representação contra a deputada federal por suas declarações, em vídeo, na terça (29).

O artigo 286 do Código Penal afirma que comete crime passível de prisão “quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”.

Também preveem prisão o artigo 359-L (“tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”) e o 359-M (“tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”).

Carla Zambelli vem se envolvendo em confusões desde o segundo turno. No sábado, 29 de outubro, dia anterior à votação, ela perseguiu um homem negro com uma pistola em punho pelas ruas do rico bairro dos Jardins, na capital paulista, causando terror entre os pedestres e motoristas.

Vídeos mostraram a deputada entrando em uma lanchonete com a arma apontada para o homem, causando pânico nos outros clientes que consumiam no local. Ela estava acompanhada de outras pessoas, também armadas.

Em sua defesa, diz que foi agredida e empurrada. “Eles usaram um negro para vir em cima de mim”, afirmou em um vídeo que divulgou. Contudo, outra imagem mostra a deputada caindo sozinha após tentar ir para cima do homem após ele tê-la ofendido.

Em meio às críticas de bolsonaristas, que avaliam que o episódio prejudicou a reeleição do presidente, ela passou algumas semanas nos Estados Unidos. Afirmou, em nota, que estava no país para “estudar meios de assegurar e restaurar a liberdade de expressão”.

De volta ao Brasil, vem atuando em defesa de um golpe de Estado. No jantar de confraternização do PL, na noite de terça (29), Zambelli exigiu que Jair Bolsonaro fosse às ruas apoiar os golpistas, o que teria causado uma discussão entre ambos.

PT quer esclarecimentos de general Heleno sobre militar que ameaça democracia

A bancada do PT na Câmara quer que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), esclareça as ameaças do militar da Marinha Ronaldo Ribeiro Travassos contra a posse do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Por isso protocolou requerimentos nas comissões de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP), Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) e Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJC).

O objetivo é que o general preste esclarecimentos em cada uma delas sobre a transgressão disciplinar do militar bolsonarista lotado em seu gabinete. Militar da ativa, está impedido de participar de manifestações político-partidárias. A Constituição de 1988 (art. 142, §3º, V) proíbe a filiação de militares da ativa a partidos políticos. No mesmo sentido, o artigo. 45 do Estatuto dos Militares (Lei 6.880/1980) veda “quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político”.

Além de fazer ameaças à posse de Lula, Travassos defende a morte de petistas. Mais especificamente, “tiro na cabeça de quem faz o L”. Por essa razão, a bancada do PT ingressou ontem (29) com medida contra o militar no Supremo Tribunal Federal.

Organização criminosa e ameaça a Lula

Na denúncia protocolada pelo líder da bancada, deputado Reginaldo Lopes (MG), a legenda requer o afastamento do primeiro-sargento da Marinha de suas funções no Gabinete do general Augusto Heleno. E também que seja proibido de participar de atos antidemocráticos, sob pena de prisão.

Os parlamentares também denunciaram Travassos por organização criminosa contra o Estado democrático de direito e por ameaçar o presidente eleito e seus eleitores, incitação e apologia à prática de crimes contra o resultado eleitoral e incentivo às práticas de atos inconstitucionais contra as instituições democráticas, entre outros.

Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, Travassos gravou e compartilhou áudios e vídeos em que incita o golpe de Estado a favor do presidente derrotado nas urnas Jair Bolsonaro (PL). E convoca seus contatos para manifestações antidemocráticas em frente a quartéis das Forças Armadas.

“Quem faz o L tem que levar tiro na cabeça”

“É isso mesmo cara. Tem um monte de colega unido. Tem gente nesse grupo. Grupo de fora. No grupo do meu prédio tem 17 moradores, seis fazem o L ,pô”, esbraveja o militar em um áudio que circula nas redes sociais. Na sequência, ele diz que é preciso identicar os petistas, que devem levar “tiro na cabeça”.

“Nós precisamos saber quem é quem porque a guerra civil vai rolar, mermão. Se precisar, mermão, um patriota eu vou defender. Se o meu irmão faz o L é tiro na cabeça. Não to falando isso de brincadeirinha não, gente. É sério. Quem faz o L é terrorista gente. Tem que morrer mesmo. Ou mudar o morrer. Não tem jeito pra uma pessoa dessa”, diz.

Ele prega ainda o boicote a determinadas empresas, que chama de “financiadoras ‘do comunismo’”. “Essas firmas aí que financiam a esquerda, tem que evitar. É Boticário, Natura, Magazine Luiza, o posto aí de combustíveis, elimina tudo. A Pão Dourado, não tem que comprar mais. Tem que evitar mesmo. Financiam o comunismo. Tem de ficar fora disso. Deixa que o pessoal q faz o L fiquem com eles. Os 60 milhões que com eles, pessoal ladrão… não apaga não…a gora vou ter de ficar printando tudo.. apagaa foto, apaga texto, o grupo da bixiga”.

Valdemar ignora o TSE e mantém sua aposta na baderna golpista de Bolsonaro

Imaginou-se que a mordida de R$ 22,9 milhões que Alexandre de Moraes deu na caixa registradora do PL serviria de lição para Valdemar Costa Neto. Engano. O dono partido dobrou sua aposta na baderna golpista de Bolsonaro. É como se desejasse testar a disposição do presidente do TSE de cuspir fogo.

Num esforço para esvaziar atos antidemocráticos que já duram um mês, o TSE concordou em antecipar para 12 de dezembro a diplomação da chapa Lula-Alckmin, prevista inicialmente para o dia 19. Horas depois, Valdemar estimulou os devotos do mito a permanecerem acampados na porta dos quarteis.

Na saída de um jantar partidário estrelado por Bolsonaro, o proprietário do PL foi assediado por um grupo de admiradores do presidente. Um deles, expressando-se num português precário, indagou: “Qual é a chance de nós ganhar [sic] essa aí lá no quartel?” E Valdemar: “Tem muita chance, lógico. O Bolsonaro não falou ainda, vai falar. Vamos ajudar vocês lá”.

“O ladrão não vai subir a rampa”, disse outro bolsonarista. E Valdemar: “Eu sei disso. Pode ter certeza que o Bolsonaro vai dar uma resposta pra vocês. Bolsonaro é homem, pode ter certeza de que ele não vai deixar vocês na mão.”

Minutos antes, ao deixar o jantar do PL, Bolsonaro não se animou a falar com seus seguidores. Não é necessário. O golpismo foi terceirizado a personagens como Valdemar.

A multa por litigância de má-fé já resultou num bloqueio de R$ 13,5 milhões na conta do fundo partidário do PL. O questionamento às urnas do segundo turno rendeu também a Valdemar a inclusão no inquérito sobre milícias digitais, relatado por Moraes no Supremo.

Ex-presidiário do mensalão, Valdemar parece confiar na superstição segundo a qual um raio não cai no mesmo lugar duas vezes. A hipótese de retornar à cadeia já não o assusta.

Como os militares atravancam a Comissão de Transição

Procurar nas feições do futuro vice-presidente da República, Geraldo ­Alckmin, sinais do clima que cerca os trabalhos da equipe de transição é perda de tempo. O ex-tucano e neocompanheiro pula as cascas de banana, contorna as pedras no caminho e faz ouvidos moucos às desavenças e reclamações sem alterar a expressão de esfinge. Enquanto Lula, retornado das viagens ao Egito e a Portugal, recupera-se em São Paulo da fadiga na garganta que o obriga a tomar vários copos d’água por dia, Alckmin testa em Brasília, até onde lhe é autorizado, os limites da relação com os negociantes do Congresso e os sabotadores entrincheirados nos ministérios do governo Bolsonaro. Aos trancos e barrancos, o processo segue o seu curso, à exceção de dois assuntos cruciais: a PEC que busca liberar 175 bilhões de reais para os gastos sociais e a mínima recomposição do orçamento e a composição do grupo de trabalho de Defesa e Inteligência. Apesar de eclipsada pela discussão sobre o ajuste fiscal e pelo chilique do mercado financeiro, a demora em indicar os representantes que vão conversar com o comando militar, somada à insistência de bolsonaristas em colocar em xeque o resultado das eleições, dá a dimensão do mal-estar entre os eleitos e as Forças Armadas.

Na terça-feira 22, Alckmin tentou dissipar a nuvem escura. Prometeu para a quinta-feira 24, data de fechamento desta edição, a divulgação do GT para a área de Defesa e negou “dificuldades” com os militares. “É importante ter um bom projeto estratégico para o País. Estamos amadurecendo propostas e buscando bons nomes”, declarou em entrevista no Centro Cultural de Brasília, QG da equipe de transição. “Vamos ouvir todo mundo, conversar, este é o bom caminho.” Resta saber se os militares estão dispostos a percorrer a mesma estrada. As últimas semanas indicam o contrário. A demora em anunciar os nomes do grupo de trabalho, em descompasso com as demais áreas de governo, resulta da divergência entre os vencedores e os generais. Lula e o PT acham que os oficiais, sócios de Bolsonaro no desastre, querem garantias demais. Em resumo, os fardados almejam um salvo-conduto e gostariam de um processo lento, gradual e seguro de “desmame” da máquina pública (quase 7 mil integrantes das Forças Armadas ocupam cargos comissionados ou cadeiras em conselhos de administração de estatais), de um ministro da Defesa de sua confiança – e não da confiança do presidente da República – e da manutenção dos investimentos e de algumas regalias acumuladas desde o ­impeachment de Dilma Rousseff.

Soma-se às exigências dos “derrotados” a falta de civis dispostos e habilitados a encarar a tarefa de mediar visões de mundo em grande medida irreconciliáveis. Velhos conhecidos e rostos novos circulam na bolsa de apostas. Por ter ocupado o mesmo cargo no segundo mandato de Lula, Nelson Jobim é sempre lembrado. Goza da confiança do presidente eleito e dos generais, trunfo nas atuais circunstâncias. Falta-lhe disposição. Aos 76 anos, Jobim está em outra e dificilmente trocaria o filé de sócio e integrante do conselho de administração do BTG Pactual, um dos mais influentes bancos brasileiros, pelos ossos do ofício em Brasília. Raul Jungmann, ministro da Defesa de Michel Temer, é outro citado, mas a antipatia de petistas influentes é obstáculo intransponível. Até o advogado Walfrido Warde Júnior, de bom trânsito entre oficiais de alta patente, chegou a ser sondado pela campanha lulista. Segundo fontes ouvidas por CartaCapital, Warde prefere, no entanto, dedicar-se ao escritório que leva seu sobrenome.

Lula, por sua vez, não se mostra disposto a ir além do diálogo republicano. A uma pergunta desta revista sobre o tema durante a coletiva ao lado do primeiro-ministro de Portugal, António Costa, o petista deu a seguinte resposta: “Não me deixo basear por futricas ou tuítes. As Forças Armadas têm um dever constitucional e irão cumpri-lo, como cumpriram no meu primeiro mandato”. A menção a tuítes e futricas foi uma indireta ao general Walter Braga Netto. Na manhã daquele mesmo dia, o candidato a vice na chapa de Bolsonaro insinuou a apoiadores no “cercadinho” em Brasília que uma reviravolta no resultado das eleições estava próxima. O presidente eleito, sem esconder a impaciência, foi além na resposta: “O comando militar está tranquilo, me conhece. No momento certo, vou indicar quem será o comandante da Marinha, quem será o comandante da Aeronáutica, quem será o comandante do Exército. E aí o Brasil também vai voltar à normalidade nas relações entre governo e Forças Armadas”.

A tensão instalada pelos protestos bolsonaristas, que merecem dos militares o silêncio conivente ou o apoio explícito, criou, no entanto, as condições para a chantagem dos quartéis. Os generais sabem que um golpe é impossível, em especial pela rejeição internacional, mas fazem questão de manter o “terrorismo” enquanto negociam a transição. A falta de punição leva oficiais da ativa a extrapolar suas funções, caso do comandante da 10ª Região Militar, general André Luiz Campos Allão. À tropa, no Ceará, Allão recomendou a proteção aos “patriotas” defensores da intervenção federal e pregou a desobediência a determinações judiciais. “O Mal vai ser vencido com o Bem. O Mal não é vencido com o Mal”. Segundo ele, “toda manifestação ordeira e pacífica é justa, não interessa o que ela pede”. E emendou: “Tenho a responsabilidade, enquanto comandante, de trabalhar para que quem vai à frente da 10ª Região Militar seja protegido, ainda que existam ordens de outros poderes no caminho contrário”.

Não está tudo como dantes no quartel de Abrantes. Uma reportagem do portal Metrópoles revelou que Braga Netto manteve ativo o comitê de campanha de Bolsonaro na capital federal e tem recebido financiadores dos atos antidemocráticos que paralisam estradas, vandalizam bens públicos e privados, choram e rezam nos muros e enviam mensagens desesperadas a extraterrestres em busca de apoio para impedir a posse de Lula.

A movimentação no “QG do golpe” tem sido intensa, conforme os ­vídeos exibidos pelo site. Lá, o general e integrantes do PL, partido do ex-capitão, discutiram os termos da estapafúrdia contestação do segundo turno das eleições, enviada na terça-feira 22 ao TSE. Assinada pelo presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, a petição refere-se ao modelo antigo de urna eletrônica usado na votação e coloca em dúvida 59% dos dispositivos. Segundo a argumentação do PL, refutada em todas as análises e auditorias feitas anteriormente, os equipamentos fabricados antes de 2020 possuem o mesmo número de log, o que impediria a identificação individualizada de cada urna. Rápido e certeiro na resposta, o presidente do tribunal, Alexandre de Moraes, lembrou que as urnas contestadas foram utilizadas no primeiro turno, ocasião na qual a agremiação de Costa Neto obteve a maior bancada da futura Câmara dos Deputados. “Sob pena de indeferimento, deve a autora em um prazo de 24 horas aditar a petição inicial para que o pedido abranja ambos os turnos das eleições”, determinou o ministro. Foi somente uma corda para o PL se enforcar. Na noite da quarta-feira 23, o ministro indeferiu a ação e aplicou multa de 22,9 milhões de reais ao partido por tentar “perturbar a ordem” do processo eleitoral.

Responsável pela condução dos inquéritos contra Bolsonaro no STF por conta da promoção de atos antidemocráticos, ataques aos ministros do Supremo e organização de milícias digitais para a disseminação de fake news, Moraes enfrenta com o mesmo ímpeto os generais, de farda ou pijama. Na quinta-feira 17, o ministro encaminhou à Procuradoria-Geral da República pedido de afastamento do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, por crime de responsabilidade, depois de o general ter colocado outra vez em dúvida a lisura das urnas eletrônicas. Nogueira assina a nota na qual o ministério afirma, sem evidências, que “o acurado trabalho de técnicos militares, embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude no processo eleitoral de 2022”.

A postura dos generais Braga ­Netto, Oliveira e Allão fermenta as teorias conspiratórias dos golpistas de plantão. Conhecido aliado de Bolsonaro, o ministro do Tribunal de Contas da União, Augusto Nardes, virou alvo de notícia-crime após vazar um áudio no qual diz a colegas de tribunal ter conversado “longamente” com o ainda presidente e que este estaria recluso e em preparação para “enfrentar o que vai acontecer no País”. Nardes, mentor da tese das “pedaladas fiscais” que culminou no impeachment de Dilma Rousseff, afirmou ainda ser “questão de horas, dias, no máximo uma semana ou duas, talvez menos” a ocorrência de “um desenlace bastante forte na nação” com consequências “imprevisíveis”.

De forma conveniente, o ministro do TCU tirou licença médica antes de a bancada do PT dar entrada a um pedido de investigação no Supremo na segunda-feira 21. O partido solicita o afastamento imediato do ministro, além de sugerir sua convocação pela Câmara para prestar esclarecimentos. “No áudio que circulou na internet, um ministro do TCU se mostra envolvido em uma conspiração e fala de um desfecho golpista no nosso país. Ele reconheceu a autoria do áudio como sua e o conteúdo é criminoso. Por essa razão enviamos uma notícia-crime ao STF, que tem um inquérito aberto para investigar atos antidemocráticos, pedindo a investigação do envolvimento de Nardes”, afirma o deputado federal Paulo Teixeira.

Autor da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, Teixeira afirma não haver dúvida de que Nardes incorre em crime contra a democracia, mas as explicações aos parlamentares podem ser indefinidamente adiadas, por conta da licença médica do ministro. Na nota em que declara repúdio a atos golpistas, Nardes recorre à velha tática: disse que não disse o que disse. E “lamenta profundamente a interpretação dada a um áudio despretensioso”. No que depender do PT, o caso não está encerrado. “Com a licença médica, o ministro demonstra medo do processo investigatório. Ele precisa sofrer uma punição severa por esse tipo de movimento. A punição a ser dada tem que ser exemplar”, advoga Teixeira.

Chantagem, delírio ou conspiração de fato, há nas Forças Armadas, sobretudo no Exército, uma oposição a ser contornada, acredita o historiador Francisco Carlos Teixeira, criador do recém-lançado Dicionário de História Militar do Brasil: “Há clara resistência à figura do Lula, ao PT no seu conjunto e a alguns nomes específicos do partido, entre eles José Dirceu, Guido Mantega e Dilma Rousseff”. De acordo com o acadêmico, “um grupo de oficiais não considera a democracia brasileira válida ou que a Nova República tenha sido um avanço e trabalha muito claramente para minar sua estabilidade”. Teixeira compara a situação atual ao ano de 1977, quando a abertura política coordenada por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva sofreu forte reação encabeçada pelo então ministro do Exército, Sylvio Frota: “Uma das figuras importantes naquele momento foi o oficial de gabinete de Frota, o então capitão Augusto Heleno, hoje no ­entourage de Bolsonaro. Ele faz parte de um núcleo duro no Exército que nunca aceitou a Nova República”.

A resistência desse grupo de oficiais, na definição de Teixeira, não é novidade para o presidente eleito, que a sentiu na pele no episódio da demissão de José Viegas, primeiro civil a comandar a pasta da Defesa em um governo do petista, em 2004: “Naquele momento, se Lula tivesse tomado uma atitude mais drástica e reformado os coronéis que participaram daquele complô contra o ministro da Defesa, isso talvez não tivesse culminado na ação contra Dilma. Hoje se diz que a Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma irritou os militares, mas não é verdade. O que houve foi uma consolidação dessa frente militar, empresarial, midiática e parlamentar para a realização do golpe”.

Um oficial próximo ao Alto-Comando afirma que o Exército “não resistirá ao novo governo, mas há certamente generais que apostam em uma quimérica virada do jogo”. A convicção, diz, tem natureza ideológica. “As Forças Armadas responderam pelo apoio ao atual presidente, estão envolvidas no processo e é natural que nestas circunstâncias isso aconteça. Agora, como instituição do Estado, dificilmente vão se opor ao novo governo. Baterão continência ao chefe de Estado, chefe supremo das Forças Armadas.” Entre os pontos de apoio com os quais Lula pode contar na disputa interna, o militar cita generais reformados, entre eles Enzo Peri e Sérgio Etchegoyen. “Estes talvez possam ter uma postura mais consentânea com a realidade. Não estão mais na ativa, mas são chefes respeitados e têm liderança interna. São discretos e têm como contribuir neste momento.”

Ex-chanceler e ex-ministro da Defesa, Celso Amorim acredita que, à exceção “dos militares que estão no governo e atuam diretamente como políticos”, não existe no Exército resistência significativa ao futuro governo. “Não percebi nos contatos recentes com generais da ativa e da reserva, todos de alto prestígio. Todos querem olhar para a frente.” Quanto à busca por apoios, Amorim é taxativo: “Não se trata de dizer quais são os generais alinhados ao novo governo. São generais alinhados à legalidade e é isso que importa”. Lembrado para o ministério, o diplomata segue pela tangente e diz que qualquer nome indicado por Lula será acatado. “É uma questão de respeito à lei e os generais mais importantes do Alto-Comando querem apoiar a legalidade. Além disso, percebo neles que a politização fez mal às Forças Armadas e, em particular, ao Exército.”

O presidente eleito faz questão de lembrar, sempre que possível, os investimentos nas Forças Armadas durante seus governos, mas os anos de Bolsonaro no poder inocularam veneno nas tropas. Embora tentem esconder os fatos, os comandos foram cúmplices do ex-capitão. A lista de crimes e desvios éticos é extensa. Vai da produção não explicada de cloroquina nos laboratórios do Exército às compras superfaturadas de picanha, uísque e Viagra. Do acúmulo de vencimentos exorbitantes ao pagamento ilegal do auxílio emergencial a 79 mil militares, conforme levantamento do TCU. Os abusos seriam suficientes para uma ampla limpeza no oficialato, mas não é o que se deve esperar de Lula. Integrantes da equipe de transição mandaram avisar à caserna: não está prevista a revisão de benefícios concedidos por Bolsonaro, entre eles a possibilidade de obter aumento no salário por meio de cursos. E quanto aos milhares aboletados em cargos de comissão civis? “Eles mudam naturalmente quando há alternância de governo. Não é natural querer transformar um cargo em comissão em cargo permanente”, avalia a fonte militar.

Para Francisco Carlos Teixeira, retirar os fardados da máquina pública “é fundamental para a credibilidade do novo governo”. Muitos militares que não são especialistas, diz o historiador, ocupam atualmente cargos nos ministérios da Saúde, da Justiça e da Educação, entre outros: “Vai haver ranger de dentes, isso me parece claro, principalmente porque muitos se acostumaram a um padrão de vida superior àquele oferecido pelas Forças Armadas. É uma questão difícil, mas é evidente que o Brasil não pode ­continuar sitiado, principalmente por elementos que não têm formação técnica para desempenhar as funções”. Amorim concorda: “Entre a ditadura e o governo civil a mudança nos cargos ocorreu sem traumas, não vejo como possa surgir algum problema. Isso não quer dizer que nenhum militar possa eventualmente ter um cargo civil. O que não pode haver é o militar da ativa virar ministro e depois voltar para a tropa. Isso não é possível”.

Quanto aos generais golpistas, a fonte militar sugere ligeireza da Justiça nas punições: “Acho que o Braga Netto deveria estar preso há muito tempo. Ele incita o golpe. É também extremamente grave que o comandante da 10ª Região Militar ainda não tenha sido preso ou punido”. Talvez fosse assim se o Poder Judiciário agisse em bloco e de comum acordo. No Brasil atual, parece existir um único magistrado, Alexandre de Moraes. Xandão tem se mostrado capaz de deter o cabo e o soldado. Enfrentar a tropa inteira é outra história.


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