18/05/2024 - Edição 540

Especial

A NOVA CRUZADA

Como atuam missionários para evangelizar indígenas na Amazônia

Publicado em 24/07/2023 4:02 - Tatiana Merlino - Repórter Brasil e O Joio e O Trigo, CIMI

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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“Nós respeitamos os governos até o ponto em que eles falam contra a palavra de Deus. (…) A palavra de Deus [está] acima de tudo”. Embora pareça slogan político da extrema direita brasileira, a declaração é do missionário evangélico Andrew Tonkin, processado no Brasil por invasão de terras indígenas.

Colocar a religião acima das leis não é retórica exclusiva de Tonkin, mas um indício do que são capazes algumas denominações religiosas para evangelizar povos indígenas, principalmente na Amazônia.

Alguns missionários são pilotos e usam aeronaves próprias para percorrer longas distâncias. A maioria dessas organizações tem sede nos Estados Unidos e faz vaquinhas virtuais para financiar as ações, como a formação de pastores-pilotos e a tradução da Bíblia para o idioma nativo das comunidades. Algumas traduções, contudo, têm a qualidade questionada.

Esses grupos demonstram ainda especial interesse em alcançar povos isolados – uma violação à Constituição Federal e a tratados internacionais firmados pelo Brasil que pregam o respeito aos costumes e modos de vida dos povos originários.

Asas de Socorro é uma organização cristã missionária que fornece apoio logístico para áreas remotas (Foto: Asas de Socorro)

Uma das regiões com maior assédio é o Vale do Javari, região com a maior concentração de povos isolados no país. “A gente observa uma presença cada vez maior [de missionários evangélicos], de diferentes doutrinas”, afirma Eliesio Marubo, procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Embora os grupos atuem ali desde os anos 1960, Eliesio conta que foi durante o governo de Jair Bolsonaro que se intensificaram a presença dos religiosos e as investidas a indígenas na região. “Eles buscam sobretudo contato com alguns indígenas que moram na cidade, oferecendo dinheiro e vantagens”, relata.

Para controlar a situação, a Univaja entrou em 2020 com ação na Justiça Federal para pedir a expulsão de missionários que estavam fazendo operações em busca do povo Korubo, considerado de recente contato.

Entre os acusados está Andrew Tonkin, da missão Frontier International, que falou com a Repórter Brasil e O Joio e O Trigo por e-mail. Ele diz agir guiado pelo Espírito Santo e que, embora esteja atualmente no Iraque, mantém um programa de rádio com suas pregações para os indígenas.

Questionado se tentou acessar povos isolados, ele respondeu: “Nunca tive o privilégio de conhecer nenhum”. Apesar de não confirmar a tentativa de evangelização de indígenas isolados e afirmar que respeita as autoridades, ele não descartou agir ilegalmente, se a lei estiver “contra a palavra de Deus”.

“Acredito que Deus tenha colocado os governos e nós obedecemos às leis dos seres humanos. Respeitamos os governos e obedecemos até o ponto em que eles ensinam ou falam contra a palavra de Deus. Nós colocamos Jesus Cristo e a palavra de Deus acima de tudo. É nossa autoridade final”, declara. Leia a entrevista na íntegra.

Vale do Javari é a região com maior concentração de indígenas isolados do mundo (Foto: Gleison Miranda/Funai)

De avião

Além de Tonkin, a Univaja também processou o missionário-piloto Wilson Kannenberg. Ele é ligado à norte-americana Asas de Socorro, uma organização cristã missionária que fornece apoio logístico, incluindo aviões, para áreas remotas. Kannenberg teria usado um hidroavião para acessar o Vale do Javari e tentar burlar a fiscalização que impede a entrada no território.

Segundo a Univaja, a Asas de Socorro não faz apenas “missões humanitárias”, mas promove invasões de terras indígenas em busca de povos isolados.

A Asas tem sede em Anápolis, Goiás, cidade que funciona como centro de operações para diversas organizações de missionários que atuam na Amazônia. A entidade subsidia a formação de pilotos e mecânicos, o que a torna atraente também para quem não tem interesse na atividade religiosa.

A Asas se recusou a responder às perguntas enviadas pela reportagem. Em uma nota assinada por uma advogada, negou participação em qualquer atividade ilegal.

Outro citado na ação movida pela Univaja e aceita pela Justiça Federal em Tabatinga (AM) é Josiah Mcintyre, da Ethnos360 – uma organização missionária americana ligada à Missão Novas Tribos do Brasil.

Durante a pandemia, missionários da MNTB realizaram sobrevoos de helicóptero na TI Vale do Javari, sem autorização da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Segundo reportagem publicada pelo jornal O Globo, o helicóptero Robinson R-66 teria sido adquirido no fim de 2018, com doações de simpatizantes no site da entidade nos Estados Unidos. A MNTB também foi processada pela Univaja. Os três missionários e a MNTB foram proibidos de entrar no território pela Justiça.

“É curioso como muitos cientistas batalham e não conseguem autorização para passar um ano na floresta e eles [missionários] permanecem por décadas sem [sofrer] interferência nenhuma”, analisa o linguista Daniel Everett, ex-missionário norteamericano que hoje é ateu e crítico dessas denominações religiosas.

Kannenberg foi localizado pelas redes sociais, mas não respondeu aos pedidos de entrevista. Josiah Macintyre não foi localizado pela reportagem.

Procurada, a MNTB disse, em nota, que atua “dentro da legalidade, em respeito à lei, aos povos indígenas e aos seus direitos constitucionais de autodeterminação”. Afirmou ainda que não colocou em risco os povos indígenas do Javari durante a pandemia e que deixou a região antes mesmo da ordem judicial (leia o posicionamento completo).

Andrew Tonkin é processado por tentar entrar ilegalmente em terras indígenas onde vivem isolados (Foto: Facebook)

Bíblia sem ambiguidade

Após desembarcarem no país, os missionários aprendem os idiomas dos povos originários, produzem dicionários e gramáticas e usam esse conhecimento para traduzir a bíblia e pregar para os indígenas em suas línguas nativas. Porém, sutilezas do livro sagrado acabam ficando de fora das traduções, avalia Everett.

“A bíblia é um livro bastante ambíguo e, na tradução, o missionário já tira essa ambiguidade, para adaptar o texto a sua própria ideologia, muito conservadora e ligada ao discurso da extrema-direita cristã”, explica o ex-missionário.

Utilizado desde os anos 1960, esse método continua sendo largamente empregado pelos missionários. O Ethnos360 mantém arrecadações abertas para financiar traduções do livro sagrado dos cristãos para os idiomas de povos originários de diferentes localidades do planeta.

No site da instituição, é possível doar dinheiro diretamente para o trabalho de cada um dos missionários, mesmo que a página não especifique o que fazem e o município onde atuam. Só no Brasil, atuam mais de 50 missionários.

Outro site ligado às missões estrangeiras é o Joshua Project. A entidade tenta atrair ao menos 47 religiosos para atuar no Brasil, com mapas de locais onde as atividades devem ser desenvolvidas.

Entre os públicos alvos da pregação no país estão judeus, islâmicos e outras comunidades estrangeiras. Mas o grande foco são os indígenas.

“A ideologia levada pelos missionários é reacionária e ligada aos valores dos Estados Unidos”, afirma Everett. Ele lembra que boa parte desses religiosos apoiava a ditadura militar e, mais recentemente, Bolsonaro. E recebia benefícios em troca, como a permanência nos territórios indígenas.

Grupos religiosos se concentram em Atalaia do Norte (AM), cidade que é a porta de entrada do Vale do Javari (Imagem: O Joio e O Trigo)

É o caso do pastor Steve Campbell, da igreja Greene Baptist Church, cuja família atua há 60 anos entre os Jamamadi, em Lábrea (AM). Levado pelos pais, também missionários, em 1963, ele fala a língua dos indígenas e convive com eles desde criança.

Segundo o indigenista Daniel Cangussu, um dos principais impactos causados pela presença do missionário é o conflito geracional. Campbell apoia lideranças mais jovens, que têm melhor domínio do português e do uso de tecnologias, o que contribui para deslegitimar os mais velhos.

“Há um efeito grave nas aldeias, pois os mais velhos perdem a credibilidade. Isso é bem sério, eles têm se afastado entre si e isso desorganiza bastante a situação interna. É algo que a gente nunca viu acontecer”, explica Cangussu.

Em 2018, o missionário Campbell foi expulso pela Funai da Terra Indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamanti, após liderar uma expedição que entrou, sem autorização das autoridades, no território do povo isolado Hi-Merimã – o que é proibido. Por causa desse episódio, Campbell passou a ser investigado pelo Ministério Público Federal.

O imbróglio vem prejudicando o atendimento à saúde dos Jamamadi, já que as lideranças atuais dizem que servidores da Funai e da saúde indígena só poderão entrar no território novamente após o retorno do missionário.

Dentre outros motivos, Campbell consolidou sua influência entre os Jamamadi por conseguir aviões e helicópteros para pessoas que necessitavam de transporte para hospitais na cidade, em casos de emergência.

Na avaliação de Everett, é preciso restringir a presença dos missionários das terras indígenas. Porém, isso demanda investimentos em profissionais de saúde e voos de urgência, por exemplo.

“O Brasil já tentou diversas vezes expulsá-los dos territórios indígenas sem sucesso, porque eles ignoraram as decisões. E eles não vão sair apenas porque o governo falou que eles não podem ficar lá. Esses missionários acreditam que a lei de deus está acima das leis de qualquer país”, finaliza.

Evangelização de povos indígenas isolados: até quando?

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) questiona dispositivo da lei 14.021/2020 que permite a permanência de missões religiosas em territórios de povos indígenas isolados.
Talvez muita gente não saiba, mas no Brasil existem inúmeros povos indígenas que, conscientemente, escolheram viver em isolamento. Esses coletivos não vivem na ignorância, ou sem saber da nossa existência, mas sim optaram pela forma de vida que levam. Na opção e ação de seu isolamento está a vontade manifesta de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam e de viver segundo seus usos e costumes.

Especialistas que trabalham há décadas com esses grupos já demonstraram que, devido aos seus costumes e tradições, eles estão sujeitos a uma vulnerabilidade socioepidemiológica muito maior que a nossa. Se protegermos seus territórios e garantirmos que sigam com suas estratégias milenares de controles de epidemias, permanecerão saudáveis. Porém, se a proteção falha, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações ficam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas — pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e acesso à imunização ativa por vacinas.
Por essas razões, a restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987. No entanto, em 2020, o governo Bolsonaro editou a lei 14.021, que permite a permanência de missões religiosas em terras indígenas de isolados.

O que todos os presidentes da República entenderam, e Bolsonaro não compreendeu, é que, ao optarem pelo isolamento, esses indígenas não desejam viver em contato constante com sociedades que não as deles e, muito menos, decidir se vão “abrir-se ou não ao recebimento de religiosos”, como defendeu o governo perante o STF.
A liberdade religiosa dos missionários pode ser exercida em todo o território nacional, e não há nada de antidemocrático em compatibilizá-la com pequenas regiões onde esses grupos de indígenas isolados, minoritários e vulneráveis resistem para manter seus próprios modos de vida, conforme lhes garante o artigo 231 da nossa Constituição.

Esse indigenismo que setores da sociedade querem estabelecer merece não apenas atenção sanitária, jurídica e social, mas também o reforço do repúdio que há mais de 30 anos a Constituição já consolidou contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas.

Cimi lança Relatório de Violência contra povos indígenas

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lança na próxima quarta-feira (26), às 15h, o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2022. O evento de lançamento da publicação anual do Cimi ocorrerá na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília (DF), e será transmitido ao vivo pelo canal de youtube do Cimi.

O Relatório, organizado em três capítulos e 19 categorias de análise, apresenta um retrato das diversas violências e violações praticadas contra os povos indígenas em todo o país. Para a produção do documento foram sistematizados dados obtidos através de informações dos regionais do Cimi, de comunidades indígenas e de veículos de comunicação, além de fontes públicas oriundas da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e de secretarias estaduais de saúde.

O levantamento reúne dados sobre violações contra os direitos territoriais indígenas, como conflitos, invasões e danos aos territórios; violências contra a pessoa, como assassinatos e ameaças; e violações por omissão do poder público, como desassistência nas áreas da saúde e da educação, mortalidade na infância e suicídios.

O ano de 2022 encerrou o ciclo de quatro anos sob o governo de Jair Bolsonaro, marcado pela paralisação total das demarcações de terras indígenas, pela grande quantidade de conflitos e de invasões a estes territórios e, ainda, pelo desmonte das políticas públicas voltadas aos povos indígenas e dos órgãos responsáveis por fiscalizar e proteger seus territórios.

O relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2022 apresenta um balanço deste período, com a atualização dos principais dados que ajudam a vislumbrar este contexto de ofensiva contra os direitos constitucionais dos povos originários. Assim, esta edição do relatório sistematizou também dados atualizados sobre assassinatos, suicídios e mortalidade na infância referentes a esse período de quatro anos.

“Não demarcar e viabilizar o acesso de exploradores às terras demarcadas foram eixos motores da antipolítica indigenista, que desterritorializou e fragilizou a aplicação do direito, gerando um ambiente de profunda insegurança e violências sem precedentes na história recente do Brasil”, apontam Lucia Helena Rangel e Roberto Antonio Liebgott, coordenadores da publicação, na introdução do relatório.

No lançamento, estarão presentes lideranças indígenas e representantes da CNBB e do Cimi. Dentre eles, Dom Ricardo Hoepers, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho (RO); Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário executivo do Cimi; Lucia Helena Rangel e Roberto Antonio Liebgott, organizadores do relatório; Erilsa Pataxó, a vice-cacica da Terra Indígena (TI) Barra Velha (BA); Josiel Kaiowá, liderança Guarani kaiowá (MS); e Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana (RR).


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