18/05/2024 - Edição 540

Especial

ONU alerta contra “terror” bolsonarista

Abstenção por medo de violência política pode ajudar Bolsonaro na eleição

Publicado em 23/09/2022 9:56 - Jamil Chade e Leonardo Sakamoto (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Num comunicado inédito na história da recente democracia brasileira, oito relatores da ONU (Organização das Nações Unidas) se uniram para pedir às autoridades, candidatos e partidos políticos no Brasil a garantia que as próximas eleições sejam “pacíficas e que a violência relacionada com as eleições seja prevenida”. A declaração ocorre poucos dias depois de o presidente Jair Bolsonaro usar a tribuna da ONU para fazer campanha política, num gesto que deixou governos estrangeiros indignados com a postura do brasileiro.

O comunicado, mesmo sem citar o nome do presidente brasileiro, critica os ataques feitos contra o Judiciário, contra as urnas e alerta sobre o impacto desse comportamento para a sobrevivência da democracia. Nos bastidores, fontes da ONU confirmaram que a medida foi a maneira encontrada para colocar uma pressão sobre o governo para que não viole as regras eleitorais.

Sanções não podem ser aplicadas sobre o Brasil, muito menos por conta de um comunicado partindo de relatores. Mas a declaração serve como um alerta de que a comunidade internacional não está disposta a aceitar uma ruptura democrática no país. O impacto, caso Bolsonaro opte por esse caminho, seria uma condenação internacional praticamente imediata.

“Exortamos as autoridades a proteger e respeitar devidamente o trabalho das instituições eleitorais. Expressamos ainda nossas preocupações sobre o impacto que tais ataques poderiam ter sobre as próximas eleições presidenciais, e enfatizamos a importância de proteger e garantir a independência judicial”, disseram os especialistas.

“Ameaças, intimidação e violência política, incluindo ameaças de morte contra candidatos e candidatas, continuam a aumentar online e offline, particularmente contra mulheres, povos indígenas, afro-descendentes e pessoas LGBTI – muitas vezes com base na intersecção de identidades”, disseram os relatores. “Tais ações geram terror entre a população e impedem potenciais candidatos de concorrer a cargos”, afirmam.

A declaração foi assinada por Clément Nyaletossi Voule, relator especial sobre os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação, Reem Alsalem, relatora especial sobre violência contra mulheres e meninas, Francisco Cali Tzay, Relator Especial sobre os direitos dos povos indígenas, Mary Lawlor, Relatora Especial sobre a situação das pessoas defensoras dos direitos humanos; Morris Tidball-Binz, Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias; E. Tendayi Achiume, Relatora Especial sobre as formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada; Irene Khan, Relatora Especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão; Diego García-Sayán, Relator Especial sobre a independência de juízes e advogados

Segundo eles, o impacto desproporcional da violência política sobre as mulheres, povos indígenas, afro-descendentes e pessoas LGBTI pode aumentar este efeito assustador entre tais grupos, limitando as oportunidades para sua representação nas decisões que os afetam, perpetuando assim o ciclo devastador da exclusão.

No mês passado, a então alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, criticou os ataques de Bolsonaro contra as instituições democráticas e contra as urnas, além de de sua incitação à violência. Sua atitude levou o Itamaraty a apresentar um protesto formal contra a chilena.

No início do ano, ela já havia alertado para o risco de violência, o que levou o governo a elevar o tom contra Bachelet, exigindo que não houvesse “interferência” na eleição brasileira.

Ataques contra Poderes e contra a democracia

Sem citar o nome do presidente Jair Bolsonaro, os especialistas expressaram ainda suas preocupações com a “campanha difamatória em curso e com os contínuos ataques contra as instituições democráticas, o Poder Judiciário e o sistema eleitoral no Brasil, incluindo o sistema eleitoral eletrônico”.

“Estamos preocupados que este ambiente hostil represente uma ameaça à participação política e à democracia e instamos o Estado a proteger os candidatos de quaisquer ameaças, atos de intimidação ou ataques on-line e off-line”, disseram os relatores.

Os especialistas ainda fizeram um apelo para que “todos aqueles envolvidos no processo eleitoral devem se comprometer com uma conduta pacífica antes, durante e após as eleições”.

“Os candidatos e partidos políticos devem abster-se de utilizar linguagem ofensiva que possa levar à violência e a abusos dos direitos humanos”, afirmaram. Os especialistas disseram que discursos de ódio, desinformação de gênero e incitação dos candidatos e seus apoiadores durante o período de campanha eleitoral podem desencadear violência.

Para eles, cabe ao estado “assegurar que todos os processos eleitorais sejam não discriminatórios, livres de desinformação, discurso de ódio e incitação à violência. Todas as liberdades fundamentais, incluindo o direito à liberdade de reunião e associação e a liberdade de expressão devem ser defendidas”, afirmaram os oito relatores.

“Exortaram as autoridades brasileiras a tomar medidas específicas, voltadas para aqueles mais em risco, incluindo mulheres, afro-brasileiros, povos indígenas e pessoas LGBTI, para garantir que todos possam participar livremente do processo eleitoral, sem discriminação, assédio ou medo de uma potencial repetição da violência sexual e de gênero”, pediram.

Proteção a jornalistas e observadores

No comunicado, os relatores da ONU ainda pediram que as autoridades garantam que a sociedade civil, pessoas defensoras dos direitos humanos, observadores eleitorais e jornalistas possam conduzir seu trabalho legítimo sem intimidações, ataques físicos ou represálias.

“Estamos profundamente preocupados com relatos de assédio e ataques contra jornalistas, em particular contra mulheres. Os jornalistas desempenham um papel crucial durante as eleições, contribuindo para um processo eleitoral livre e inclusivo e para a credibilidade dos resultados”, disseram.

Eles lembraram que, já nas eleições passadas, o processo foi marcado pela violência e violações dos direitos humanos, incluindo o assassinato em 2018 da vereadora da cidade do Rio de Janeiro Marielle Franco, que era uma conhecida defensora dos direitos das mulheres, da igualdade racial e dos direitos das pessoas LGBTI.

“Preocupações sobre tais supostas violações foram levantadas por vários especialistas da ONU em uma comunicação conjunta ao Governo do Brasil, após as eleições de 2018. Neste contexto, “o Estado deve investigar sua execução de forma efetiva, rápida, completa e imparcial, e tomar medidas contra os responsáveis de acordo com o direito interno e internacional”, concluíram os especialistas.

Abstenção por medo de violência política pode ajudar Bolsonaro na eleição

Entre os eleitores de Lula, 10% afirmam que podem deixar de votar com medo da violência política no dia das eleições, segundo o Datafolha. Coincidentemente, essa é, em média, a vantagem do petista para Jair Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto. Sim, o medo como estratégia pode entregar urnas que não traduzam fielmente a vontade da população.

A campanha de Lula, que já se preocupava com o impacto da abstenção tradicional em sua tentativa de liquidar a fatura no primeiro turno, também acendeu o alerta para a abstenção provocada pelo medo. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos.

Por mais que agressões não sejam monopólio de um determinado grupo político, os assassinatos por motivos eleitorais têm sido. Os petistas Marcelo Arruda, morto a tiros em Foz do Iguaçu (PR), e Beneditos dos Santos, executado com 15 facadas e uma machadada, em Confresa (MT), por bolsonaristas são provas disso.

Tanto que, considerando apenas os eleitores de Bolsonaro, são 5% os que podem deixar de votar por temer violência. Neste momento, os seguidores do atual presidente desfrutam de uma sensação de segurança no país que não é compartilhada pelos apoiadores do petista.

O que, claro, impacta na estética da campanha.

Com apoiadores de Lula sendo mortos, petistas evitam colocar adesivos em carros e bandeiras em suas casas, como em outras eleições, com receio do que possa vir a acontecer. Ainda mais após o presidente ter facilitado a aquisição de armas de munição a seus seguidores, que montaram arsenais domésticos.

O Datafolha apontou também que 67,5% afirmam temer serem agredidos fisicamente pela sua escolha política ou partidária, questão encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade). E 3,2% dizem ter sofrido ameaças por motivos políticos no mês anterior.

Isso não é aleatório, mas vem sendo fomentado. Um dos efeitos colaterais do presidente afirmar que é necessário “fuzilar a petralhada” (01/09/2018), realizar “uma limpeza” para “varrer do mapa esses bandidos vermelhos” (21/10/2018) ou “extirpar da vida pública” (07/09/2022) os adversários, é que muitos de seus seguidores tornam essas declarações realidade.

Na média da sociedade, 9% dizem que podem deixar de votar com medo de sofrer violência de origem política. Se as pessoas são impedidas de fazer campanha e de votar por medo do que pode acontecer com sua vida, uma eleição não está transcorrendo como deveria.

Isso sim, e não as mentiras contadas sobre as urnas eletrônicas, é um indicador de que as eleições podem não ser livres.

Violência, medo e abstenção, o que ainda pode favorecer Bolsonaro

A eleição presidencial está definida, mostram todas as pesquisas A não ser…

A não ser que cresça exponencialmente no país até o dia 2 de outubro o número de casos de violência política, o que alimentará o medo de votar e poderá resultar em um índice de abstenção maior do que se imagina. Eleitores de Lula são sensíveis a isso.

O tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu, no Paraná, foi assassinado por um bolsonarista porque Lula era o tema da sua festa de aniversário. Um eleitor de Lula na área rural do Mato Grosso foi morto com 14 facadas por um bolsonarista que tentou decapitá-lo.

Na última terça-feira (20), pesquisador do Datafolha foi agredido com chutes e socos por um bolsonarista em Ariranha, no interior de São Paulo, em meio a uma escalada de hostilidade contra profissionais do instituto durante o processo eleitoral.

A impressão digital de Bolsonaro pode ser encontrada em todos os episódios. Nenhum presidente da República em período democrático estimulou mais a violência do que ele. Nos quatro anos de governo Bolsonaro, o Brasil virou um país armado.

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sistema de controle da Polícia Federal registra que cidadãos comuns têm hoje quase o dobro de armas que todo o efetivo das polícias Civil, Federal, Rodoviária Federal e guardas municipais.

Um outro sistema, o de controle do Exército – que supervisiona as Forças Armadas, as polícias militares, bombeiros e os CACs – registra mais de 957 mil armas na mão dos caçadores, atiradores e colecionadores, e mais da metade só de 2019 para cá.

Por prudência, ou porque de fato acredita nisso, a maioria dos analistas políticos aposta mais em uma decisão em segundo turno. A campanha de Lula trabalha com essa hipótese quando nada para que os militantes do PT descalcem o salto alto.

Mas ela também não se empenharia tanto pelo voto útil se julgasse impossível liquidar a fatura no primeiro turno. Os eleitores de Ciro Gomes (PDT) e de Simone Tebet (MDB) entraram no radar do PT como prioridade máxima, principalmente os de Ciro.

Recém-chegado de uma viagem internacional que não lhe rendeu um único voto, Bolsonaro aproveitou o dia para reunir-se com assessores e discutir os próximos passos de sua campanha. Será inevitável que visite estados populosos onde ainda vai mal.

Até aí, é o feijão com arroz a ser comido por candidato que não perdeu a esperança de vencer. Sim, mas o que poderá fazer além disso? O diabo é que quando as coisas numa campanha começam a dar errado a poucos dias da eleição, erradas irão até o fim.

O contrário igualmente é verdade. Com mais de 30 campanhas em seu currículo, algumas delas em outros países, Fernando Barros, presidente da PROPEG, agência baiana de propaganda, ensina:

“Expectativa de vitória é o mais poderoso ingrediente que define a vitória de uma campanha”.

Segundo ele, a expectativa de vitória está do lado de Lula. Só o imprevisível ou um formidável erro de campanha poderá construir outro resultado. Imprevisível é imprevisível. Erro pode ser evitado.

STF limita compra e porte de armas

Poucas horas após Jair Bolsonaro ter usado a tribuna da Assembleia Geral da ONU, na terça (20), para defender o “direito à legítima defesa”, um eufemismo para apoiar o armamento da população, o STF formou maioria para validar a derrubada de parte dos decretos presidenciais que despejaram uma quantidade letal de armas e munições na sociedade.

Referendaram a decisão do ministro Edson Fachin, que havia limitado o alcance desses “decretos da morte”, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Nunes Marques, básico, votou contra.

Com isso, não basta mais o cidadão dizer que precisa de uma arma porque se sente inseguro. Deve provar a efetiva necessidade. E a quantidade e o tipo de armas e munições que poderá adquirir também deve ser proporcional a essa necessidade – os decretos de Bolsonaro permitiam a montagem de verdadeiros arsenais para guerra. Ou para contestação eleitoral, vai saber.

Ao elencar “valores fundamentais para a sociedade brasileira” nas Nações Unidas, na manhã desta terça, Bolsonaro falou “do direito à vida desde a concepção” e do “repúdio à ideologia de gênero”, além do “direito à legítima defesa”. As declarações miraram sua base mais conservadora no Brasil, que tenta garantir o capitão no segundo turno.

A restrição da efetividade dos decretos de Jair Bolsonaro que facilitaram o acesso a armas e a munições é uma boa decisão do Supremo Tribunal Federal que vem com anos de atraso.

Pois, desde o início de seu governo, o presidente semeou pistolas, fuzis e cartuchos em grandes quantidades por todo o Brasil. E adubou o terreno com seu discurso de que armas são a solução. Agora, vê satisfeito a colheita.

Limitação de decretos foi justificada pelo risco de violência política nas eleições

A liminar de Fachin usou como justificativa o risco de violência na campanha eleitoral. Foi comedido, pois o sangue derramado por bala devido ao ódio político já é uma realidade, como foi o caso do tesoureiro petista Marcelo Arruda, executado pelo bolsonarista Jorge Guaranho enquanto celebrava seu aniversário com temática lulista em Foz do Iguaçu (PR).

E a flexibilização do controle de acesso às armas, que Bolsonaro executou, permitiu que desavenças comuns tivessem fins trágicos, quando alguém perde a cabeça e puxa o gatilho. Por exemplo, na madrugada de 7 de agosto, o campeão de jiu-jitsu Leandro Lo foi baleado na cabeça por um policial militar em um show na Zona Sul de São Paulo após uma discussão.

Há caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), além de milicianos e membros do PCC, que compraram legalmente verdadeiros arsenais amparados pelos decretos de Bolsonaro. Teremos, possivelmente, uma barafunda jurídica movida por quem adquiriu o armamento sob a benção de Jair e, agora, quer o direito à posse e ao porte.

Parte dos seguidores de Jair Bolsonaro afirma que o aumento na quantidade de armas na sociedade levou à queda no número de homicídios durante o seu mandato. Bobagem. Mortes caíram sim, mas por conta da efetivação de políticas estaduais de segurança pública ao longo da última década, pelo armistício em guerras travadas por facções do narcotráfico (especialmente a partir de 2017) e pela transição etária do Brasil, que está ficando menos jovem e, com isso, com menos casos de violência. Se não tivéssemos o armamentismo de Bolsonaro, a redução poderia ter sido ainda maior.

A maioria dos brasileiros, contudo, rejeita a política armamentista do presidente. De acordo com pesquisa Datafolha, divulgada no mês de maio, 72% da população discorda da frase “a sociedade seria mais segura se as pessoas andassem armadas para se proteger da violência”. E 71% discordam da frase “É preciso facilitar o acesso de pessoas às armas”.

Por fim, 69% dos brasileiros afirmam discordar de um dos principais lemas do presidente: “Um povo armado jamais será escravizado”. Até porque, como sempre digo, um povo armado se mata.


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