18/05/2024 - Edição 540

Especial

DITADURA NUNCA MAIS

Aos 59 anos do golpe, Forças Armadas vivem desgaste de imagem após associação com Bolsonaro

Publicado em 31/03/2023 10:19 - Igor Carvalho (BDF), Victor Gaspodini (DCM), Nelson Lin e Daniella Almeida (Agência Brasil), Layane Henrique (Politize) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Há 58 anos, na madrugada de 31 de março de 1964, as tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho partiram de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, onde tomaram o forte de Copacabana, no dia 1º de abril, e destituíram o governo constitucional de João Goulart.

Na mesma capital fluminense, Jango, 18 dias antes, em comício para 200 mil pessoas havia anunciado as chamadas reformas de base, que contemplava a reforma agrária, a desapropriação de terras e a nacionalização das refinarias de petróleo.

Com o mesmo discurso propalado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), de combater o “comunismo”, os militares se alinharam a parte do empresariado, ruralistas, cristãos conservadores – então uma ala da Igreja Católica – e governadores de estados importantes, como São Paulo e Rio, para levar o Brasil a um amanhecer sombrio pelos próximos 21 anos.

A apologia da ditadura é uma constância monótona na carreira política de Bolsonaro e seus filhos. As frequentes declarações do ex-presidente e seus seguidores (civis e militares), de que não houve ditadura no Brasil seguem um padrão conhecido. A negação sempre foi arma política usada por qualquer campo, e muito útil para esconder os crimes de períodos autoritários. Lembrar as datas, por sua vez, é parte do conjunto de vacinas contra a repetição dos mesmos erros. Tentações autoritárias sempre espreitaram a democracia.

Em um artigo, a escritora Heloisa Starling busca Hannah Arendt e o livro ‘As origens do totalitarismo’ para lembrar como a negação da verdade é arma conhecida. “A mentira, diz Arendt, consiste em negar, reescrever e alterar fatos, até mesmo diante dos próprios olhos daqueles que testemunharam esses mesmos fatos”, escreveu Heloisa. Então não há inocência nas declarações sequenciais dadas pelo presidente e seu grupo.

O que houve no Brasil foi uma ditadura. Os dados e os fatos também são abundantes. Foram 950 peças de teatro censuradas, quinhentos filmes, quinhentas letras de música. Houve mais de quatrocentos mortos, 20 mil torturados, 7 mil presos, centenas de exilados. O Congresso foi fechado duas vezes após o AI-5.

Para a direita brasileira seria mais inteligente governar defendendo valores democráticos e implantando políticas públicas nas quais acredita. Mas a direita que chegou ao poder com o bolsonarismo preferiu defender o indefensável daquele regime e, assim, se misturar ao pior dele.

O Brasil nunca exigiu que as Forças Armadas reconhecessem os crimes cometidos durante a ditadura. Ao contrário dos países vizinhos, ninguém jamais foi punido por torturas, mortes, ocultação de cadáveres. Os militares deixaram as contas públicas em absoluta desordem, o país pendurado no FMI e com a inflação galopante.

As Forças Armadas passaram as últimas décadas ressentidas com a correta interpretação dos fatos políticos ocorridos durante a ditadura. Em seus quartéis e escolas, em conversas internas e em algumas declarações públicas, manifestam a convicção de que não tomaram o poder, foram chamadas em momento de risco. Ficaram ofendidas com a Comissão da Verdade, mas nunca condenaram a tortura nem admitiram que pessoas morreram em dependências militares.

Dentro dos quartéis, alguns evoluíram. Admitem que aquele foi um período triste da História do Brasil que feriu brasileiros. A instituição, contudo, jamais admitiu qualquer erro. Preferiu cristalizar uma versão falsa e impedir a necessária e saudável autocrítica.

A negação da realidade é o caminho mais curto para a repetição de tragédias. O nome da tomada do poder pelas Forças Armadas é golpe. Ponto. Durante 21 anos o governo militar foi uma ditadura. Ponto. Não há uma conversa adulta sobre aquele tempo sem essas premissas.

Crise interna

No 59º aniversário do golpe militar que asfixiou as liberdades por 21 anos no Brasil, as Forças Armadas vivem uma crise de imagem. De acordo com pesquisas recentes, elas têm perdido o respeito da população após assumirem, no governo Bolsonaro, um protagonismo inédito no governo federal desde a redemocratização.

Uma pesquisa da AtlasIntel divulgada no dia 1º de fevereiro deste ano mostrou que 41% da população confiam nos militares, 39% não confiam e 20% não tinham opinião sobre as Forças Armadas. No mesmo levantamento, o Congresso Nacional e o Superior Tribunal Federal (STF) tiveram percentuais maiores que os militares, ambos com 42% de confiança.

Porém, os brasileiros que não confiam no Congresso Nacional e no STF, de acordo com a pesquisa, somam 57% e 47%, respectivamente, números maiores que o índice de desconfiança nas Forças Armadas.

Com 360 mil servidores, as Forças Armadas têm previsão orçamentária de R$ 124,4 bilhões em 2023. Deste valor, 78,2% serão gastos com pessoal. Analistas acreditam que elas terão muito menos influência no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que voltou a nomear um civil para o Ministério da Defesa, José Mucio Monteiro Filho, depois de quatro anos de militares à frente da pasta.

O antropólogo Piero Leirner, que pesquisa o meio militar há mais de três décadas, lembrou que o Congresso Nacional e o STF foram os “objetos da turba golpista” e analisou os dados do levantamento. “A ‘desconfiança’ recaiu sobre todo mundo. Isso para mim é um sinal interessante, pois pode ser uma evidência de que aquilo que vem ocorrendo nos últimos tempos surtiu efeito: uma espécie de desestabilização da percepção social sobre a política, as instituições e as tais ‘regras do jogo’”.

Na pesquisa “A cara da democracia”, que é realizada anualmente, é possível ver o recuo na popularidade das Forças Armadas durante o governo Bolsonaro. Em 2018, durante a campanha, 31% dos brasileiros diziam confiar muito nos militares. Esse índice caiu para 29% em 2019; 26% em 2021; e 25% em 2022 (em 2020 não houve levantamento).

Em 2008, uma pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) revelava que 75,5% dos brasileiros confiavam nas Forças Armadas. Em 1995, medição qualitativa feita pelo Instituto Vox Populi deu nota 3,2, de um máximo de 5, para os militares.

O sociólogo Marcos Coimbra, fundador e diretor do Vox Populi, se recorda do levantamento feito pelo instituto em 1995. “Esse número certamente diminuiu com o passar do tempo, era uma nota alta. Se fôssemos repetir exatamente o mesmo modo de perguntar, é muito provável que essa queda fosse flagrada hoje. Recordo que nas perguntas notamos que as Forças Armadas amedrontavam as pessoas, não havia sentimentos como carinho ou qualquer afeto por essa instituição. É uma instituição cara, cheia de privilégios e não fez escolhas políticas que os aproximassem da população.”

Para Coimbra, há uma interpretação da população de que “os militares são ociosos” e a queda histórica é justificada pelas “escolhas que a Forças Armadas fizeram, de se associar a um personagem terrível, que é reprovado pela maior parte do país. Esse vínculo foi se estreitando ao longo do tempo, de ambos os lados. Esse cidadão, o Bolsonaro, cooperou para o desgaste das Forças Armadas.”

“O prestígio das Forças Armadas parece ter sofrido algumas ranhuras, em decorrência do envolvimento intenso da instituição no governo Bolsonaro”, explica Ana Penido, pesquisadora do Grupo de Estudo em Defesa e Segurança (Gedes-Unesp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, que propõe uma reflexão sobre a imagem da instituição.

“Se você vai a um médico do SUS e acha que o atendimento dele foi ruim, pode avaliar se foi bom ou ruim. Se vai a um posto da assistência social ou passa por uma estrada cheia de buracos, pode avaliar a qualidade do serviço recebido. No caso das Forças Armadas, o prestígio que elas têm não é relacionado com a sua finalidade, a política de Defesa, a capacidade de proteger ou defender o Brasil diante de conflitos internacionais”, explica Penido.

A pesquisadora elencou, então, os motivos que podem explicar os índices de aprovação que os militares já alcançaram. “Por exemplo, quando elas levam água para comunidades isoladas, quando vacinam pessoas diante de uma pandemia ou fazem obras viárias diante de um desastre.”

Para Piero Leirner, é preciso qualificar pesquisas e análises para associar a queda da popularidade das Forças Armadas a Bolsonaro. “Na minha opinião esta queda deveu-se muito mais à exposição negativa que os militares começaram a ter na imprensa – primeiro, aos poucos, com casos de superfaturamentos, doce de leite e Viagra e depois especialmente com a associação direta ao 8 de janeiro. Eles ficaram operando tudo isso ‘dentro da margem de erro’. Isto é, ao mesmo tempo participando do Governo e dos arroubos de Bolsonaro, mas negando o tempo todo.”

Uma outra perspectiva sobre a imagem dos militares seria possível se os institutos de pesquisa realizassem seus levantamentos em outras áreas, defende Penido. “Eu desconheço pesquisas sólidas com grupamentos em que as Forças Armadas tenham operado no território, como as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nas periferias. O mesmo vale para a atuação deles nas fronteiras. Eu desconheço também pesquisas de opinião sobre a confiabilidade das Forças Armadas feitas junto às comunidades indígenas.”

Comunicação positiva

Para quem julga que os crimes cometidos por militares durante a ditadura no país deveriam servir para que as Forças Armadas tivessem popularidade próxima de zero, Piero Leirner não traz boas notícias.

“Acho que a maior parte da população não está nem aí para isso. Perdeu-se o timing, essa ficou sendo uma questão minoritária”, explica o antropólogo. O distanciamento dos crimes cometidos durante a ditadura é um dos méritos da comunicação das Forças Armadas, segundo Ana Penido.

“A guerra pela opinião pública é talvez mais importante do que a física. As Forças Armadas passaram a especializar setores inteiros em áreas como guerra psicológica, que hoje alguns analistas chamam de ‘guerra híbrida’, que usa diversas táticas para desestabilizar governos nacionais”, conta a pesquisadora.

“Durante a tragédia em Brasília no dia 8 de janeiro, os militares passaram pano de forma geral para a destruição que estava acontecendo. Então teve a crise Yanomami e eles rapidamente saíram e começaram a levar ajuda em aviões. Há muitas imagens dos militares ajudando a salvar os indígenas, os mesmos militares que eram responsáveis pela Amazônia, como o atual senador Hamilton Mourão, que viram o garimpo entrar e ficar naquela região”, encerrou.

Crimes

Há quem acredite que a ditadura só tenha castigado “terroristas” e criminosos. Entretanto, o governo militar cometeu crimes contra cidadãos envolvidos, ou não, em atividades consideradas subversivas, ou seja, atividades que demonstrassem desacordo com o regime político em vigor.

A Comissão da Verdade (CNV), grupo responsável por apurar violações contra os direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, concluiu, em 2014, que cerca de 400 pessoas morreram ou desapareceram durante as duas décadas em que perdurou a ditadura militar. Além disso, a Comissão conta que pelo menos 8.350 indígenas foram assassinados nesse período.

A Comissão também registra, em relatórios, a comprovação de práticas de detenções ilegais e arbitrárias, além de ações de tortura, execuções, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres por agentes do Estado.

Além de prisões, o regime militar assassinou e torturou adversários políticos, porém cidadãos que não tiveram envolvimento comprovado em grupos de oposição ao regime, também acabaram sendo vítimas da violência, inclusive crianças.

Houve punição para os crimes da ditadura?

Um dos grandes entraves para as condenações dos autores dos crimes da ditadura é a Lei da Anistia, de 1979, que determinou a não punição de ativistas e agentes do Estado pelas práticas de crimes durante a ditadura militar.

A criação desta lei foi o que abriu caminhos para a redemocratização do país e esteve dentro de um conjunto de medidas adotadas no contexto de abertura política do regime militar. Essa foi a estratégia utilizada por Geisel e continuada por Figueiredo, ambos presidentes do país durante a ditadura, pois somente anistiando os militares que cometeram crimes, o governo iniciaria o processo de transição democrática.

Apesar disso, o Ministério Público Federal (MPF) ingressou dezenas de ações criminais solicitando a condenação de agentes que cometeram crimes durante o regime, porém, ninguém foi punido.

Fora do país, o Estado brasileiro já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelos crimes contra os guerrilheiros do Araguaia, do Pará, em 2010, e, também, pela ausência de investigação do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 2018.

Com estas punições, o CIDH determinou que as Forças Armadas realizassem um ato de desculpas oficiais e declarasse o reconhecimento do erro nos casos, porém isso nunca ocorreu.

De todo modo, há uma lista extensa de acusados por crimes durante a ditadura, contudo, há um nome que se repete nas denúncias de repressão contra opositores, como é o caso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.

O coronel Ustra foi denunciado em, pelo menos, sete ações por diversos crimes durante a ditadura, todavia, o militar morreu sem receber punição. Em uma das ações, há o registro de uma investigação de sequestro e tortura de Crimeia Alice de Almeida, grávida de sete meses na época, teria sido torturada e violentada durante 25 dias. A ação do MPF diz que Crimeia foi submetida a sessões de espancamentos, choque nos pés e nas mãos, além de palmatórias e ameaças de ter seu bebê retirado de sua posse.

O último país a condenar os crimes da ditadura

A primeira condenação pelos crimes da ditadura só ocorreu 50 anos depois.

A Lei nº 6.683/79, Lei da Anistia, promulgada pelo governo militar, afetou a punição dos autores dos crimes durante todos esses anos. A Justiça de transição e a Comissão Nacional da Verdade surgiram como ferramentas de sistematização de informações, até então, ocultadas pelo regime militar.

Dessa forma, através destes órgãos, foi adotado um conjunto de ações, dispositivos e registros importantes para a divulgação de casos até então desconhecidos e na busca por justiça pelas vítimas das violências do regime.

A primeira condenação ocorreu em 2021, quando o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto foi condenado a 2 anos e 11 meses de prisão pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte, caso documentado pela Comissão Nacional da Verdade.

Mas por que o delegado foi condenado, mas outros responsáveis por crimes não sofreram punições? O juiz Silvio César Arouck Gemaque interpretou este caso como crime continuado, portanto, o delegado não estaria protegido pela Lei de Anistia.

O Brasil segue sendo o país que menos julgou e puniu crimes da ditadura militar na América Latina.

Como outros países lidaram com crimes da ditadura?

Cada país latinoamericano adotou maneiras diferentes para lidar com os crimes cometidos pelo governo militar. No entanto, a Comissão Nacional da Verdade do Brasil foi criada tardiamente, somente em 2012, em comparação com os demais países da região, que já haviam adotado o processo nas décadas de 1980 e 1990.

A Argentina é considerada um modelo a ser seguido no que diz respeito à punição destes crimes. O país foi um dos poucos a revogar a Lei de Anistia que os militares aprovaram quando ainda estavam no poder. Além disso, o governo argentino condenou mais de 200 militares e civis envolvidos em prisões, torturas, desaparecimentos e mortes.

No país, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep) foi criada em 1983 e, em nove meses, foram registrados mais de sete mil depoimentos e mais de 1.500 entrevistas de sobreviventes dos campos de detenção, servindo de base para duas mil denúncias.

O governo chileno também se destaca, pois as autoridades criaram comissões de investigação e apuração imediatamente após o fim do regime ditatorial, o que permitiu o reconhecimento dos desaparecidos e mortos rapidamente.

No Chile, a mobilização para punir os autores dos crimes começou antes mesmo de se encerrar a ditadura de Augusto Pinochet, que teve fim em 1990. A Comissão da Verdade sobre Prisão Política e Tortura do Chile foi criada em 2003 e, em 2011, o órgão registrou em relatório entregue ao então presidente Sebástian Piñera cerca de 40 mil vítimas oficiais da ditadura, sendo 3.225 mortos ou desaparecidos.

Apesar disso, o país também enfrenta dificuldades para julgar os autores destes crimes, pois crimes cometidos entre 1973 e 1979 estavam sob proteção da Lei da Anistia.

Exército punirá militares que comemorarem aniversário do Golpe de 1964

O general Tomás Paiva, comandante do Exército nomeado pelo presidente Lula (PT), afirmou à pessoas próximas que a instituição punirá militares que comemorarem o aniversário do golpe militar ou participarem de eventos nesse sentido.

A orientação repassada pelo Ministério da Defesa para oficiais-generais é de simplesmente ignorar a data. No entanto, há preocupação com movimentos previstos entre militares da reserva no Rio de Janeiro, que promoverão um almoço para celebrar o golpe de 64. O evento é convocado com o nome “Movimento Democrático de 1964”, com ingresso a R$ 90, restrito a sócios e convidados.

Generais que conversaram com a Folha de SP relataram ser comum a presença de oficiais da ativa em eventos do Clube Militar, principalmente pelo fato de reservistas terem familiares na ativa. Por conta disso, oficiais da Força ficarão atentos à movimentação.

O plano de ignorar a data foi combinado entre o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, e os comandantes Tomás Paiva (Exército), Marcos Olsen (Marinha) e Marcelo Damasceno (Aeronáutica), em conversas informais. No entanto, a iniciativa de dar um passo a mais e punir militares que comemorarem a data é exclusiva do general Tomás Paiva.

“O ministério não divulgará nenhum comunicado ou ordem do dia sobre a data”, disse a assessoria do ministério da Defesa à reportagem da Folha. Integrantes da pasta afirmam que a decisão de ignorar a data foi a forma encontrada de evitar crises, tanto com militares como com o governo.

O silêncio em relação ao aniversário do golpe empresarial-militar de 64 é visto como um “meio-termo”. A outra opção seria a divulgação de um comunicado em repúdio ao golpe, o que, na avaliação do ministério, poderia desgastar a relação de Múcio principalmente com oficiais de baixa patente. Durante os quatro anos de mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro a data foi celebrada oficialmente pelo Estado brasileiro.

Pesquisador do Instituto Tricontinental, o cientista político Rodrigo Lentz afirma que a questão do golpe não é apenas uma efeméride para os militares. “Ela é um elemento estruturante de uma coesão ideológica dentro das Forças Armadas. O anticomunismo, que é histórico, não só nas Forças Armadas, mas como no Brasil, funciona também como uma forma de coesão entre a diversidade das Forças, hierarquias e gerações”, avalia Lentz.

Para o pesquisador, comemorar esse marco antidemocrático simboliza o reengajamento dos militares de a partir do golpe de 2016 contra a ex-presidente Dilma Rousseff. “As nossas Forças Armadas não passaram por nenhuma reforma democratizante, com exceção de questões pontuais. Elas continuaram o golpe de 64 como esse elemento de coesão ideológica”, complementa.

Historiadores explicam disputa de narrativas sobre ditadura militar

Passados 59 anos do golpe e da ditadura militar, ainda está presente na sociedade a chamada disputa de narrativas em torno do período.

Uma das questões é qual a real data do golpe: se o dia 31 de março ou 1º de abril. Para o professor de história da Universidade Federal Fluminense (UFF), Daniel Aarão Reis, essa é uma polêmica menor. Segundo ele, o início do golpe foi de fato no dia 31 de março.

“Na madrugada do dia 31, o general Mourão Filho dá início ao movimento armado pela deposição do João Goulart, e as esquerdas, ironicamente derrotadas, passaram a caracterizar o golpe como tendo sido vitorioso no dia 1º de abril. Como a gente sabe, o 1º de abril é o dia da mentira”, argumenta.

Outra disputa presente até hoje é em relação ao termo golpe ou revolução. Daniel Reis reitera que foi um golpe a deposição de João Goulart em 1964, apesar de ter havido apoio de parcelas da sociedade civil a essa deposição, e que partidários do golpe renomearam o movimento como revolução por ela estar associada a coisas positivas na época.

“Golpe é todo aquele movimento que pela violência depõe um presidente da República. Ora, isso é objetivo. No Brasil, João Goulart (Jango) foi deposto por um movimento violento, que não provocou derramamento de sangue notável porque o presidente e as demais lideranças de esquerda resolveram se render sem luta”, explica.

Indo mais profundamente sobre a denominação do período, o professor também explicou porque o período da ditadura civil militar não pode ser considerado um período revolucionário.

“Essas modificações pela raiz, essas transformações designam o processo como revolucionário ou não. Houve revolução na Rússia, em Cuba, houve revolução francesa, americana. Porque ali houve transformações das políticas econômicas e culturais. Isso não houve no Brasil, embora o Brasil tivesse passado por um processo intenso de modernização. Foi uma modernização conservadora e autoritária”, opina.

Sociedade dividida

As pesquisas de opinião feitas à época pelo Ibope nas grandes cidades mostravam uma sociedade dividida. Se antes do golpe 42% consideravam bom e ótimo o governo de João Goulart e 30% regular, após a ação dos militares, pesquisa do Ibope em maio de 1964 revelou que 54% dos entrevistados aprovaram a deposição de Jango.

O motivo da população ter mudado de apoio a Jango para apoio ao golpe pode ter sido o forte sentimento de anticomunismo associado a João Goulart e que foi incentivado pela grande mídia e por adversários políticos. Nas pesquisas do Ibope, o comunismo era visto como ameaça por mais de 65% dos entrevistados. Mas o professor de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo Patto Sá Motta, reitera o equívoco que era associar João Goulart ao comunismo ou socialismo.

“Muitas pessoas acreditaram que o Brasil estava em vias de se tornar um país comunista, o que estava muito longe de ser verdade. O presidente João Goulart não era um socialista, nem muito menos um comunista. Ele era um político trabalhista a favor de algumas reformas sociais, de salários melhores para os trabalhadores. Mas não era socialista, até porque ele era uma pessoa muito rica, um dos maiores fazendeiros do Brasil. Mas ainda assim, então, houve toda essa agitação em torno da ideia de que o Brasil corria um risco sério de se tornar uma nova Cuba na América Latina”, diz Daniel Reis.

E para quem quiser entender mais as discussões em torno do período, o historiador Rodrigo Patto publicou, em 2021, um livro que estuda mais a fundo todas as questões, chamado de Passados Presentes, o golpe de 1964 e a ditadura militar.

Apoio ao golpe de 1964 beneficiou grandes empresários

Há um consenso atual entre historiadores de chamar a ditadura após o golpe de 1964, de civil militar. Isso porque diversos estudos e documentos revelados recentemente apontam que o apoio ao golpe e à ditadura contou com o suporte de setores civis organizados, como o dos grandes empresários por meio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), e das empreiteiras.

O professor de história da Universidade Rural do Rio de Janeiro, Pedro Campos, que estudou a atuação das empreiteiras e de empresários no governo militar, diz que o apoio ao golpe contra João Goulart trouxe as empreiteiras para o centro do poder, que acabaram favorecidas em muitas políticas públicas.

“As empreiteiras, ao lado de outras empresas privadas, vão atuar justamente no sentido de derrubar mesmo o Jango e o seu governo e quando chega o golpe de 64 e é implementada a ditadura, elas chegam ao poder, junto com outros grupos econômicos. E atuam diretamente durante a ditadura sendo muito favorecidas pelas políticas estatais daquele período, com grandes cotações orçamentárias, grandes projetos de rodovias, hidrelétricas, metrôs, de grandes projetos apresentados nesse período”, afirma.

Os grandes empresários brasileiros ditaram as políticas econômicas deste período, isso é marcado pela nomeação de Delfim Netto para o Ministério da Fazenda, a partir de 1967. Sob sua gestão, a ditadura militar conseguiu o que chamam de milagre econômico, o crescimento econômico impulsionado pelo investimento em grandes obras como rodovias, hidrelétricas e outras obras de infraestrutura.

No entanto, o economista e professor visitante da universidade de Columbia Marcelo Medeiros discorda do uso desse termo, “milagre econômico”. Para ele, esse crescimento foi desigual, com os mais ricos sendo mais beneficiados nesse processo.

“Primeiro, o termo ‘milagre’ é de propaganda, um termo incorreto para esse período. Na verdade, ele é um resultado esperado de uma política que foi adotada em investimento pesado, baseado em endividamento. A distribuição do crescimento desse período dos anos 60 e 70 é extremamente concentrada. Esse crescimento foi bom para as pessoas mais ricas, que se apropriaram da maior parte de toda a renda da economia, e não foi bom para o meio da distribuição, para grande parte da distribuição. Ele também foi bom para as pessoas muito mais pobres”, diz.

Além disso, cabe lembrar que o aparato militar empresarial sufocou as mobilizações dos trabalhadores por direitos, o que representou no período perdas salariais e aumento no número de acidentes de trabalho, como explicou o professor Pedro Campos.

“Ele perde 41% do seu valor real, do seu poder de compra entre 64 e 74. Ou melhor, a gente perde quase metade do valor do salário mínimo em dez anos, após o golpe de 64. A redução dos gastos dos empresários em itens de segurança no ambiente de trabalho, isso associado ao pico econômico nesse período, faz com que a gente tenha uma elevação significativa de acidentes de trabalho durante a ditadura. O Brasil vai se tornar recordista internacional nesta estatística. A gente tem durante toda a ditadura mais de 60 mil operários mortos”, afirma.

Dentre essas 60 mil mortes de trabalhadores no período, o professor Pedro Campos ainda destacou aquelas ocorridas nas grandes obras promovidas pela ditadura. Na construção da Ponte Rio Niterói, segundo dados oficiais, foram registradas as mortes de 35 trabalhadores e nas obras da hidrelétrica de Tucuruí, 197 trabalhadores faleceram em virtude de acidentes de trabalho.

Comissão de Anistia pede recuperação da memória contra a ditadura

A Comissão de Anistia realizou, na quinta (30), a primeira sessão pública de 2023, após recomposição da estrutura do colegiado, em janeiro deste ano. A comissão é composta por 16 membros. Essa sessão fez parte da Semana do Nunca Mais – Memória Restaurada, Democracia Viva.

Na abertura da sessão, o assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Nilmário Miranda, deus boas-vindas aos integrantes da comissão reconduzidos e aos sete novos conselheiros.

“Hoje é um dia histórico de volta da Comissão de Anistia. Ela foi desrespeitada por pessoas contra a anistia e a favor da ditadura. O oposto do que deveria ser. Tentaram destruir, descredibilizar essa comissão”, criticou.

O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, enfatizou que a ditadura militar interrompeu um processo de redução nas desigualdades brasileiras até os dias atuais. “Quantos brasileiros e brasileiras poderiam ter sido salvos da ignorância, de doenças e do abandono se não fossem as políticas excludentes da ditadura brasileira?”, questionou.

Silvio Almeida também comemorou a restituição de outro grupo: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que será restabelecida por meio de decreto presidencial a ser publicado nos próximos dias.

O ministro ainda garantiu que a retomada dos trabalhos da nova Comissão de Anistia não representará um revanchismo. “Uma nova fase desse país de restauração da memória, da verdade e da justiça tem, no dia de hoje, um marco nesta primeira sessão plenária emblemática. Alguns veem nessas iniciativas revanchismos ou mesmo tentativas de dividir a nação brasileira. Eu diria que é justamente o contrário! Nenhuma nação se ergueu ou se manteve coesa sem olhar para suas fraturas e repará-las.”

Em seu retorno à comissão, a conselheira Ana Maria Lima de Oliveira, com 15 anos de experiência no colegiado, disse que “se o Brasil tivesse contado sua verdadeira história de violações e ruptura democrática e passado a limpo seu passado ditatorial, este momento não teria o peso deste significado”. Ana Maria citou a fragilidade da democracia brasileira. “Nossa cultura política é autoritária e antidemocrática. E nossa democracia é jovem. Não está consolidada. Precisa de cuidados e de vigilância”.

O caminho, para a conselheira mais antiga da comissão, passa pela educação sobre direitos humanos desde as salas do ensino médio até as escolas de formação de segurança pública para a não repetição de crimes. Ela também citou a retomada das caravanas da Anistia, construção de espaços de memória e museus dos crimes cometidos, contação da verdade e reparação da memória moral, social, psíquica dos perseguidos, bem como a atuação da Justiça, com punição aos violadores dos direitos humanos, dos torturadores e dos assassinos.

O presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), André Carneiro Leão, entende que o Brasil precisa concluir a Justiça de transição, pela memória e pela verdade, com a apuração e responsabilização de agentes e instituições que violaram os diretos humanos no período ditatorial.

“Não podemos aceitar o processo de amnésia coletiva e um processo de esquecimento que permite que cheguemos ao que observamos no dia 8 de janeiro de 2023”, disse, em referência à vandalização às sedes dos Três Poderes, em Brasília. “A carne vai tremer, o sangue vai ferver, porque são processos doloridos, de sofrimento, mas que precisam vir à tona para se possa concluir este processo de justiça de transição.”

A presidente da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados, deputada Luizianne Lins (PT-CE), afirmou que a ditadura não será esquecida. “Voltaremos a descortinar o tenebroso passado para não repetir erros no futuro.”

Revisão de pedidos negados

A presidenta da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, considerou que a primeira sessão representa “um renascimento”. “Resistimos e sobrevivemos”. A comissão planeja revisar mais de 4 mil pedidos negados nos últimos anos e reparar a revitimização de perseguidos políticos, no período ditatorial (1964 a 1985). Nesta primeira reunião, os conselheiros analisaram provas de perseguição política na revisão de quatro processos de anistia e reparação de danos. Os requerentes que se declararam perseguidos pela ditadura militar são Romário Cezar Schettino, Claudia de Arruda Campos, José Pedro da Silva e Ivan Valente.

No primeiro processo analisado, a conselheira Rita Maria Rita Maria Miranda Sipahi relatou o caso de Romário Cezar Schettino, que alega ter sido afastado das funções de bancário e estudante universitário. Em 1973, foi sequestrado e preso, depois exilado de 1974 a 1976. Como resultado, os atuais conselheiros da Comissão de Anistia julgaram procedente o pedido de Romário e a Comissão de Anistia estabeleceu a remuneração mensal permanente continuada no valor de R$ 2.718, 73, com efeitos financeiros retroativos no valor de R$ 828 mil. A presidenta da Comissão de Anistia ainda pediu desculpas a ele, em nome do Estado brasileiro.

O segundo processo analisado foi da professora Claudia de Arruda Campos e foi relatado pela conselheira Ana Maria Lima de Oliveira. Na decisão anterior, houve  negativa de reparação de danos à professora, que, em 1968, como estudante universitária, viveu na clandestinidade para não sofrer mais perseguições, o que teria atrasado a vida acadêmica e profissional até o período de redemocratização no Brasil, quando a solicitante retomou as atividades sindicais. A professora Claudia de Arruda Campos, presente à reunião, foi reconhecida como anistiada política brasileira pelos conselheiros.

O terceiro requerimento de revisão foi do deputado federal Ivan Valente (PSOL- SP) sobre o pedido de anistia política negado pelos governos dos então presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro. O conselheiro relator, Manoel Severino Moraes de Almeida, considerou procedente também o pedido de indenização de Ivan Valente por ter sido perseguido por sua trajetória política quando foi professor de matemática, em São Paulo, e por precisar fugir para sobreviver, se distanciando da família, amigos e com atrasos na vida profissional. O relator foi seguido por todos os demais conselheiros.

Na sessão desta quinta-feira, o parlamentar Ivan Valente defendeu seus argumentos em discurso aos conselheiros. “Os 21 anos de chumbo da ditadura e o retrocesso civilizatório de quatro anos agora provam a todos que lutam pela democracia, que lutam pelos direitos do povo, que a história não é linear e que o perigo nos ronda. O fascismo deixou raízes, plantou raízes que precisam ser enfrentadas.”.

O último processo julgado pela comissão foi de José Pedro da Silva, que pedia a revisão da decisão negativa anterior para passar a ser considerado anistiado político, com reparação por meio de indenização. O processo foi relatado pelo conselheiro Virginius José Lianza da Franca, que analisou as provas de que José Pedro teria sido demitido, preso e impedido de exercer a liderança sindical, durante a ditadura militar. O relator entendeu que o pedido deveria ser deferido, e o voto dele foi acompanhado pelos demais conselheiros da comissão.

Presente à sessão, José Pedro da Silva ouviu o pedido de desculpas, em nome do Estado brasileiro e relembrou o período em que foi militante de um partido comunista, de pastorais operárias e grevista do setor de metalurgia, em São Paulo. “O pouquinho que a gente tem hoje vem da consciência que o trabalhador vem adquirindo”.

Silva comemorou o reconhecimento como anistiado. “Foi negada minha reparação, que não é só para mim. Essa [conquista] é para mim, minha família, para meus amigos e, mais do que isso, é a questão política. Fizeram um erro com o povo trabalhador brasileiro, em nome das elites. Portanto, que a gente tenha força até levar às barras dos tribunais aqueles que sequestraram, torturaram, mataram, estupraram. Tem que acabar isso.”


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