18/05/2024 - Edição 540

Especial

NÚMEROS DA VERGONHA

Internações por desnutrição infantil em 2022 foram as maiores em dez anos

Publicado em 24/02/2023 10:21 - André Lucena (Carta Capital), Tainá Andrade (Correio Braziliense), Stella Borges (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Em 2022, o Brasil registrou o maior número de crianças de até cinco anos internadas por desnutrição infantil desde 2012. O cenário consta em um levantamento realizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), por meio de dados obtidos pelo Ministério da Saúde. No ano passado, foram 4.135 crianças internadas. As informações são do site UOL desta sexta-feira 24.

Entre 2012 e 2022, mais de 3 mil crianças de até cinco anos são internadas por desnutrição, todos os anos. No período, os picos tinham sido 2012 (4.128 internações), 2014 (4.072 internações) e 2019 (4.017) internações.

O patamar máximo em 2022 mostra que o país não vem sendo capaz de combater a desnutrição infantil, apesar do Brasil ter saído do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU) ainda em 2014, mas voltado em 2022. A volta ao mapa da fome significa que a falta de alimentos atinge uma média superior a 2,5% da população. No Brasil, em 2022, esse percentual foi de 4,1%, de acordo com a ONU.

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Em relação à desnutrição infantil, o levantamento da SBP mostra que, em média, onze crianças de até cinco anos são internadas, todos os dias. Aliado ao problema humanitário da fome, o crescimento das internações gera um problema de saúde pública, demandando uma melhor estrutura hospitalar, e acontece no país de modo desproporcional entre as regiões.

No Nordeste, por exemplo, foi registrado o maior número de hospitalizações, com 15,5 mil desde 2012. A região concentrou 36% de todas as internações do período, enquanto no Sudeste aconteceram 26% das internações, no Norte e no Sul 14%, e no Centro-Oeste 10%.

A SBP afirmou, porém, que os números do Norte podem estar subestimados, uma vez que questões logísticas podem afetar o próprio acesso aos hospitais e muitos casos de desnutrição infantil podem não ter sido registrados porque crianças não conseguem chegar à rede hospitalar para tratar do problema.

O pico de internações de crianças por desnutrição e a volta do Brasil ao mapa da fome fizeram de 2022 um ano paradigmático sobre a situação econômica e social do país.

O retrocesso do Brasil no combate à fome infantil pode ser visto, também, nos dados do “Observa Infância”, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que mostra que, enquanto o país registrava, em 2011 um taxa de hospitalizações de crianças menores de um ano associadas à desnutrição de 75 hospitalizações para cada 100 mil nascidos vivos, esse número saltou, em 2021, para 113 hospitalizações a cada 100 mil nascidos vivos. Um crescimento, portanto, de 33,6%.

Fora dos números frios

Hestella, hoje com 2 anos, é acompanhada de perto desde que tinha 2 meses, quando os médicos perceberam que a altura dela estava abaixo do esperado. Desde então, realiza um tratamento contra má nutrição infanto-juvenil no Cren (Centro de Recuperação e Educação Nutricional), em São Paulo, onde recebe cinco refeições por dia.

“A Hestella continua com baixa estatura, mostra sinal de melhora, e depois recua. Tem sido acompanhada de perto”, diz a mãe, a garçonete Leticia Menezes, 26. Heitor, 5, é o outro filho de Letícia e também faz acompanhamento no Cren, na zona leste da capital paulista.

“Às vezes bate o desespero de falar ‘Meu Deus, e agora, não tem nada’. O Cren consegue dar uma ajuda, com doação de cesta básica. Mas já faltou comida para oferecer para eles. No quintal onde moro tem a madrinha da Hestella, eu falei para ela: ‘Nem que para mim não tenha (comida), mas pelo menos para eles'”, afirma Leticia Menezes.

Todo dia, em média, 10 crianças menores de cinco anos são internadas por desnutrição no SUS (Sistema Único de Saúde). No ano passado, esse número atingiu o maior patamar em dez anos.

Leticia está grávida de 6 meses e cria sozinha os filhos no bairro de Vila Nova União, na zona leste. O pai das crianças sofre com o alcoolismo e está internado numa clínica de reabilitação. O salário nem sempre cobre todas as despesas.

A crise econômica, a pandemia e as quedas das taxas de vacinação estão entre as possíveis causas para essa piora no quadro. A avaliação é da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), que realizou o levantamento a partir de dados do Ministério da Saúde.

“A desnutrição é uma doença que tem raízes profundas na desigualdade social. Tem também as crianças que estão desnutridas, mas que não alcançam nem o hospital. É um retrocesso, um ponto de bastante atenção”, diz Maria Paula de Albuquerque, pediatra e gerente geral clínica do Cren.

Embora o Brasil tenha saído do mapa da fome em 2014, a desnutrição nunca deixou de ser um problema. Especialmente para pessoas de maior vulnerabilidade, como crianças em bolsões de pobreza (como as periferias), populações indígenas e quilombola, segundo a especialista.

O Nordeste é a região com o maior número de hospitalizações: 15,5 mil desde 2012.

– Nordeste: 36% dos casos

– Sudeste: 26% dos casos;

– Norte e Sul: 14% dos casos cada;

– Centro-Oeste: 10% dos casos.

Os dados do Norte, no entanto, podem estar subestimados. Muitas crianças nem conseguem chegar ao hospital para tratar o problema, devido à extensão territorial, acredita a SBP.

“A criança desnutrida marca uma família em situação de vulnerabilidade. Muitas vezes pai e mãe estão fragilizados. A gente precisa olhar se essa mãe é vítima de violência, a questão de escolaridade. Trabalhamos em rede com a assistência social para fortalecer essa criança”, diz Maria Paula.

Helena, 4, nasceu prematura e abaixo do peso e da altura adequados. Desde os 8 meses frequenta o Cren, conta a mãe, a atendente de lanchonete Maria Cassiane Alves, 31.

“Ela está começando a se desenvolver, ainda não é o que eles esperam, não é um processo rápido”, diz ela, que mora com os pais e a filha em Vila Nova União.

A menina passa o dia no Cren —das 7h às 17h. Além das refeições que faz no local, os profissionais também orientam a família a oferecer alimentos nutritivos para ela em casa.

Os impactos da desnutrição vão desde prejuízos no desenvolvimento afetivo e cognitivo da criança até a morte. Elas ainda têm maior propensão a desenvolver doenças crônicas, como diabetes e hipertensão e de sofrerem com transtornos alimentares. Hestella sofre de bronquite e dermatite, segundo a mãe.

Quanto mais desnutrida, mais suscetível a criança fica a pegar infecções. Daí a importância de ter a caderneta de vacinação em dia, destaca Fabíola Suano, presidente do Departamento de Nutrologia da SBP.

Suano destaca a necessidade de fortalecer o sistema de saúde na atenção básica para evitar o problema, ou para que a criança continue se recuperando após receber alta hospitalar.

“São precisos insumos, profissionais capacitados, cuidado com a família. Se estiver muito empobrecida, as escolas têm função fundamental para dar auxílio a essa criança, para que ela não volte a ser internada”, diz Fabíola Suano, presidente do Departamento de Nutrologia da SBP.

Especialistas defendem maior atenção à saúde básica em regiões pobres

O Observa Infância, iniciativa criada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para divulgar dados sobre a saúde de crianças brasileiras de até cinco anos, apontou, no monitoramento feito até 2021, um aumento no atendimento hospitalar a crianças sem acesso adequado a alimentos. Segundo o estudo, o número de hospitalizações de bebês menores de um ano por desnutrição neste ano foi o mais alto dos últimos 13 anos.

O Observa Infância registrou uma média de oito internações diárias por desnutrição, sequelas e deficiências nutricionais em bebês menores de um ano. Em 2021, a taxa chegou a 113 internações a cada 100 mil recém-nascidos, a maioria deles sendo pretos ou pardos.

De janeiro de 2018 a agosto de 2022, no Sistema Único de Saúde (SUS), foram registradas 13.202 hospitalizações. Delas 5.246 tinham a indicação preta ou parda no preenchimento da raça. A equipe monitora os dados sobre o tema desde 2008. A partir de 2012, observou-se um declínio persistente no índice — a taxa permaneceu menor que 80 internações a cada 100 mil recém-nascidos até 2015. Deste ano em diante, o número aumentou, atingindo o máximo da série em 2021.

Diagnóstico precoce

O coordenador do Observa Infância, Cristiano Boccolini, explica que, além do aumento dos preços de alimentos, especialmente os que compõem a cesta básica, a baixa qualidade dos empregos e a informalidade são fatores que influenciam no quadro de desnutrição. “A taxa de hospitalização também foi agravada pela situação de que até o Bolsa Família um dos critérios para receber o benefício era que a família com criança menor de 7 anos tinha que levar até o posto de saúde para realizar a pesagem e medição de altura”, conta o especialista.

“Com a mudança do programa, esse quesito passou a não ser mais obrigatório, então a detecção precoce de crianças desnutridas deixou de acontecer. Se não detecta e resolve na atenção básica, as crianças acabam sendo hospitalizadas”, pontua Boccolini.

De acordo com o estudo divulgado em setembro deste ano, pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), os domicílios onde moram crianças menores de 10 anos possuem maior índice de insegurança alimentar grave ou moderada — que ocorre quando não há qualidade na alimentação ou falta alguma das refeições. Os percentuais mais altos se concentram no Norte e Nordeste, com 51,9% e 49,4%, respectivamente.

Boccolini diz ter relatos dos efeitos da desnutrição no desenvolvimento da crianças. “O aleitamento exclusivo deve ocorrer até os seis meses. A partir disso tem que entrar com alimentos complementares, para a criança continuar se desenvolvendo”, conta. “Tem mães, em situação de fome, que seguem somente com o aleitamento, isso pode prejudicar o desenvolvimento da criança”, alerta. “Também tem relatos em que mães estão diluindo o leite de vaca ou a fórmula infantil com água para oferecer a alimentação à criança. Isso também prejudica”, acrescenta.

Geração comprometida

Para o coordenador do Observa Infância, Cristiano Boccolini, o problema da desnutrição em larga escala no Brasil é o possível surgimento de uma geração, em 15 anos, com maior prevalência de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, insuficiência renal e até obesidade. Isso porque, com a carência nutricional, há um condicionamento do organismo a poupar energia, gerando aumento de peso.

“A curto prazo as crianças desnutridas ficam mais propensas a infecções, podem ter atraso no desenvolvimento cognitivo e nos marcos infantis básicos, como para falar, andar, engatinhar. A médio e longo prazo, crianças que passaram por privação crônica e aguda de alimentação podem desenvolver doenças crônicas. Isso tem um peso, que é o custo das hospitalizações para o SUS. Depois, terá o custo para melhorar o rendimento escolar na idade adulta e para o acompanhamento dessas doenças ao longo da vida”, observa o especialista.

Um problema para a vida toda

Brasileiros na fila do osso, atrás de restos de carne. Brasileiros à espera do lixo do supermercado, em busca de algo aproveitável. Essas são cenas de um país que, no último trimestre de 2020, tinha mais da metade de sua população vivendo com algum tipo de insegurança alimentar, com pelo menos 19 milhões de cidadãos enfrentando sua face mais brutal: a fome.

Saúde básica

Maria Helena Ribeiro de Checchi, professora de medicina na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), conhece a realidade de Coari (AM), município a 363 km de Manaus. Ela explica que, no território ribeirinho, a falta de acesso à saúde básica e ao saneamento são os fatores críticos para a má nutrição das crianças menores de um ano.

“Elas [as crianças] não têm um acesso mais facilitado a serviços de assistência à saúde, como de prevenção e promoção de saúde. Nesse sentido, toda e qualquer orientação nutricional, suporte medicamentoso, orientação de prevenção e promoção de saúde básica tem um limite grande. A questão do saneamento básico é um potencializador das fragilidades de sobrevivência ou de uma expectativa de vida para as crianças. Nós vivemos dois Brasis muito distintos, há um Brasil esquecido ainda nos territórios do interior do Amazonas, onde políticas públicas não têm pleno acesso no sentido de promover um suporte de saúde quanto a uma oferta de alimentação”, explica.

“Os municípios têm que se organizar para chegar às famílias invisíveis ao sistema de proteção social. É preciso voltar a acompanhar o estado nutricional das crianças até sete anos, com uma ação sistemática”, alerta Cristiano Boccolini.

Gestão Bolsonaro fez crescer em 331% mortes de yanomamis por desnutrição

Durante os quatro anos da trágica gestão do governo Bolsonaro o número de mortes por desnutrição entre os yanomamis cresceu 331% em relação aos quatro anos anteriores. A BBC Brasil chegou a estes valores por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Conforme aponta a reportagem, foram 177 mortes na etnia relacionadas a desnutrição durante o governo Bolsonaro (2019-2022). Os dados foram captados junto ao Ministério da Saúde e mostram que nos quatro anos imediatamente anteriores foram 41 mortes.

Os dados têm como base o registro feito no Distrito Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), que compila informações desde 2013. Foram contabilizadas oito mortes no primeiro ano e seis em 2014. Entre 2015 e 2018, governos Dilma Rousseff e Michel Temer, foram as 41 mortes comparadas por igual período do governo Bolsonaro.

Mortes de yanomamis por desnutrição sob Bolsonaro

2019 – 36 mortes;

2020 – 40 mortes;

2021 – 60 mortes;

2022 – 41 mortes (números totais ainda podem ser maiores).

A desnutrição foi a segunda maior causa de mortes em 2022 no território, ficando atrás somente das mortes por pneumonia. Ambas as causas são ligadas às condições precárias em que vivem os yanomamis em decorrência do avanço do garimpo e da precariedade do atendimento de saúde que ocorreu sob o comando do ex-presidente que desmontou as políticas indigenistas.

A relação do garimpo com a desnutrição é direta, uma vez que os indígenas dependem da caça e pesca que ficam impossibilitadas pelo desmatamento e poluição dos cursos d’água. Nesse aspecto, as crianças e idosos são os principais atingidos, alerta a reportagem. Das 41 mortes registradas em 2021, 25 foram de pessoas com mais de 60 anos e 11 de crianças até nove anos.

O grave estado em que os indígenas se encontram fez com que o governo Lula decretasse estado de emergência de saúde pública no território yanomami.


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