18/05/2024 - Edição 540

Especial

A fé manipulada

Perseguição bolsonarista dentro das igrejas já faz do Brasil uma Nicarágua

Publicado em 21/10/2022 12:47 - Leonardo Sakamoto (UOL), Ivan Longo (Fórum), Mariama Correia, Nathallia Fonseca (Agência Pública) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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“Cheguei a mentir, dizendo que vou votar no presidente, porque fico com medo, né? A gente vê como está sendo tratado quem vota no Lula na igreja. Tem gente aqui que deixou de vir porque se sentiu ameaçada. Pô… Deus é amor, não é isso não.”

A declaração, dada ao jornalista Leonardo Sakamoto (UOL) por um membro de uma igreja evangélica da zona sul de São Paulo que pediu para não ser identificado, não tem gosto de novidade. O Brasil está vivendo dias tensos neste segundo turno com o comportamento de algumas lideranças religiosas e grupos bolsonaristas que espalham o terror em quem não vota em seu candidato.

De acordo com Eloísa Machado, professora da FGV Direito-SP, se não houver providências por parte da Justiça nacional por conta desse assédio em igrejas, o Brasil pode vir a ser alvo de ação em um tribunal internacional. E a questão, em sua avaliação, não é apenas de perseguição política.

“Entendo que é perseguição religiosa também porque ela ocorre no espaço da religião e atrela a posição política a ser um bom ou mau religioso, o que promove a exclusão daquele espaço de crença e culto”, avalia a jurista.

Ironicamente, apesar dessa perseguição religiosa contra críticos do governo Bolsonaro, apoiadores do presidente bradam que são eles que estão sendo perseguidos. Acusam que Lula fechará igrejas caso eleito, mesmo que milhares de templos tenham sido abertos durante seu governo. E o comparam de forma descabida ao autoritário Daniel Ortega, na Nicarágua, para dizer que perseguirá cristãos que pensam diferente dele.

As cenas de padres vaiados ao pedirem para a fome ser combatida no Brasil, no dia de Nossa Senhora, na Basílica de Aparecida, por fiéis bolsonaristas que acreditam que não existe fome porque o presidente assim decretou é um exemplo dessa perseguição. O caso de um rapaz assediado por uma horda que se diz cristã no santuário simplesmente por estar vestindo vermelho é outro.

Esse comportamento ensandecido já atingiu a cúpula da igreja. O arcebispo de São Paulo, Odilo Scherer, após acusações de seguidores do presidente teve que vir a público para explicar que a vestimenta dos cardeais é vermelha porque na igreja ela representa a prontidão ao martírio.

“Tempos estranhos esses nossos! Conheço bastante a história. Às vezes, parece-me reviver os tempos da ascensão ao poder dos regimes totalitários, especialmente o fascismo. É preciso ter muita calma e discernimento nesta hora!”, postou em sua conta nas redes sociais no domingo (16).

Quem conhece Scherer sabe que está longe de ser comunista. Mas por ser contra a instrumentalização da fé nas eleições, como outros na CNBB, é tachado como tal por uma turba que, pelo jeito, não sabe o que significa ser comunista, nem o que é ser cristão.

O mesmo não pode ser dito de algumas lideranças, como Silas Malafaia, um dos mais importantes aliados do presidente da República. Por conta das polêmicas em Aparecida, ele sugeriu que lideranças católicas eram “apadrinhadas de Lula”.

A hiperpolitização dos púlpitos, que se intensificou entre abril e maio deste ano, transformou algumas igrejas em comitês eleitorais. E quem discorda desse alinhamento vem sendo ameaçado, expulso ou pior.

Após um pastor associar o diabo ao PT no culto, um fiel reclamou do envolvimento da igreja nesse debate e foi chamado de demônio. Segundo o fiel, sua família parou de ser cumprimentada na igreja e começou a ser ameaçada. Até que, no dia 31 de agosto, após uma discussão dentro da igreja, seu irmão foi baleado com um tiro que atravessou as duas pernas por um policial. O culto continuou mesmo assim.

Para tentar evitar danos à imagem do presidente, bolsonaristas passaram a vender a mentira de que o tiro partiu de um petista.

Mas isso também traz efeitos colaterais. Após lideranças de igrejas que se aliaram ao presidente passarem a substituir tempo de pregação da palavra de Deus pela defesa veemente de que Bolsonaro representa Jeová e Lula, Lúcifer, muitos eleitores evangélicos se empapuçaram com a hiperpolitização. E o número de reclamações subiu frente a pastores que ignoram o “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, presente no capítulo 22 do Evangelho de Mateus.

Lula reagiu. O PT preparou uma carta para esse grupo e começou uma contra-ofensiva, com o ex-presidente falando de paz, amor e de temas que interessam às famílias. Tem organizado encontro com evangélicos e preparado peças publicitárias voltadas a eles, afirmando que a liberdade religiosa continuará em seu governo.

A movimentação não fará com que Lula encoste em Bolsonaro junto esse público. Mas o petista reforçou um ponto que os evangélicos consideram importante: mostrar que ele se importa com eles. Soma-se a tudo isso o fato que há uma percepção de que, apesar de subir em caminhões na Marcha para Jesus ou de participar de cultos em igrejas, Jair não tem atitudes cristãs. Por exemplo, quando diz que “pintou um clima” entre ele e meninas refugiadas venezuelanas de 14 anos.

Bolsonaristas intimidam padres, acabam com missas e fazem arruaça em igrejas; relembre os casos

Uma das principais fake news que marcam a campanha eleitoral deste ano é a de que Lula, se eleito presidente, vai perseguir cristãos e fechar igrejas. A mentira é amplamente divulgada por apoiadores de Jair Bolsonaro, motivados pelo uso político que o presidente faz da religião.

O próprio Bolsonaro, inclusive, chegou a sugerir que Lula vai fechar igrejas. “É preciso estar atento. A partir de hoje, mais do que nunca, os que amam o vermelho passarão a usar verde e a amarelo, os que perseguiram e defenderam fechar igrejas se julgarão grandes cristãos, os que apoiam e louvam ditaduras socialistas se dirão defensores da democracia”, escreveu o mandatário em agosto, logo no início oficial da campanha.

Apesar deste tipo de narrativa falaciosa, são os próprios bolsonaristas que vêm perseguindo padres católicos, acabando com missas e fazendo arruaças em igrejas, a exemplo do que aconteceu durante as celebrações do dia de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro.

CONFIRA OS ÚLTIMOS CASOS DE INTIMIDAÇÃO DE BOLSONARISTAS CONTRA PADRES E IGREJAS 

Achaque em Aparecida (SP) 

Durante a passagem de Jair Bolsonaro por Aparecida (SP), no âmbito das celebrações do dia de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro, bolsonaristas promoveram arruaça, consumiram álcool em frente à basílica e atacaram jornalistas.

Incendiados por um discurso do presidente contra a comunidade LGBTQIA+, os “cristãos” apoiadores do mandatário de extrema direita ainda vaiaram o Arcebispo Dom Orlando Brandes por uma fala contra a fome durante uma missa e invadiram a sacristia da basílica antiga da cidade para promover achaques ao padre Camilo Júnior.

Padre intimidado no Paraná 

No mesmo dia do achaque de bolsonaristas em Aparecida (SP), em 12 de outubro, um padre da Paróquia Nossa Senhora da Luz, em Fazenda Rio Grande, no Paraná, foi hostilizada por uma apoiadora de Jair Bolsonaro.

O padre Edson dizia, durante uma missa, que “o Deus da vida nunca vai pactuar com as forças da violência, nunca vai estar do lado daquele que prega o armamentismo, porque Deus é amor, solidariedade”, quando a mulher o interrompeu, aos gritos, questionando: “O Deus da vida é a favor do aborto, padre? Ele é a favor da ideologia de gênero? O senhor está pedindo voto para o Lula?”. O religioso negou todas as acusações da mulher e tentou seguir com a cerimônia, mas pouco tempo depois foi interrompido por outro homem.

Ex-candidata do PL chama padre de “padreco do Satanás”  

Candidata derrotada a deputada federal nas eleições deste ano, a jornalista bolsonarista Flávia Azevedo, que concorreu pelo PL de Umuarama (PR), divulgou um vídeo em que faz fortes ataques ao padre Luiz Cézar Bento por conta de um áudio atribuído ao religioso em que faz críticas ao presidente Jair Bolsonaro.

“Você pirou, padre? Você é um padreco do inferno! Porque você, padreco, não fala que o PT é a favor de aborto? Porque você não fala, padreco do satanás, que o PT é a favor de ideologia de gênero nas escolas? (…) Você não representa os cristãos, padreco do inferno!”, dispara Flávia aos gritos, sugerindo ainda que o religioso é a favor do aborto e da legalização das drogas.

Padre intimidado em Jacareí (SP) por citar Marielle 

No dia 15 de outubro, na igreja São João Batista, em Jacareí (SP), uma mulher interrompeu uma missa e afrontou o padre Ewerton, titular da paróquia, com discurso bolsonarista e fake news, após o religioso evocar a memória do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, assassinados na Amazônia este ano, e da vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em 2018.

“O senhor não vai falar de Marielle Franco dentro da casa de Deus. O senhor não vai falar de Marielle Franco, uma homossexual, uma envolvida com o tráfico de drogas, o senhor não vai falar de Marielle Franco dentro da casa de Deus. Uma esquerdista do PSOL, uma homossexual, que quer a ideologia de gênero dentro da escola das crianças”, disparou a mulher, reproduzindo mentiras que já circulavam à época da morte da vereadora.

Padre Zezinho deixa as redes após ataques bolsonaristas 

O Padre Zezinho, da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, publicou um texto no Facebook, no dia 14 de outubro, para desabafar e denunciar ataques de apoiadores de Jair Bolsonaro contra ele, o Papa Francisco e à Igreja Católica, ocorridos durante a celebração de Nossa Senhora Aparecida.

O religioso de Minas Gerais afirmou estar cansado de dar espaço a fiéis “superpolitizados, irados e insatisfeitos”. Por isso, anunciou que vai abandonar as redes sociais até 31 de outubro, um dia após a realização do segundo turno entre Lula (PT) e o atual presidente.

Bolsonarista perturba final de missa 

Uma bolsonarista, ao final de uma missa em Campo do Tenente (PR), no domingo (16), acusou aos gritos o padre da paróquia de ser petista. Indignada, a mulher, com uma camiseta em homenagem a Jair Bolsonaro, não ouvia os pedidos de “calma” de outros fiéis.

Arcebispo de São Paulo atacado por batina vermelha, cor usada por cardeais 

O cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, Dom Odilo Scherer, passou a ser alvo de hostilização de bolsonaristas nas redes sociais após fazer uma postagem, no último domingo (16), criticando brigas políticas. “A fé em Deus permanece depois das eleições; assim, os valores morais, a justiça, a fraternidade, a amizade, a família… vale a pena colocar tudo isso em risco no caldo da briga política?”, havia publicado.

A simples mensagem foi suficiente para que bolsonaristas fanáticos passassem a atacar o religioso e, inclusive, acusá-lo de ser “comunista” pelo fato de usar batina da cor vermelha.

O arcebispo teve que vir à público, mais uma vez, para esclarecer que o vermelho é a cor utilizada por cardeais da igreja católica pois representa “o amor à Igreja e prontidão ao martírio”.

“Tempos estranhos esses nossos! Conheço bastante a história. Às vezes, parece-me reviver os tempos da ascensão ao poder dos regimes totalitários, especialmente o fascismo. É preciso ter muita calma e discernimento nesta hora!”, disse ainda o cardeal após os ataques dos bolsonaristas.

Pastores relatam perseguições e até ameaças de morte por voto em Lula

“Hoje eu sou um pastor de certa forma isolado”, diz Usiel Carneiro de Souza, 59 anos, à frente da Igreja Batista da Praia do Canto, em Vitória, no Espírito do Santo. Ele conta que vem sofrendo perseguições e chegou a enfrentar um processo judicial que pedia seu afastamento do cargo, por assumir voto na esquerda.

A Agência Pública conversou com pastores e lideranças evangélicas, de várias denominações, entre elas batistas, assembleianos, presbiterianos, pentecostais e neopentecostais, que relataram sofrer represálias por declararem voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nestas eleições. Eles representam um grupo dissidente dentro do eleitorado evangélico, onde Jair Bolsonaro (PL) lidera.

Na tentativa de conquistar mais apoio dos religiosos, Lula assumiu compromissos como o respeito à liberdade de culto, respeito à família e o combate às drogas, em uma carta aos evangélicos, apresentada nesta quarta-feira (19). Mas o atual presidente ainda conta com apoio das cúpulas das principais denominações brasileiras, como a Assembleia de Deus, maior denominação evangélica do país, cuja a principal convenção apresentou resolução para punir pastores que “defendam, pratiquem ou apoiem” pautas de esquerda.

Os casos localizados pela reportagem envolvem processos judiciais contra os sacerdotes, afastamento dos pastores de suas funções, constrangimentos, ataques e xingamentos nas redes sociais, e até ameaças de morte. As pressões sofridas causaram adoecimento psicológico para alguns dos entrevistados. Eles também disseram temer pela própria vida e dos seus familiares. Com medo de represálias, alguns pediram para ter suas identidades preservadas.

Por causa dos ataques envolvendo política, o pastor Usiel passou três meses afastado dos seus compromissos na igreja, no começo deste ano, e começou um acompanhamento psiquiátrico com uso de medicação. “Os xingamentos chegam na maioria das vezes pelas redes sociais. Minha postura é de não trazer temas de eleições ao púlpito, até porque tenho membros que votam em Lula e em Bolsonaro. Tenho meu posicionamento pessoal na minha rede pessoal, onde posto sobre política”, explica.

Em uma postagem no Instagram, no dia 12 de outubro, intitulada “Lula ou Bolsonaro? Cristão ou Comunista?”, o sacerdote escreveu: “Não sou Lulista, mas segundo minha visão política o reconheço como melhor opção para os próximos 4 anos. Isso faz de mim um comunista? De forma alguma.” Entre os comentários críticos, um homem respondeu em tom ameaçador: “melhor se arrepender, Jesus está voltando e os ministros da palavra serão mais cobrados no juízo final”.

O pastor Usiel também enfrentou um processo judicial por divergência política. Ele conta que em 2020, dois anos depois da eleição de Bolsonaro, um grupo de 30 membros [a igreja dele tem 500 membros no total], todos apoiadores do atual presidente, foi à Justiça pedir o afastamento dele do cargo. “Eles fizeram um dossiê contra mim pedindo minha saída. Me caluniaram, me acusaram de desvio doutrinário, esquerdista, comunista. Também de que eu estaria desviando recursos da igreja”, diz.

A ofensiva encontrou apoio da Convenção Batista do Estado do Espírito Santo, o principal órgão da denominação no estado. O afastamento do pastor da congregação só não aconteceu porque a outra parte da congregação se posicionou a favor de Usiel. Eles assinaram uma carta de membros contra o posicionamento da convenção e do grupo bolsonarista, que diz: “Se pela voz injusta e colimadora daqueles poucos esta Comissão se sente motivada a acolher suas queixas e agir, esperamos e solicitamos que, pela voz de inúmeros irmãos, que esta Comissão respeite as decisões da IBPC [Igreja Batista da Praia do Canto] tomadas corretamente por nosso Conselho e mostrem respeito pelo nosso pastor, cujo ministério tem ricamente abençoado nossas vidas.”

O grupo bolsonarista terminou deixando a congregação e respondendo a processo disciplinar do Conselho Batista. Mas, este ano, com as eleições, o pastor diz que voltou a sofrer ataques e coações. Ele conta ter visto ex-membros da igreja filmando o culto. “Como se quisessem me incriminar”, narra. “Minha preocupação é essas situações saírem do ambiente virtual e virarem violência física”.

Nestas eleições, o caso de outro pastor batista, Sérgio Dusilek, do Rio de Janeiro, se tornou símbolo da perseguição a cristãos de esquerda. Ele sofreu pressão para renunciar à presidência da Convenção Batista Carioca (CBC) depois de participar de um encontro de Lula com evangélicos em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, realizado em um ginásio de um clube, no dia 9 de setembro. Na ocasião, Sérgio disse que “a igreja tem que pedir perdão ao presidente Lula”. O vídeo com a declaração viralizou.

Desde então, o pastor tem evitado ir à igreja, sido desconvidado a participar de eventos e recebido ameaças diretas. “Uma das muitas ameaças que recebi dizia: o senhor não vai ficar impune. Isso é bem abrangente e, pelo teor da mensagem como um todo, cabe a interpretação de levar às últimas consequências, ou seja, é uma ameaça velada de morte, porque se a pessoa diz vou te matar abertamente, posso denunciá-la à polícia”, conta.

Nas duas semanas depois do encontro em São Gonçalo, o pastor Sérgio evitou ir à igreja e ficou mais em casa. “Alguns amigos me sugeriram andar com seguranças, mas não recorri a isso, primeiro por achar uma excrescência pastor andar com segurança. Segundo porque não tenho dinheiro para pagá-los”, explica.

“É uma rejeição que não é só uma cara que se vira quando te vê, é uma rejeição afrontosa”, desabafa Sérgio. “Fui falar que a igreja precisava parar de demonizar o ex-presidente Lula e me tornei um demônio para os meus. E, como sou taxado de demônio, os espaços sumiram. Se eu antes frequentava púlpitos de outras igrejas, hoje, não mais. Além de pressões. Tem um pastor que, apesar do carinho que tenho por ele, falou no púlpito contra mim. Sofri retaliações de pessoas que tinha consideração”, lamenta.

A Convenção Batista Carioca publicou um comunicado institucional dizendo que “não apoia, nem indica, nem toma partido de qualquer candidato a cargo público, ou ainda, não referenda qualquer corrente político-partidária”. Em sua defesa, o pastor Sérgio argumenta que “falou como Sérgio” e não em nome da instituição, durante o encontro de Lula. “O que usaram para me atacar não foi dito dentro da igreja. Eu acredito numa igreja isenta de política partidária e acho que esse assunto é muito pequeno comparado a outros, como a salvação”.

Para ele, “quando a convenção [Batista] caça o meu posicionamento mas não há nenhum tipo de reprimenda às manifestações e pedidos de voto para Bolsonaro, a igreja diz ter um lado”, argumenta, lembrando do momento em que a igreja Batista convocou fiéis para um jejum e oração em prol do “futuro da nossa nação e pelos juízes do STF”, em 2018. O evento que ocorreu tinha relação com o julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Lula pelo Supremo Tribunal Federal.

Pastores progressistas criam grupo de apoio em Minas

O pastor Filipe Gibran, da igreja Comuna do Reino, em Belo Horizonte (MG), publicou um vídeo, no dia 12 de outubro, denunciando boicote por motivações políticas. Ele diz que foi impedido de realizar um culto na igreja do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, em Belo Horizonte, porque o reitor da instituição teria presumido que a pregação seria feita por “pastores de esquerda”. A Pública buscou a reitoria do Centro Universitário sobre o assunto e não obteve retorno.

“Ele ligou para nós no dia anterior ao culto e disse que não poderíamos fazer um ‘culto de esquerda’. Isso nunca tinha acontecido”, conta, negando que a celebração tivesse cunho político. Depois do episódio, Felipe se juntou a um grupo de dez pastores progressistas em Belo Horizonte, que se uniu para apoio mútuo. Todos eles sofreram algum tipo de perseguição política.

“Iniciamos este trabalho em decorrência do cenário de assédios, assassinato de reputação por líderes evangélicos da extrema-direita”, explica Enéas Alixandrino, pastor na Comunidade Cristã Êxodo em Minas Gerais, um dos idealizadores do grupo. Ele conta que, desde 2019, quando decidiu tornar os cultos mais acolhedores a fieis LGBTQIA+, explicitando que a presença de casais homossexuais era bem vinda, sofre violências.

Os ataques, que já relacionavam Enéas à “política de esquerda” e ao “comunismo”, ganharam novo fôlego durante o período eleitoral. “São retaliações colocando em xeque a credibilidade da minha devoção à fé cristã como se houvesse incompatibilidade entre ser progressista e ser cristão”. O pastor diz que a repressão vem, principalmente, na forma de atitudes e comentários preconceituosos dentro da própria comunidade evangélica, que prejudicam sua reputação.

Antonio Marcos de Souza, da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e integrante do grupo de pastores progressistas, também relata repressões, muitas vezes direcionados à própria congregação, que atua em duas periferias da cidade de Belo Horizonte, e assume algumas posturas progressistas como a inclusão de homossexuais e a defesa da democracia, além de já ter se posicionado publicamente contra ações específicas do governo Bolsonaro. Devido a esse enfrentamento, segundo o pastor, “muitas vezes a igreja não é convidada para eventos evangélicos ou incluída em programações”.

“Minha igreja já nasce da perseguição que ocorreu em vários organismos da igreja presbiteriana desde a década de 70. Desde então, há uma repressão no sentido de nos colocar em uma situação lamentável, muitas vezes negando que fazemos parte da comunidade evangélica”, conta.

“Há perseguição por parte de outras igrejas e outros líderes que fazem um tipo de denuncismo. Já aconteceu de nós estarmos tendo contato com novos eclesianos [pessoas que pertencem à igreja] e as pessoas iam lá e falavam mal da nossa igreja com as pessoas que estavam entrando. Isso é uma agressão à fé”, conta. “Quando nos aliamos aos nossos irmãos católicos, da defesa dos direitos humanos, da defesa dos projetos sociais ou mesmo nos comprometemos a pregar o Evangelho de maneira genuína, muitas vezes somos julgados”, diz.

Antônio Marcos diz que o nível das perseguições já fez com que ele “considerasse não apenas deixar a comunidade evangélica, mas o país”. “Às vezes a gente é tomado pelo desânimo, pela apatia de ser confrontado por pessoas nas quais a gente não consegue ver o amor Cristão”.

No grupo de apoio em BH, os pastores progressistas compartilham suas histórias e, principalmente, dividem apoio para evitar um problema cada vez mais frequente: o afastamento da congregação ou da própria religião por pressões políticas. “Infelizmente o discurso da extrema-direita evangélica afeta sua membresia no sentido de deixá-los mais intolerantes, autoritários, misóginos, homofóbicos, xenofóbicos e mesmo racistas. Por outro lado, a igreja evangélica vem experimentando um êxodo para fora dela de membros que não se encaixam neste perfil”, pontua Enéas.

Um pastor batista negro e periférico, que atua em Belo Horizonte e está no grupo de apoio, contou, em condição de sigilo por temer novas represálias, que perdeu metade dos membros da sua congregação este ano por discordâncias políticas. “Tinha 70, hoje são 35”, contabiliza. Ele diz que não fala de política partidária nos cultos, mas aborda “justiça social, respeito ao diferente e se posiciona contra as armas”. “Bandido bom não pode ser bandido morto porque quem tem o poder da vida é Jesus. Aí já fazem associações com candidatos. Só de ter posições mais progressistas, as pessoas te classificam de abortista, pró-LGBT. Não tenho problemas com LGBTs, porém minha comunidade não é inclusiva, mas é acolhedora. E só ser acolhedor já é um problema para o fundamentalista”, diz.

Segundo o pastor, boa parte dos ex-membros da sua congregação migrou para igrejas mais conservadoras e que têm lideranças que declaram abertamente apoio a Bolsonaro. “BH é uma cidade com grandes igrejas bolsonaristas, como a Batista da Lagoinha [onde Bolsonaro e a primeira-dama Michelle subiram ao púlpito durante culto realizado em 7 de agosto, pouco antes do início da campanha oficial, no dia 16] a Getsêmani, de Jorge de Linhares e a Batista Central, de Paulo Mazoni, uma igreja rica. A gente tem colocado mensagens sobre amor, graça e compaixão. Muitos preferem igrejas fundamentalistas que falam sobre inferno, que demonizam religiões afro”.

Por abordar questões raciais dentro da igreja, o pastor Marco Davi de Oliveira, da Nossa Igreja Brasileira no Rio de Janeiro, sempre sofreu perseguições. “Com o acirramento da questão política, comecei a sofrer outros tipos de represálias. Em 2019, fui desconvidado de um evento da juventude batista brasileira, antes da pandemia. Era um evento na Igreja Batista Atitude, que é frequentado por Michelle Bolsonaro. Depois fui entender que não era só racismo especificamente, mas a questão política já estava lá, porque eu já me colocava contra bolsonaro”, lembra.

O pastor Marco tem ajudado a colher casos de pastoras e pastores de esquerda que estão sendo atacados por posicionamento político em todo o país. Ele trabalha com a Frente Evangélica pelo Estado de Direito, que acaba de lançar um canal de denúncias por telefone e Whatsapp para acolher essas situações. O pastor Ariovaldo Ramos, coordenador da Frente, que também atua na campanha de Lula, diz que ainda não há dados consolidados sobre a quantidade de casos mapeados até agora, mas que já estão sendo feitas algumas escutas a partir de denúncias recebidas. O próprio Ariovaldo também é alvo de ataques. Da Comunidade Cristã Reformada, ele foi envolvido recentemente em uma notícia falsa sobre recebimento de R$ 6 milhões por meio de uma ONG, da qual ele se afastou em 2018, como mostrou a checagem do Coletivo Bereia.

Ariovaldo diz que houve um “aumento perceptível” de casos de violência e repressão de lideranças evangélicas, especialmente desde a eleição de Bolsonaro. Para ele, a situação representa um “enorme constrangimento” para a igreja evangélica. “Na linguagem evangélica, existe muita idolatria, que é considerado algo muito grave entre nós. Muitos pastores estão agindo como cabo eleitoral do candidato à reeleição.”.

Outra iniciativa que busca acolher líderes e fieis que se sentem acuados por seus posicionamentos é a Novas Narrativas Evangélicas, um coletivo formado por jovens de diferentes igrejas pela preservação da pluralidade. Em resposta aos ataques mais recentes contra lideranças progressistas, o grupo publicou uma nota reforçando que “o crente é livre para votar em quem quiser, de acordo com a própria consciência e não pela pressão da igreja ou de pastores”.

“Existe um tipo de cristão que já está sendo perseguido: os que não se dobraram à idolatria da extrema-direita nas igrejas. Esses irmãos e irmãs são constantemente intimidados pelas lideranças religiosas e outros membros que seguem o pensamento hegemônico”, denuncia a nota.

O teólogo e ex-presbítero Flávio Pinheiro também sofreu retaliações por discordância política. Desde o início do exercício no cargo de liderança da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), ele conta que foi orientado por superiores a “mudar o pensamento” em tópicos relacionados à política. Seu afastamento oficial do cargo aconteceu em 2021, após postagens nas redes sociais onde criticava o presidente Bolsonaro.

Flávio continua se posicionando politicamente em seus perfis nas redes sociais e diz que, mesmo após um ano desde o seu afastamento, há pessoas que buscam as redes sociais para descredibilizá-lo. “Costumo bloquear ou excluir coisas mais ofensivas, mas ainda acontecem. No Facebook, por exemplo, às vezes escrevo alguma coisa e reagem com ‘risos’, que não podem ser excluídos da postagem. Dizem que eu fui ingrato com a igreja, que falo coisas sobre política para aparecer”, conta.

“Eu entendo que existe um limite entre a separação da vida religiosa e a vida pessoal. Você não pode ser um psicopata fora da igreja e pregar a palavra de Cristo dentro dela. Qualquer pessoa que frequentou as mesmas igrejas que eu, sabe que eu não levo manifestações político-partidárias no ambiente religioso, apenas nas minhas redes”, completa.

Ameaças de morte

“Endemoniado, enviado do inferno, herege. Quando posto um vídeo, recebo centenas de mensagens e ataques. Já recebi até ameaças de morte de bolsonaristas. Não tenho medo por mim, mas receio pela minha família”, conta o pastor Gilmar Almeida, morador de Montemor, em São Paulo, membro da Assembleia de Deus Ministério do Belém. Ele grava vídeos criticando abertamente Bolsonaro e divulga nas redes sociais.

Um vídeo dele chamado “Bolsonaro anticristo” alcançou mais de 3 milhões de visualizações no TikTok. Na peça, ele cita passagens bíblicas, uma delas no livro de Mateus. “Porque muitos virão em meu nome, diz o senhor Jesus Cristo”. Entre os mais de 19 mil comentários, há críticas ao comentário do religioso e xingamentos. “vai ler a Bíblia..anti Cristo é vc falando do próximo”, escreveu uma mulher. “Voçe vai ser espulso e tem que ser.vou enviar sua fala ate chegar ao pastor presidente (sic)”, comentou um homem.

A Assembleia de Deus em São Paulo reagiu ao viral. Em nota, a cúpula do ministério informou que o pastor não consta em quadro de Membros e Ministros filiados à igreja” e que, por isso, “não tem procuração ou autorização para falar em nome das instituições”. Gilmar afirma que congrega na Assembleia de Deus em São Paulo, Ministério do Belém há 33 anos e diz que, apesar de nunca ter sido ordenado pastor, assume o cargo “por vocação”. “Pastorear é dom de Deus”, argumenta. “Já recebi vários convites para pastorear igrejas e não aceitei. Prego nas casas, converso com presos sobre Jesus”, explica. Este ano, ele se candidatou a deputado estadual pelo Avante, mas não foi eleito. “Gosto de política. Acho uma ferramenta poderossíma para exercer o bem”, diz.

“Se Jesus estivesse aqui hoje, o Macedo [Edir Macedo, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus], o Malafaia [Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo], esses caras todos expulsaram ele na hora. Eles não querem nada com Jesus, eles querem o dinheiro do povo”, comenta.

A reportagem procurou as convenções e igrejas citadas sobre os casos de perseguição aos pastores e lideranças evangélicas, mas não obteve retorno até a publicação.

Lula divulga carta aos evangélicos com compromissos

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou na quarta-feira (19/10) uma Carta Compromisso com os Evangélicos, no qual delineia sua posição sobre temas importantes para esse setor do eleitorado, como o papel da família, a interrupção da gravidez e a liberdade de culto.

O objetivo da campanha petista é reduzir resistências ao seu nome nesse estrato da população, no qual a campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) tem larga vantagem e vem investindo para ampliá-la com retórica moralista.

Pesquisa Datafolha realizada em 17 a 19 de outubro apontou que Bolsonaro tem 66% das intenções de votos entre os evangélicos, contra 28% de Lula. Já entre os católicos, Lula fica à frente com 58%, contra 37% de Bolsonaro.

Enquanto Lula divulgava a sua carta em um evento com representantes de Igrejas que apoiam sua candidatura, em São Paulo, a primeira-dama Michelle Bolsonaro subia ao altar de um templo evangélico, também na capital paulista, e dizia que o PT, chamado por ela de “partido das trevas”, teria como objetivo minar a atuação de Igrejas.

Outros oradores no evento com a primeira-dama afirmaram que Lula defenderia a legalização do aborto e a liberação das drogas. Michelle, que é evangélica, tornou-se figura crucial da campanha de Bolsonaro para dialogar com esse segmento e amenizar a rejeição do presidente entre as mulheres.

Compromissos de Lula

Na carta, o petista afirma que o país passa por um período em que há um “triste escândalo do uso da fé para fins eleitorais”, no qual “mentiras” passaram a ser usadas com o objetivo de provocar medo nas pessoas e “afastá-las do apoio a uma candidatura que justamente mais as defende”.

Lula diz ter “compromisso com a liberdade de culto e de religião” e promete que em seu eventual futuro governo não haverá “interferência política na prática da fé”. Ele afirma ainda que adotará políticas públicas para “fortalecer as famílias para que os nossos jovens sejam mantidos longe das drogas”.

O petista também diz que as escolas devem apoiar os pais na educação dos filhos, “respeitando os valores das famílias, sem a interferência do Estado”. Lula afirma ainda que é “pessoalmente contra o aborto” e que esse não é um tema a ser decidido pelo presidente da República, mas pelo Congresso.

O petista cita ainda que, nos oito anos que governou o país, sancionou uma alteração no Código Civil que permitiu que igrejas tivessem personalidade jurídica e editou o decreto que criou o dia para a Marcha para Jesus e o Dia Nacional dos Evangélicos.

Em diversos pontos do documento, Lula enfatiza aspectos sociais e econômicos para fazer frente à chamada pauta moral. “De nada adianta se dizer defensor da família e ao mesmo tempo destruí-la pela miséria, pelo desemprego, pelo corte das políticas sociais e de moradia popular”, afirma.

Lula já havia realizado um evento para o público evangélico no primeiro turno da campanha, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Na ocasião, o petista tentou colar em Bolsonaro a imagem de que ele seria contrário aos valores cristãos por, segundo Lula, difundir o ódio e posturas violentas.

Rejeição ao PT

Em análise publicada na DW, o cientista político Victor Araújo, pesquisador da Universidade de Zurique, analisou a trajetória do voto evangélico no PT no primeiro turno de eleições presidenciais.

A legenda conseguiu ampliar sua votação nesse segmento de 2002, quando 24,3% desse segmento declarou voto no PT, para 2006, quando essa taxa chegou a 53%. Na eleição de 2010, houve leve queda, para 44,4%, que se acentuou em 2014, quando foi de 28,5%, e 2018, de apenas 11,2%.

Araújo avalia que dois eventos ajudaram a interromper a aliança eleitoral entre evangélicos e o PT que durou até o pleito de 2010. Primeiro, o projeto da chamada lei anti-homofobia, apresentado pela então deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), que tinha como objetivo criminalizar a homofobia no país, mas foi interpretado como uma tentativa de criminalizar a prática pastoral – pastores temeram que pudessem ser presos ao se posicionar contra a homossexualidade nos cultos evangélicos.

O outro foi a lei número 12.285/2013, que dispunha sobre o atendimento obrigatório e integração de vítimas de violência sexual. Várias das lideranças evangélicas entenderam que oferecer a pílula do dia seguinte a vítimas de violência sexual seria uma tentativa disfarçada de legalizar o aborto no Brasil.

Bolsonaro também vem trabalhando há bastante tempo para manter alta a rejeição do PT nesse segmento. Em julho, ele afirmou na Marcha para Jesus em São Paulo, o maior evento evangélico do país: “Nós [cristãos] somos a maioria do país, a maioria do bem. E nessa guerra do bem contra o mal, o bem vencerá mais uma vez”, em referência ao seu adversário.

Bolsonaro foi à sua primeira marcha em 2018, ainda como candidato à Presidência e sem ter convencido os grandes líderes evangélicos do país, que só aderiram à sua campanha mais tarde. Em 2019, ele se tornou o primeiro presidente da República a participar do evento.


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