18/05/2024 - Edição 540

Especial

EM NOME DE DEUS?

O sequestro do cristianismo evangélico pela extrema direita

Publicado em 17/03/2023 10:07 - Aguirre Talento, Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Observatório Evangélico, Lucas Nascimento, Manuela Löwenthal, Rafael Rodrigues da Costa – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Evangélicos bolsonaristas que viajaram a Brasília para participar do ato antidemocrático do dia 8 de janeiro relataram, em depoimentos prestados à Polícia Federal, que igrejas de diversos estados do país bancaram ônibus e organizaram caravanas para o evento.

O UOL obteve e analisou, durante a última semana, cerca de 1.000 depoimentos sigilosos prestados à Polícia Federal por extremistas presos no acampamento antidemocrático no quartel-general do Exército, logo após o 8 de janeiro.

– A documentação inédita está sendo analisada pela PF para o aprofundamento das investigações sobre os financiadores e organizadores dos atos antidemocráticos

– Como havia uma grande quantidade de pessoas a serem ouvidas, os termos de depoimento são curtos e pouco se aprofundam sobre os temas, mas são usados como ponto de partida para as apurações

– Relator das investigações, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes foi quem determinou as prisões dos participantes do acampamento no quartel-general do Exército, logo após os atos do 8 de janeiro. Os depoimentos também estão em seu gabinete

A informação sobre o financiamento por igrejas evangélicas foi citada aos investigadores por pelo menos cinco pessoas, que foram presas pela PF no acampamento montado no quartel-general do Exército. A coluna teve acesso com exclusividade a depoimentos prestados à PF pelos alvos presos. Outros relataram também a participação de empresários no financiamento e até mesmo o recebimento de doações para que viajassem a Brasília para participar do ato antidemocrático.

Os depoentes, entretanto, evitaram fornecer detalhes sobre esses financiadores.

Moradora de Sinop (MT), Sirlei Siqueira afirmou à PF que viajou em uma “excursão da Igreja Presbiteriana Renovada”, mas não deu detalhes sobre o financiador. Também morador de Sinop, Jamil Vanderlino afirmou ter viajado em um “ônibus financiado por igreja evangélica”.

Questionado sobre os detalhes, ele se recusou a responder às perguntas da Polícia Federal. “Fará uso de seu direito de permanecer calado”, registra o documento. Procurada, a Igreja Presbiteriana Renovada de Sinop disse que os pastores não participaram do ato do dia 8 de janeiro e afirmou desconhecer quem teria organizado a excursão. “A igreja Presbiteriana Renovada é uma igreja séria que não fez ou faz nenhum tipo de investimento que não seja baseado em sua conduta missionária e eclesiástica, portanto não existe a possibilidade de financiamento em qualquer movimento fora de suas atribuições. Não temos conhecimento de quem são os dois citados, nem tampouco qualquer envolvimento com financiamento de excursão para Brasília. Nem a igreja e nem o corpo de pastores têm qualquer envolvimento com os atos citados ao 8 de janeiro”, afirmou.

Em um dos depoimentos, um aposentado de Uberlândia (MG) relatou ter recebido a oferta de um pastor quando participava de manifestação em um batalhão do Exército naquela cidade, mas afirmou não se lembrar de quem era o financiador nem deu detalhes sobre a denominação religiosa à qual pertenceria.

“Informa que teria conversado com um pastor, que não se recorda o nome, que teria conhecido próximo ao Quartel em Uberlândia, e ele informou que o interrogado poderia ir no ônibus de graça para Brasília”, disse Edinilson Felizardo da Silva, em trecho do depoimento. Questionado, ele respondeu que o pastor não lhe ofereceu nenhuma outra vantagem financeira para a viagem, além da passagem.

Um outro alvo preso pela PF, morador de Maceió, Ademir Almeida da Silva, disse que tinha remuneração mensal de R$ 400 e citou o nome de um pastor da Igreja Batista, Adiel Brandão de Almeida, como um dos financiadores de sua viagem. Procurado, o pastor disse que viajou com Ademir para Brasília e que “cooperou” durante a viagem porque ele estava com pouco dinheiro, mas que não houve relação da igreja com essas despesas.

“Ao longo da viagem, a gente foi cooperando com ele. Ele pagou algumas coisas, ele estava com pouco dinheiro, alguns lanches nós rateamos, outros lanches não. Além disso, nós não tivemos participação em nada disso aí”, afirmou à coluna. “Isso é financiar a ida de alguém? Não é. Financiar é quando você está dizendo que todas as despesas, transporte, comida, almoço e janta eram por minha conta, aí seria financiar. E mesmo que alguém fosse financiar, não é da conta de ninguém não”, disse Almeida.

Já uma moradora de Xinguara (PA) relatou ser frequentadora da Assembleia de Deus e que integrantes da denominação religiosa participaram da caravana na qual ela viajou a Brasília, mas não deu detalhes sobre o responsável pelo financiamento.

A PF abriu inquérito, logo após o 8 de janeiro, para identificar os financiadores das caravanas com destino a Brasília. Apesar de não apresentarem detalhes nos depoimentos, os alvos tiveram seus celulares apreendidos, o que vai permitir aprofundar as informações citadas por eles. A investigação também analisa quebras de sigilo bancário e relatórios de movimentação financeira dos contratantes dos ônibus, para saber se há financiadores ocultos que não aparecem formalmente nos documentos.

O ato antidemocrático resultou na depredação das sedes dos Três Poderes e na prisão de mais de 1.800 pessoas, que participaram do quebra-quebra ou que estavam acampadas no quartel-general do Exército, em Brasília. Após os depoimentos e audiências de custódia, cerca de 1.400 permaneceram presos. Nas últimas semanas, o ministro Alexandre de Moraes proferiu decisões autorizando a soltura de aproximadamente 1.000 presos. Cerca de 400 permanecem detidos até o momento.

Igrejas que montaram caravanas golpistas ficam em polos do agronegócio

Ao organizar caravanas para evangélicos bolsonaristas irem a Brasília vandalizar e roubar o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF, lideranças religiosas acabaram reescrevendo o Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículo 21, que trata da relação entre o cristianismo e a autoridade secular. Saiu o “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” trocado por “Dai a Bolsonaro o que é de Lula, e a democracia que vá para o inferno”.

Muita liderança religiosa picareta ganhou horrores com suas empresas, opa, igrejas, ao longo do governo Bolsonaro. Seja com imunidade tributária, seja com favores, seja até abrindo o Ministério da Educação para cobrar propina em barras de ouro, abundam os casos de promiscuidade entre mercadores da fé e o ex-presidente. O que me interessa aqui, contudo, é entender o contexto dessas caravanas.

A reportagem de Aguirre Talento no UOL traz como exemplo igrejas e pastores de Sinop (MT), Uberlândia (MG), Xinguara (PA) e Maceió (AL) como citados dos depoimentos. Nos quatro municípios, Bolsonaro teve mais votos que Lula. Com exceção da capital alagoana (a única do Nordeste a dar maioria ao, hoje, ex-presidente), os outros são polos importantes da expansão do agronegócio. O que não é coincidência.

Os municípios fazem parte do que o pesquisador Mathias Alencastro chamou de “Mega-Centro-Oeste”, região que vai do interior de São Paulo até a fronteira agrícola amazônica. Ela cresceu mais que o restante do país, sendo cantada pelo sertanejo e tendo a fé organizada por evangélicos, principalmente neopentecostais.

É um espaço mais conservador em costumes e comportamentos, que Bolsonaro soube cultivar diligentemente com ações simbólicas e apoio econômico ao longo do seu mandato. Não à toa, as diferentes camadas desse contexto agiram em sua defesa na campanha eleitoral do ano passado. E, após a sua derrota, muitos de lá cerraram fileiras, trancando rodovias federais e acampando na porta de instalações militares. No limite, encheram ônibus para tentar um golpe de Estado.

A hiperpolitização dos púlpitos, que se intensificou entre abril e maio deste ano, e transformou algumas igrejas em comitês eleitorais, teve grande força nesses locais. Quem discordava desse alinhamento foi ameaçado, expulso ou pior.

Em Goiânia, após um pastor associar o diabo ao PT no culto, um fiel reclamou do envolvimento da igreja nesse debate e foi chamado de demônio. Segundo o fiel, sua família parou de ser cumprimentada na igreja e começou a ser ameaçada. Até que, no dia 31 de agosto, após uma discussão dentro do templo, seu irmão foi baleado com um tiro que atravessou as duas pernas por um policial. O culto continuou mesmo assim.

Mas isso também trouxe efeitos colaterais. Após lideranças de igrejas que se aliaram ao presidente passarem a substituir tempo de pregação da palavra de Deus pela defesa veemente de que Bolsonaro representa Jeová e Lula, Lúcifer, muitos eleitores evangélicos se empapuçaram com a hiperpolitização. E o número de reclamações subiu frente a pastores que ignoravam exatamente o “Dai a César o que é de César”.

Lula reagiu tentando mostrar que se importava com eles, uma antiga reclamação do segmento, com a esperança de que isso estancasse sangria de votos. Ironicamente, Jair orava e abraçava a Bíblia, mas não tinha atitudes defendidas por cristãos. Por exemplo, disse que “pintou um clima” entre ele e meninas refugiadas venezuelanas de 14 anos. E tentou surrupiar R$ 16,5 milhões em joias que pertenciam ao Estado brasileiro.

Apesar da insistência dos mercadores da fé e de seus representantes políticos em verem luz nas trevas do 8 de janeiro, a maioria das igrejas vem despolitizando os púlpitos após a mudança de governo, com lideranças aceitando Lula como presidente.

E a participação de denominações e lideranças evangélicas nos atos golpistas precisam ser analisada com mais profundidade. E os responsáveis devem ser punidos pela força da lei, com tempo de xilindró.

Mas esse salto entre a crítica ao Estado laico e o abraço a um Estado golpista, principalmente na região do Mega-Centro-Oeste precisa ser compreendido como um fenômeno que vai além da religião. Há um outro Brasil ali, que se não for entendido pela atual administração, irá mais cedo ou mais tarde devorá-la.

Golpismo de igrejas potencializa fins lucrativos de pastores bolsonaristas

A revelação de que parte da caravana golpista que promoveu o quebra-quebra de 8 de janeiro viajou a Brasília em ônibus fretados por igrejas não chega a ser surpreendente. É apenas deprimente. Confirma-se a percepção de que algumas igrejas evangélicas, dotadas de imunidade tributária, enxergaram no golpismo de Bolsonaro um meio para conservar os fins lucrativos dos seus pastores. Bolsonaro se diz portador de uma missão divina que ainda não acabou. Quem tem respeito por Deus não pode considerá-lo responsável por tamanho absurdo.

Um acerto dificilmente pode ser melhorado. Mas os erros sempre podem ser piorados. Os missionários do caos continuam ativos. O deputado-pastor Eli Borges, novo líder da bancada da Bíblia no Congresso, disse dias atrás numa entrevista que não enxergou “nada de errado” no “clamor” bolsonarista por uma intervenção dos militares contra a eleição de Lula. Afinal, disse ele, “está muito claro” na Constituição que “as Forças Armadas exercem um papel de atender ao clamor popular”. No Brasil, a aberração dá voto. Virou parte da democracia.

Bolsonaro firmou com um pedaço do mundo evangélico uma parceria político-financeira. Em troca de apoio político, o capitão ofereceu proteção monetária. Imunes de tributos, as igrejas deveriam operar como organizações sem fins lucrativos. Mas a Receita Federal farejou em suas auditorias esquisitices muito parecidas com a distribuição de lucros entre dirigentes e líderes religiosos. E decidiu cobrar tributos como Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido e contribuição previdenciária. Os devedores deram de ombros. Acumulou-se um passivo.

Sob Bolsonaro, aprovou-se no Congresso projeto que passou uma borracha sobre a dívida das igrejas. Estalando de pureza moral, o capitão vetou a proposta. Depois, mudou de opinião. E determinou aos operadores políticos do Planalto que articulassem a derrubado do seu próprio veto no Legislativo.

Chama-se David Soares o deputado que colocou a anistia para andar. Ele é filho do missionário R.R. Soares, mandachuva da Igreja Internacional da Graça de Deus. A casa religiosa dos Soares acumulava no Fisco um espeto de R$ 37,8 milhões. Uma gota no oceano de dívidas que o Fisco gostaria de ter cobrado. Consumada a sacrossanta aliança entre Bolsonaro e a bancada da Bíblia, a Receita perdoou em 2021 a bagatela de R$ 1,4 bilhão em dívidas dos templos.

Os depoimentos manuseados pelo repórter Aguirre Talento, do UOL, foram prestados por evangélicos encrencados no 8 de janeiro, no calor das prisões em flagrante. Esses fiéis deveriam ser ouvidos pelos irmãos de fé em cultos dominicais. Com sorte, alguns podem ter retirado lições do suplício.

Deve doer em muitos evangélicos encrencados a percepção de que fizeram papel de bobos, num enredo confuso, em que o protagonista é um mito destrambelhado, os coadjuvantes são pastores de resultados e o epílogo é a cadeia. Se Deus não existisse, precisaria ser inventado. Já privou o fariseu da reeleição. Só não mandou uma segunda inundação porque o primeiro dilúvio foi inútil.

Pesquisa mostra radicalismo evangélico e perigo à democracia

Dois terços dos evangélicos afirmam que Lula não ganhou a eleição do ano passado e concordam que uma intervenção militar deveria invalidar o resultado da eleição presidencial. É o que revela a última pesquisa Atlas/Intel, realizada com 2.200 pessoas entre os dias 8 e 9 de janeiro de 2023.

Os números retratam um abismo de percepções entre os evangélicos e a opinião pública em geral. Enquanto a maior parte dos entrevistados reconhece que Lula venceu a eleição presidencial de 2022 – 56,4% ao todo – entre os evangélicos, apenas 28,1% concordam com tal afirmação. Em contrapartida, 67,9% dos evangélicos não acreditam que Lula obteve mais votos que o ex-presidente Jair Bolsonaro, número 28% superior à média geral dos entrevistados.

Talvez, por esse motivo, os evangélicos sejam o grupo religioso mais simpático à proposta de intervenção militar para invalidar o resultado da eleição presidencial. Nesse sentido, seis em cada dez evangélicos (64,3%) afirmam ser favoráveis à intervenção militar, enquanto menos de um terço deles (29,5%) se dizem contra. No geral, porém, 54,1% dos entrevistados afirmam ser contrários a uma intervenção militar e apenas 36,8% a favor.

Coincidência ou não, os evangélicos são também os religiosos com maior tolerância à ideia de uma ditadura militar no país. Embora 71% dos evangélicos sejam contrários à proposta, 15,5% deles se mostram favoráveis. Na comparação entre religiões, o número dos evangélicos que aprovam a instauração de um regime autoritário no Brasil é 5% maior do registrado entre católicos e quase 10% a mais do encontrado entre ateus e agnósticos.

Não por acaso, os evangélicos são o grupo que mais aprovou a ação de manifestantes bolsonaristas que ocuparam o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o STF no último dia 8 de Janeiro. Em números proporcionais: 31,2% dos evangélicos aprovaram as invasões, cifra 17% maior que a encontrada entre católicos e quase duas vezes acima da média geral dos entrevistados (18,4%). A maior parte dos entrevistados (75,8%), contudo, desaprova os atos.

Os dados em tela mostram a dimensão e profundidade do envolvimento dos evangélicos com a extrema direita. Revelam ainda o quanto a narrativa bolsonarista possui aderência nesses crentes, sobretudo no descrédito às instituições e ao sistema democrático. E por mais que os evangélicos sejam de fato plurais, diversos e não raras vezes conflituosos, é inegável a coesão e senso de unidade que o movimento evangélico ganhou após a emergência do bolsonarismo.

O grande desafio de nosso momento histórico, portanto, consiste em encontrar caminhos para que valores democráticos tenham espaço em um campo tão influenciado pelo extremismo político e pelo fundamentalismo religioso. A desbolsonarização da sociedade brasileira precisará passar pelos evangélicos.

O sequestro do cristianismo pela extrema direita no mundo

Nos últimos anos, diversos países ocidentais passaram a se organizar em grupos que se sentiam lesionados por avanços de pautas sociais ligadas às minorias, traduzidas na agenda progressista rotulada como tirânica por esses grupos compostos por cristãos, políticos e parte da classe média. Os avanços em torno de igualdade social, de direitos civis e de ações afirmativas impostas por governos comprometidos com a sociedade e a justiça social foram considerados uma verdadeira ameaça aos grupos conservadores, como demonstra a professora de Ciência Política da Universidade da Califórnia Wendy Brown, em seu livro Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente.

Diversas manifestações que expressavam a insatisfação com avanços democráticos passaram a ocorrer na Europa e no mundo. Um exemplo disso foram as expressivas manifestações contrárias ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, realizadas em Paris e em outras cidades francesas durante os anos de 2012 e 2013, as quais surpreenderam o mundo por terem ocorrido em um país que por muito tempo foi considerado um exemplo de secularismo e liberdade sexual.

Ainda em 2012, várias manifestações contra a união homoafetiva reuniu diversos grupos conservadores em outros países europeus como Itália, Croácia, Espanha e Eslovênia. Em comum, elas reinvidicaram publicamente o tradicionalismo patriarcal e a impossibilidade de novas configurações familiares.

A defesa dos valores tradicionais se tornou pauta central nos últimos anos em campanhas políticas do Estado Russo, tendo sido projetada pelo Kremlin com o apoio da Igreja Ortodoxa. Há alguns anos na Polônia, o partido governista atacou a homossexualidade e na Hungria, o atual Primeiro- Ministro Viktor Orbán, posiciona-se cada vez mais contrário ao avanço de pautas que envolvem os direitos de minorias sexuais, como afirma o sociólogo David Paternotte em entrevista publicada no portal espanhol El Diário.

Foi com grande surpresa que o mundo assistiu ao avanço de pautas de extrema direita e à eclosão de manifestações conservadoras bem sucedidas na Europa, um continente que até então era considerado exemplo em termos de avanço na igualdade de gênero, direitos sexuais e humanos. Este cenário forçou a reação de movimentos sociais e grupos de esquerda.

Diversos estudiosos do tema relatam uma apropriação do cristianismo por grupos de extrema direita na Europa. A identidade cristã é acionada para reforçar um pertencimento cultural, criando a ideia de pureza nacional e ideologia política.

Dessa forma, uma série de líderes populistas sem nenhuma profundidade teológica se utilizam do cristianismo para criar uma “diferenciação” entre aqueles que fazem parte do grupo e aqueles que estão fora do grupo. Essa diferenciação alimenta um sentimento de pertencimento muito potente e eficaz para a mobilização. É construída a ideia de que há inimigos a serem combatidos, pessoas que não compartilham de determinada visão de mundo, projeto de civilização e progresso. E a partir de um poderoso discurso bélico é mobilizada a ideia de que essas pessoas devem ser combatidas. Na Europa, essa “barreira invisível” entre grupos pode ser observada através da marginalização e exclusão dos não cristãos, como por exemplo os mulçumanos.

Um movimento muito semelhante ocorre no Brasil atual. Grupos de extremistas reivindicam a legitimidade das tradições cristãs como parte da cultura brasileira para retirar a legitimidade das demandas progressistas relacionadas aos direitos das mulheres, à questão de gênero e aos direitos reprodutivos. O inimigo atacado são os grupos à esquerda, considerados subversivos e uma ameaça à família e à ordem.

O ex-presidente Jair Bolsonaro é um bom exemplo de apropriação do cristianismo por lideranças populistas. Bolsonaro assumiu desde o início que seu governo seria alinhado com a Frente Parlamentar Evangélica, aderindo um discurso que buscava conquistar cristãos. Sua busca por uma roupagem cristã foi reforçada ao longo do governo pela alegação de que o Estado é laico, mas a sociedade não. Em diversos discursos públicos, o ex-presidente citou versículos bíblicos e destacou que em seu governo seria “terrivelmente cristão”. Bolsonaro reforçou um discurso bélico que estimulou uma visão do adversário político como inimigo a ser aniquilado, impossibilitando a convivência das diferenças e a possibilidade de discordância, em um posicionamento tendencioso ao autoritarismo.

Embora Bolsonaro se autodenominasse a voz do verdadeiro cristão brasileiro, pouco recorria à teologia. Assim como ocorre em outros países, a extrema direita se afirma cristã mas age de forma contrária a valores centrais do cristianismo, como a igualdade, a piedade, a compaixão e o respeito, em um movimento que busca o sequestro populista da religião.

Mesmo sem Bolsonaro no poder, grupos de extrema direita continuam se utilizando da identidade cristã para legitimar suas reivindicações e, no caso brasileiro, atos terroristas. Bolsonaro serviu como o motivo para esses grupos emergirem no Brasil, porém, o que tudo indica é que a partir de agora eles não irão mais precisar de Bolsonaro para permanecerem reivindicando sua agenda conservadora forjada em uma falsa identidade cristã.

Isso mostra que esse movimento não é uma tendência isolada, mas sim, uma estratégia global. Porém, esse fenômeno se manifesta de forma diferente em cada país, de acordo com a história, contexto social, econômico, político e cultural de cada local.

Quais são os evangélicos que compartilham fake news?

Infelizmente, os evangélicos são o grupo religioso que mais compartilha fake news. Se você é evangélico provavelmente já viu algum irmão ou irmã compartilhando alguma informação falsa em um grupo de Whatsapp ou em rede social. Claro, o problema das fake news ou da poluição informacional ou, como designa alguns especialistas, da zumbificação da informação não é exclusivo dos evangélicos. Mas não ser exclusivo não torna o fato menos grave, já que é grave o suficiente ser o grupo religioso que mais compartilha desinformação, ainda mais se considerarmos que a comunhão entre irmãos em Cristo, em vez de ser o lugar da partilha da verdade e do amor, tornou-se um solo fértil para a desinformação, a mentira e a promoção do ódio entre as pessoas.

Mas isso significa que aquele irmão que compartilha informação falsa é desonesto ou mesmo tem consciência de que está compartilhando uma informação falsa? Não. Na verdade, isso aponta para o fato de que temos um longo caminho de educação para ajudar os evangélicos a liderem melhor com suas crenças no mundo da informação digital. E se quisermos contribuir para resgatar nossos irmãos desse lamaçal de informações falsas, precisamos identificar e distinguir quem é quem. Quais os evangélicos que compartilham fake news?

Para fazermos isso de modo adequado, é importante saber que o termo fake news, embora seja bastante popular, se tornou muito impreciso para definir a complexidade do problema, porquanto os especialistas e a Unesco propõem três noções: informação incorreta, má informação e desinformação. A partir disso eu proponho pensarmos a existência de três tipos de desinformadores, os quais podemos identificar em qualquer lugar, mas quero focar nos evangélicos.

O primeiro tipo de desinformador é aquele sujeito que manipula consciente e ativamente a informação falsa com a intenção de prejudicar alguém ou algum grupo de pessoas. Ele sabe que o que está divulgando é uma mentira, inclusive esse sujeito pode ter sido o criador da informação incorreta. Nas últimas eleições, vimos esse tipo de ação vindo dos próprios candidatos, e muitos deles cristãos. Pois bem, esse é o que estou chamando de desinformador ativo, aquele que sabe ou cria uma informação incorreta.

O segundo tipo de desinformador é aquele sujeito que compartilha informações que não são necessariamente falsas, mas que são exageradas e tiradas de contexto com o objetivo de enganar e causar danos a alguém ou a um grupo de pessoas. Isso é chamado de má informação e ao sujeito que a manipula, podemos chamá-lo de desinformador maldoso. Ou seja, pega-se uma informação privada de alguém e a torna pública com a finalidade de prejudicar ou atacar esse alguém publicamente.

O terceiro tipo de desinformador é o mais comum e do qual infelizmente a igreja evangélica está cheia. Ele é o sujeito que dissemina a informação falsa, mas acredita estar divulgando uma informação verdadeira. A pessoa não tem a intenção de causar danos e acredita, inclusive, estar ajudado os demais, pois crê que aquilo que compartilha é verdadeiro. Esse tipo de pessoa podemos chamá-la de desinformador passivo, ele contribui com o caos informacional, mas normalmente é levado a isso por falta de conhecimento ou letramento crítico.

Contudo, entre os evangélicos, parece haver algo mais que deixa nossos irmãos vulneráveis ao caos informacional, transformando-os em desinformadores. Penso que para além da falta de letramento digital crítico, a vulnerabilidade em se compartilhar notícias falsas está relacionada, sobretudo, às crenças e às relações de confiança que as pessoas mantêm em sua comunidade de fé. Diante disso, para ajudarmos nossos irmãos desinformadores passivos a saírem desse lamaçal de caos informacional, temos um longo caminho educativo pela frente, e a liderança evangélica é fundamental nessa empreitada.


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