18/05/2024 - Edição 540

Especial

O perigo não passou

Peru e Alemanha mostram que a democracia não pode relaxar: especialmente no Brasil

Publicado em 10/12/2022 8:48 - Victor Barone (Semana On), Josias de Souza, Leonardo Sakamoto e Jamil Chade (UOL), Fórum, Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Bolsonaro teme ser preso. Os indícios de crimes nos últimos quatro anos são muitos. Por isso, ele atua nos bastidores para incentivar clima de golpismo que ainda viceja no país. Ontem, em sua primeira manifestação pública após a derrota nas urnas, voltou a incentivar seus seguidores a desrespeitar a democracia. Parte das Forças Armadas corrobora esta postura irresponsável. Tivessem apoio internacional, já teriam, tentado uma quartelada. A democracia no Brasil ainda está em risco. Os recentes acontecimentos no Peru e na Alemanha mostram que as forças do totalitarismo não podem ser subestimadas. Até a posse de Lula muita coisa pode acontecer. Depois dela também. É preciso que as instituições e os democratas estejam atentos.

Prestes a perder a proteção institucional que o cargo de presidente lhe oferece, Bolsonaro vive a síndrome do que está por vir. Tem medo das consequências que podem advir dos processos de que é protagonista no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral. Em visita ao STJ, expressou o receio de sofrer uma perseguição. É preciso que o Ministério Público e o Judiciário correspondam aos sentimentos de Bolsonaro, agora um quase ex-presidente da República.

Não se deve perseguir o presidente. Ao contrário, é preciso assegurar-lhe o exercício da ampla defesa e todas as salvaguardas do devido processo legal. Mas convém encostar os atos do personagem no Código Penal e na legislação eleitoral.

Nos últimos quatro anos, o antiprocurador-geral Augusto Aras perdoou todas as perversões de Bolsonaro. Concedeu ao presidente um deixa-pra-lá preventivo, como se todos os seus crimes prescrevessem antes mesmo de ser cometidos. O Judiciário trata as pendências a golpes de barriga. Acumulou-se um notável passivo.

É como se vigorasse um entendimento tácito de que ser Bolsonaro já é castigo suficiente para qualquer um. O problema é que o personagem se esforçou ao longo do mandato para demonstrar que não é qualquer um.

Bolsonaro governou o país como um símbolo da estupidez inimputável. Graças à inércia das instituições, o símbolo jamais precisou responder pelo que simboliza. O fim do mandato seria um bom mote para o início de uma nova fase.

Prisão de ex-presidente do Peru aumenta angústia de Bolsonaro com 2023

A prisão do, agora, ex-presidente do Peru Pedro Castillo aumenta a angústia que já ronda Jair Bolsonaro sobre o que acontecerá com ele a partir do momento que perder o foro privilegiado no final do ano. Ele tem muito medo de ser preso.

Seus comentários ao longo dos últimos anos sobre isso não foram apenas estratégia para deixar seus seguidores prontos para quando ele os chamasse às ruas em atos golpistas. Era o seu inconsciente gritando que há uma assombração rondando seu sono – e, definitivamente, não é o “fantasma do comunismo”.

Bolsonaro não tentou dissolver o Congresso Nacional, nem instalar um estado de exceção, como Castillo, mas atacou a Constituição, como seu colega, bem como a democracia, as instituições da República e o sistema de votação na tentativa de se reeleger.

Isso sem contar que as investigações sobre os bloqueios golpistas em estradas e os atos golpistas em frente aos quartéis, que se sucederam ao resultado do segundo turno, podem desembocar no próprio presidente.

E temos a sua responsabilidade em parte dos 690 mil brasileiros mortos por covid-19, na corrupção que envolveu até pastores cobrando propina no Ministério da Educação e nos bilhões gastos na tentativa de comprar votos, que ajudaram a criar o caos nas contas públicas neste final de ano.

No Peru, as instituições funcionaram e o presidente foi destituído e preso. No Brasil, Bolsonaro só não foi cassado e/ou preso porque contou com o apoio do centrão no Congresso Nacional e a complacência do procurador-geral da República, Augusto Aras – proteção que termina em 31 de dezembro.

Esse medo se manifestou repetidas vezes na comparação a outra líder sul-americana: a ex-presidente da Bolívia, Jeanine Añez, condenada por um golpe de Estado em junho deste ano. Ela estava presa há 15 meses e sendo julgada junto com ex-chefes militares.

Logo após a sentença ser declarada, Bolsonaro se comparou a ela, durante visita a Orlando, nos Estados Unidos. Poderia ter se comparado a qualquer estadista com grandes feitos. Preferiu uma pessoa acusada e sentenciada por golpe de Estado.

“A turma dela perdeu, voltou a turma do Evo Morales. O que aconteceu um ano atrás? Ela foi presa preventivamente. E agora foi confirmado dez anos de cadeia para ela”, disse. E foi além: “Qual a acusação? Atos antidemocráticos. Alguém faz alguma correlação com Alexandre de Moraes e os inquéritos por atos antidemocráticos? Ou seja, é uma ameaça para mim quando deixar o governo?”

No dia 27 de abril, a ex-presidente da Bolívia já havia aparecido em um discurso de Bolsonaro no Palácio do Planalto. “Tenham certeza eu jamais serei uma Jeanine, jamais, porque primeiro eu acredito em Deus e depois acredito em cada um de vocês que estão aqui. A nossa liberdade não tem preço, digo mais, como sempre tenho dito: ela é mais importante que a nossa própria vida, porque um homem, uma mulher sem liberdade não tem vida”, disse.

O “acredito em cada um de vocês que estão aqui” mostra que ele acredita que haverá resistência à sua prisão.

Jeanine é figurinha fácil no inconsciente de Bolsonaro. Em junho de 2021, quando ela já estava presa, ele também tratou do assunto a seus seguidores. “O que aconteceu na Bolívia? Voltou a turma do Evo Morales e, mais ainda, a presidente que estava lá no mandato tampão [Jeanine Añez] está presa, acusada de atos antidemocráticos. Estão sentindo alguma semelhança com o Brasil?”, disse.

Análises tanto do Tribunal de Contas da União quanto da equipe de transição do governo Lula apontam que a inclusão de milhões de famílias formadas por apenas uma pessoa entre os beneficiários ocorreu sem a aplicação de medidas para evitar fraudes em meio às necessidades eleitorais do presidente. E que o empréstimo consignado foi usado como arma por votos mesmo com os riscos que ele representa para a população vulnerável.

Parecer da equipe técnica do TCU, revelado pelo jornal O Globo, aponta pagamentos indevidos na inclusão de 3,5 milhões de famílias em agosto deste ano sob o pretexto de zerar a fila mas que visavam a impulsionar a campanha. Houve, segundo o parecer, uma “duplicação da quantidade de famílias unipessoais” beneficiárias.

O ex-ministro Aloizio Mercadante, coordenador dos grupos técnicos da transição, indicou que isso pode representar crime de compra de votos com dinheiro público. Defendeu que Bolsonaro seja acionado administrativamente e na Justiça por isso.

O presidente sabe que manter bolsonaristas excitados na porta dos quartéis não impedirá Lula de assumir o governo, mas é útil como aviso do que ele é capaz de mobilizar caso a prisão entre em seu horizonte no ano que vem. Se ele já temia ser Añez, agora também teme ser Castillo.

Bolsonaro diz que tem medo de “perseguição judicial”

Após chorar em evento com militares e aparecer em público sempre com o semblante fechado, Jair Bolsonaro teria confidenciado a ministros das altas cortes do país que tem medo de sofrer uma “perseguição judicial” após deixar o cargo, no dia 1º de janeiro.

A declaração teria sido feita durante a posse dos ministros Messod Azulay e Paulo Sérgio Nogueira, indicados por ele ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), no último dia 6, quando Bolsonaro ficou frente à frente com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, pela primeira vez após a derrota nas urnas.

Segundo Carolina Brígido, no portal Uol, juízes e ministros das cortes judiciais teriam respondido que o futuro ex-presidente não será alvo de medidas na Justiça quando perder o foro privilegiado, embora responda a quatro inquéritos no STF.

Além disso, Bolsonaro teme pela liberdade dos filhos, em especial de Carlos Bolsonaro (PL-RJ). O chefe do chamado Gabinete do Ódio, que coordenou a reta final da campanha do pai, chegou a morar no Palácio da Alvorada por seis meses em razão do medo de Bolsonaro de que ele fosse preso no inquérito das fake news.

Embora tenha ficado sério durante o evento no STJ, Bolsonaro gargalhou como há muito tempo não se via nos bastidores, ao lado dos dois novos ministros que tomaram posse na corte.

O que o Peru e o Brasil têm em comum, e o que os distingue

Comparado com o Peru, o Brasil é um exemplo de estabilidade política. Verdade que para não ser deposto, o presidente Getúlio Vargas suicidou-se; na tentativa de dar um golpe, Jânio Quadros renunciou à presidência; os militares é que deram o golpe depois, implantando uma ditadura que se estendeu por 21 anos.

Mas, de 1985 para cá, reina a paz. O presidente Tancredo Neves só não tomou posse porque morreu, dando lugar ao vice. O primeiro presidente eleito pelo voto direto, Fernando Collor, envolveu-se em corrupção e foi derrubado pelo Congresso, assumindo o vice. E o Congresso derrubou a presidente Dilma, mas o vice assumiu.

Tudo dentro da mais perfeita legalidade, como legal foi a eleição do presidente Jair Bolsonaro, cavalgado pelos militares para que eles pudessem voltar ao poder. Verdade também que esses últimos quatro anos foram vividos sob a ameaça de golpe caso Bolsonaro não se reelegesse. Lula derrotou-o e se prepara para tomar posse.

Seria diplomado no dia 19 de dezembro. Antecipou a diplomação para o dia 12. Nunca se sabe… Há bolsonaristas acampados em áreas próximas a quartéis à espera de que algo caia do céu e Lula não tome posse. Os atuais comandantes militares talvez renunciem aos seus cargos por se recusarem a bater continência a Lula.

Fora isso, porém… O Peru é que dá pena. Por lá, assumiu a vice de Castillo, a primeira mulher a governar o país. Quando Castillo foi eleito, Lula congratulou-se com ele. Os adversários de Lula esperavam que ele protestasse contra a queda de Castillo, mas nessa casca de banana só escorregaria um amador tipo Bolsonaro.

Lula foi contra o golpe de Castillo e elogiou o triunfo da democracia no Peru. A eleição de Lula significou também o triunfo da democracia no Brasil, enfraquecida com o aval dos que a suprimiram antes. Não a suprimiram desta vez porque seria um desastre do ponto de vista estritamente econômico. Quem o disse?

O general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, que se elegeu senador pelo Rio Grande do Sul. Ele promete: “Faremos uma oposição responsável a Lula”.

Fascistas na Alemanha

A sombra do fascismo não se estende apenas sobre a América do Sul. Na Alemanha, uma operação policial de grandes proporções na quarta-feira (7), as autoridadesprenderam 25 pessoas suspeitas de participar de um grupo terrorista de extrema direita que tinha como objetivo derrubar o estado alemão.

Os suspeitos que foram detidos são acusados pelo Ministério Público do país de estarem tramando e organizando um golpe de estado desde novembro de 2021. Tal preparação inclui a compra de equipamentos, o recrutamento de novos membros e a realização de aulas de tiro.

Grupo terrorista tentava recrutar militares. Uma das surpresas das autoridades ainda foi descobrir que um dos membros ativos do grupo era um soldado do Comando das Forças Especiais, além de vários reservistas. Militares ainda estão sob investigação.

De fato, o inquérito descobriu que o grupo de extrema direita tentava recrutar membros das Forças Armadas e policiais.

Para realizar a operação, as autoridades alemãs mobilizaram 3 mil policiais e forças de segurança em 11 estados federais, como Baden-Wuerttemberg, Baviera, Berlim, Hesse, Baixa Saxônia, Saxônia e Turíngia. Grupos na Áustria e Itália também foram alvo de um mandado de busca e apreensão.

Nos últimos anos, em meio a um debate sobre a forma pela qual o partido de extrema-direita AfD chegou a ser uma força política na Alemanha, as autoridades em Berlim reconheceram que estão sendo obrigadas a lidar com outro problema: a presença de neonazistas dentro do próprio exército alemão.

Num informe produzido pelo Ministério da Defesa da Alemanha há cinco anos e enviado ao Parlamento em Berlim, o governo admitiu que 391 casos suspeitos de infiltração de extremistas dentro das casernas foram analisados. Pressionado, o governo de Angela Merkel ainda indicou naquele momento que iria adotar novas medidas e que tem “tolerância zero” em relação a casos descobertos.

Controles mais rígidos foram adotados para avaliar recrutas. Em termos proporcionais, o número de casos de neonazistas é marginal dentro de uma instituição com quase 180 mil pessoas. Mas uma proliferação de revelações por parte da imprensa alemã sobre incidentes nos quais soldados foram identificados como sendo simpatizantes de grupos neonazistas reabriu o debate sobre a presença da extrema direita na sociedade.

Golpistas na Alemanha eram simpatizantes de grupo recebido por Bolsonaro

O governo de Jair Bolsonaro recebeu em seus gabinetes membros de um movimento que é citado, na Alemanha, como parte da investigação contra a trama que organizava um golpe de estado para derrubar o governo em Berlim.

Dois alemães foram recebidos, em 2021, pela cúpula do bolsonarismo, em Brasília. Eles faziam parte do movimento Querdenken.

Mas o que esse grupo tem a ver com a tentativa de golpe na Alemanha? De acordo com fontes da polícia alemã, alguns dos detidos eram também simpatizantes do movimento Querdenken, que ganhou força na pandemia por ser contra vacinas e divulgar teorias conspiratórias. O grupo negacionista já estava na mira de inteligência alemã por ter laços com neonazistas desde 2020.

Agora, os investigadores querem saber qual o papel do Querdenken no estabelecimento dessa rede clandestina que visava atacar a democracia.

A informação do envolvimento de simpatizantes do Querdenken foi publicada pela imprensa alemã —os grupos de de mídia SWR e ARD. Jornais, como o britânico The Guardian, também citaram o envolvimento do movimento na investigação.

A então ministra Damares Alves concedeu uma longa entrevista para a alemã Vicky Richter, ligada ao Querdenken. Ela é ainda cofundadora, com Markus Haintz, do dieBasis, um partido antivacina e negacionista da pandemia que espalha pelas redes idéias conspiratórias.

Entre os dias 6 e 9 de setembro de 2021, a representante do grupo foi recebida por Damares, Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Bia Kicis.

Na conversa, a ministra denuncia a “erotização das crianças por meio de música, da arte, do cinema, das festas populares”.

Como resposta, a alemã afirmou que está “a par das elites que pagam caro para satisfazer suas fantasias” com crianças, além de “ritos de estupros” por comunidades tradicionais.

“O Brasil romantizou muito as práticas culturais. Mas quando vamos às aldeias, não tem nada disso. Tem dor e tortura”, respondeu Damares.

Ela, por seu lado, insiste que não é compreendida. “A imprensa fala que eu sou louca, fanática, fascista, nazista, negacionista, maluca”, disse a então ministra. “Nossa proposta mexe com muitas estruturas. É uma proposta de fortalecimento de família e proposta conservadora”, explicou. “Nós nos afastamos de pautas como legalização do aborto, para proteger a mulher de verdade”, insistiu. Ela também atacou o “relativismo cultural no Brasil”.

“O novo assusta. Eu assusto e não sou compreendida por ter uma visão nova”, argumentou a ministra. “Mas eu não sou maluca. Amo as crianças do Brasil”, garantiu Damares.

“Não estamos cansados. Só Deus nos impede. Só se não for vontade de Deus que estejamos na condução do Brasil, não vamos continuar”, completou.

Alguns dias depois de estar no ar, a entrevista com Damares foi retirada das redes sociais. Os autores protestaram, alegando que havia uma conspiração das grandes empresas digitais para impedir que se denunciasse casos de pedofilia.

“Como deve ser o medo das Big Tech e dos globalistas diante da verdade sobre esses crimes silenciosos?”, questionou a autora da entrevista.

O motivo, porém, era outro. Os representantes da extrema-direita alemã tinham usado uma música sem a autorização dos autores, que protestaram e conseguiram derrubar o link.

O encontro ocorreu semanas depois de Bolsonaro receber uma deputada do partido de extrema direita, AFD, alvo de monitoramento por parte dos serviços de inteligência da Alemanha por suspeitas de minar a democracia.

A deputada, neta de um ministro de Adolf Hitler, também argumentou que sua viagem ao Brasil tinha ocorrido durante seu período de férias.

Entre os membros do grupo detido por organizar um golpe na Alemanha também estava um ex-membro de tal partido.

Bolsonaro “passa faixa” da aliança ultraconservadora para Orbán

O governo Bolsonaro repassou para Viktor Orbán o comando do Consenso de Genebra, bloco ultraconservador que defende na ONU e OMS uma resistência contra qualquer referência à educação sexual e direitos reprodutivos na agenda internacional. A aliança ainda tem como bandeira a luta contra o aborto.

O temor das lideranças ultraconservadoras é que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva repita o gesto feito por Joe Biden que, nas primeiras horas de seu mandato, emitiu uma ordem para que a diplomacia se afastasse imediatamente da aliança reacionária. Mais recentemente, uma decisão no mesmo sentido foi adotada pelo governo de Gustavo Petro ao assumir a presidência da Colômbia.

Antes de uma eventual ruptura do Brasil com a coalizão, o governo organizou a transferência da secretaria do bloco para as autoridades de Budapeste.

Originalmente, a aliança foi costurada pelos governos de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, com a então ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, e o então chanceler Ernesto Araújo no comando. A meta do grupo – que ganhou o nome de Consenso de Genebra – era o de impedir e até vetar qualquer referência em organismos internacionais a temas sobre direitos reprodutivos e acesso à saúde sexual para meninas e mulheres.

Oficialmente, o objetivo era o de lutar contra uma suposta agenda dos organismos internacionais de promover o aborto. Em entidades como a OMS e outras agências da ONU, a versão da aliança é contestada. Os organismos insistem que apenas querem a defesa da vida das mulheres e a descriminalização do aborto, algo que já se provou importante como política de saúde pública.

Além de Brasil, Hungria e EUA, a aliança conta com governos com péssimos resultados em termos de defesa das mulheres, incluindo Arábia Saudita e Bahrein.

Derrotados nas urnas, membros do governo de Donald Trump instruíram seus apoiadores a preservar a agenda ultraconservadora e repassou ao Brasil de Bolsonaro a função de servir como secretaria da aliança.

Agora, com a derrota de Bolsonaro, a secretaria da coalizão foi passada nesta quinta-feira para o governo da Hungria, liderada por um dos governos mais reacionários da Europa e responsável por políticas que geraram amplo debate pela Europa.

Cristiane Brito, ministra de Família, Mulher e Direitos Humanos, fez a transmissão do comando da aliança em um evento em Brasília. Mas lançou um apelo para que os demais países e parceiros “não abandonem” a pauta pela “defesa dos valores da família brasileira”. “Vamos continuar na defesa da família”, insistiu.

Para ela, a aliança “é um marco na defesa da saúde da mulher” e garante a “soberania” dos estados nesses temas. Segundo a ministra, a Hungria passa a ser agora a “guardiã” da aliança e qualificou a ofensiva como um “grande despertar global pela proteção pela vida”.

Ao discursar, o embaixador da Hungria no Brasil, Zoltán Szentgyörgyi, insistiu que os dois países liderados pela extrema direita compartilham os mesmos valores.

Sem conseguir segurar as lágrimas durante o evento, a secretária da Família, Angela Gandra, afirmou que o governo Bolsonaro “cumpriu uma missão”.

O medo leva à reação

Bolsonaro resolveu aproveitar a eliminação da Seleção Brasileira da Copa do Mundo do Catar para quebrar o silêncio e fazer um discurso com tom golpista aos seus apoiadores. Após mais de um mês em silêncio, o futuro ex-presidente reuniu apoiadores no jardim do Palácio da Alvorada, na tarde de sexta-feira (9), e fez uma fala que foi interpretada como um sinal para que os bolsonaristas prossigam com seus atos antidemocráticos.

“Estou aqui, primeiro, porque acredito em Deus, em segundo lugar, porque devo lealdade ao povo brasileiro. Em 4 anos, despertamos o patriotismo no Brasil”, disse Bolsonaro no início de seu discurso, marcado por frases dúbias que incendiaram os fanáticos que ouviam.

“As Forças Armadas são essenciais em qualquer país do mundo. Sempre disse que as Forças Armadas são o último obstáculo para o socialismo. As Forças Armadas estão unidas, devem lealdade ao nosso povo e são uma das grandes responsáveis pela nossa liberdade”, disparou o ainda mandatário para os golpistas que reivindicam uma “intervenção militar”.

“Tenho certeza, entre as minhas funções garantidas pela Constituição, é ser o chefe supremo das Forças Armadas”, prosseguiu Bolsonaro, incendiando seus apoiadores, que responderam gritando “eu autorizo!”.

“Acredito em vocês, vamos acreditar no país. Tudo dará certo em momento oportuno”, prosseguiu o presidente em fim de mandato, sinalizando que ainda não aceitou a derrota eleitoral para o presidente eleito Lula (PT).

O discurso foi interpretado por apoiadores como um incentivo para intensificar a radicalização dos atos golpistas. “Não tenha dó do sangue que vai escorrer!”, respondeu um deles. 

Seguidores fiéis

O presidente caminha para o encerramento de seu mandato com aprovação de 39% dos brasileiros, segundo pesquisa Ipec divulgada na quinta-feira (8). O índice de reprovação a Bolsonaro ficou em 36%. O instituto, fundado por ex-executivos do Ibope, também aponta que metade dos eleitores aposta que o presidente eleito Lula (PT) fará um bom ou ótimo governo.

Mesmo derrotado, Bolsonaro conseguiu melhorar alguns indicadores de avaliação popular. O resultado coincide também com o recolhimento do presidente, que fez apenas um breve pronunciamento desde o fracasso nas urnas.

Pesquisa Ipec divulgada em 24 de outubro, seis dias antes da votação em segundo turno, indicava que 36% aprovavam sua gestão. Por outro lado, 40% achavam seu governo ruim ou péssimo. Em setembro o índice de aprovação a Bolsonaro era de 29%.

No novo levantamento, os que consideram o governo Bolsonaro representam 15% da população. Outros 24% avaliam que ele fez um bom governo. Para 23%, foi regular. No entendimento de 10% dos entrevistados, o presidente derrotado fez uma má administração. Mas, para 26%, sua gestão foi péssima. Não souberam responder à pergunta 2%.

O Ipec ouviu 2 mil pessoas em 126 cidades de todo país entre os dias 1 e 5 de dezembro. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

Ênfase no Brasil pós-Bolsonaro deve ser fortalecer democracia, diz ONU

Os brasileiros e suas instituições terão de renovar seu contrato social, depois de quatro anos de um desmonte promovido por Jair Bolsonaro. O alerta é do austríaco Volker Türk, o novo alto comissário da ONU para Direitos Humanos e que substituiu a chilena Michelle Bachelet. Para ele, o foco neste momento deve ser fortalecer as instituições democráticas do país, a inclusão e a participação popular na formulação de políticas públicas.

Numa coletiva de imprensa em Genebra às vésperas do dia internacional de direitos humanos, Türk deixou claro a reconstrução da democracia no Brasil deve ser a ênfase do novo governo.

“O que vemos nessa situação é uma ênfase forte em restaurar o apoio às instituições democráticas e o incremento de políticas públicas que aumentem a confiança, participação, inclusão e acho que isso é muito importante no contexto do Brasil”, afirmou.

“Olhando para o que ocorreu nos últimos anos em termos de problemas estruturais como desigualdade, proteção de indígenas, a segurança de jornalistas e a participação social e política, se formos dar um tempo, eu diria que é a ênfase forte na renovação do contrato social e direitos humanos”.

Segundo ele, os direitos humanos devem nortear essa renovação. “Os direitos humanos, no final do dia, decidem como um contrato social deve ser renovado e isso é o grande desafio do novo governo”, completou o representante máximo da ONU para direitos humanos.

Histórico de atritos com Bolsonaro

Nos últimos anos, a relação entre a ONU e Bolsonaro se revelou problemática. Num ato poucas vezes visto em relação ao Brasil, a ONU cobrou em meados do ano a independência das instituições nacionais em um ano de eleição, fez um apelo por um processo “democrático” e “sem interferência”.

As críticas contra o governo Bolsonaro levaram o Itamaraty a protestar contra Bachelet, insinuando que não aceitaria a intervenção da ONU no debate eleitoral.

Mas Bachelet ainda incluiu o Brasil em seu informe sobre situações que preocupam a entidade e aumentou o tom da cobrança. “Em outubro vocês têm eleições. E peço a todas as partes do mundo que as eleições sejam justas, transparentes e que as pessoas possam participar livremente”, disse. “Será um momento democrático muito importante e não deve haver interferência de nenhuma parte para que o processo democrático possa ser atingido”, insistiu.

Em relação à situação brasileira, ela não poupou críticas sobre diversos aspectos durante seu discurso. “No Brasil, estou alarmado com as ameaças contra os defensores dos direitos humanos ambientais e os povos indígenas, incluindo a exposição à contaminação por mineração ilegal de ouro”, declarou a chilena.

Ela também criticou a situação do racismo e da violência policial, um tema que já abriu uma crise entre o governo de Jair Bolsonaro e a entidade internacional. O presidente, há três anos, rebateu a chilena fazendo um elogio ao ditador Augusto Pinochet. O pai de Bachelet havia sido assassinado quando o general tomou o poder e a própria representante da ONU foi torturada.

Ela, porém, manteve suas críticas em relação à situação de direitos humanos no Brasil e, agora, alerta para a situação eleitoral. “Os casos recentes de violência policial e racismo estrutural são preocupantes, assim como os ataques contra legisladores e candidatos, particularmente os de origem africana, mulheres e pessoas LGBTI+, antes das eleições gerais de outubro”, disse.

Bachelet, num raro gesto, também fez uma cobrança sobre as instituições, ainda que não tenha citado textualmente o nome de Jair Bolsonaro e seus ataques contra o Judiciário e as instâncias responsáveis pelas eleições. “Apelo às autoridades para que garantam o respeito aos direitos fundamentais e instituições independentes”, completou Bachelet.


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