18/05/2024 - Edição 540

Especial

A banalização do mal

Publicado em 03/02/2022 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A execução do congolês Moïse Kabagambe a pauladas em um quiosque de praia no Rio de Janeiro choca a estética de quem repete que nós não somos racistas – uma ficção limpinha e cheirosa criada para garantir que tudo fique como está. O vídeo dói e, por isso, deveria ser exibido nas escolas para fomentar o debate sobre quem somos como sociedade. E garantir que as gerações mais novas não reproduzam os crimes da nossa.

Se você tem a impressão de essa cena já aconteceu antes, está correto. Com algumas variações, ela se repete, e repete, e repete, já fazendo parte da paisagem de um país definido pelo racismo em todos os níveis de suas relações sociais. A diferença é que, nos últimos anos, as agressões, que sempre ocorreram, podem ser assistidas por milhões nas telas de seus celulares.

Isso ajuda a diluir a violenta mentira do "racismo é algo que está na sua cabeça" ao passo que faz com que muitos se reconheçam no "já aconteceu algo semelhante comigo".

Não é a primeira vez que uma pessoa negra é morta ou torturada em espaços públicos. E, considerando que há muitos que se sentem à vontade de incorporar o capataz que espanca e mata negros em estabelecimentos comerciais, mas também nas delegacias e periferias, e parecem apreciar o seu trabalho de colocá-los "em seu devido lugar", não será a última.

Outras cenas com variações nos chocaram recentemente. Causaram indignação, mas não evitaram a cena seguinte. Por exemplo:

Em abril de 2021, Bruno Barros e Yan Barros, tio e sobrinho, que furtaram carne de uma unidade do supermercado Atakadão Atakarejo, em Salvador, foram encontrados mortos com sinais de tortura e marcas de tiro. Imagens deles rendidos após o furto circularam pelas redes. Os seguranças do mercado teriam sido entregues a traficantes para que fossem punidos e mortos.

Em 19 de novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas foi assassinado em uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre na véspera do Dia da Consciência Negra. Imobilizado, acabou sufocado e espancado até a morte no estacionamento por um segurança e um policial militar temporário.

Em 14 de fevereiro de 2019, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga foi morto por um segurança do supermercado Extra na mesma Barra da Tijuca do quiosque Tropicália, onde Moïse foi morto. Ele deu uma gravata e jogou seu peso sobre o jovem negro. Pessoas alertaram que Pedro estava sufocando, mas a sessão de tortura continuou. A mãe do rapaz presenciou a cena. Pedia para o segurança parar.

Em julho de 2019, um jovem negro de 17 anos foi despido, amordaçado e chicoteado por dois capatazes após tentar um furto barras de chocolate de uma unidade do supermercado Ricoy na periferia de São Paulo. O mercado disse que os seguranças eram de uma empresa terceirizada – como sempre. Como em Abu Ghraib, no Iraque, os próprios algozes gravaram as cenas.

Em julho de 2015, um homem negro de 29 anos foi linchado por moradores do Jardim São Cristóvão, em São Luís (MA). Segundo a Polícia Civil, ele havia tentado assaltar um bar, quando foi rendido, amarrado nu em um poste e agredido até a morte com socos, chutes, pedradas e garrafadas. O rapaz poderia ter sido entregue à polícia para ser devidamente processado. Mas o pelourinho, que canta alto na alma de parte dos brasileiros, falou mais alto.

Em agosto de 2009, Januário Alves de Santana, acusado de estar roubando um automóvel em uma loja do Carrefour, em Osasco (SP), foi submetido a uma sessão de tortura. "O que você fazia dentro do EcoSport, ladrão?", perguntaram, enquanto cinco pessoas davam chutes, murros, coronhadas, na sua cabeça, na sua boca. O carro era dele, comprado em 72 vezes. Na cabeça dos seguranças do supermercado, um negro não poderia ter carro de bacana branco.

Cada negro e negra deste país tem mais histórias como essa para contar. E sabem que os espancamentos e assassinatos têm o mesmo DNA do racismo cotidiano que, muitos de nós, consideramos inofensivo. Ou pior: nem consideramos como racismo.

Seria ótimo para a consciência dos brasileiros se os torturadores e assassinos fossem apenas demoníacas. Porque assim, o mal, estaria justificado e longe de nós. Mas são nossos amigos, colegas de trabalho, familiares ou nós mesmos, que reconstruímos diariamente em prática o sistema que leva até a normalização dessas torturas e mortes. Um cidadão comum pode se tornar um Adolf Eichmann apesar de achar que não.

Sem demérito para outras pautas sociais e políticas, isso seria razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas do país em protesto, como estão fazendo movimentos negros em várias cidades do país. Mas, como já disse aqui, a morte e a tortura de pessoas negras pelas mãos do Estado, da iniciativa privada, de milicianos ou de outros cidadãos não vale o arranhão deixado na caçarola por uma noite de bateção de panelas. Esse racismo não é um acidente, mas parte de um projeto que é violento com a população negra e pobre em nome da manutenção de nossos privilégios.

Daí, quando professores decidem discutir, na sala de aula, a razão pela qual jovens negros são as principais vítimas entre milhares de mortes violentas anuais, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, defensores de uma Escola Sem Cérebro ameaçam processar e morder, dizendo que isso é ser "ideológico".

Na opinião de uma parte considerável, não há racismo no Brasil. Apenas "coincidência" e "azar". Também não há genocídio de jovens pobres e negros pelas mãos da polícia, do tráfico, da milícia. "Eles é que estão no lugar errado e na hora errada, pois os 'homens de bem' seguem a lei e nada acontece com eles."

Já perguntei aqui antes, mas vale repetir: Como querer construir um futuro se a maioria já nem se lembra de Ágatha, João Pedro e Marcos Vinícius, crianças cujas mortes nos envergonharam no passado recente?

Ou contamos essas histórias e mostramos essas imagens até que elas entrem nos ossos de nossas crianças para que elas conheçam o país que precisarão transformar ou a tortura e a morte de pessoas negras continuarão acontecendo num Brasil que as considera uma necessária tarefa cotidiana de sua reprodução social.

Assassinato não pode ficar impune

Evidentemente, a melhor resposta que se pode dar à barbárie é não deixar que ela permaneça impune. É a sensação de impunidade e a crença de que tudo vai ficar por isso mesmo que criam condições para que essas aberrações se perpetuem.

Mas isso é apenas parte da questão. É fundamental que se reflita sobre a situação de anomalia que conduz a esses crimes bárbaros, num bairro nobre da segunda maior cidade do país e diante de câmeras de segurança. Infelizmente, não se pode dizer que seja um ponto fora da curva. Como mostrou reportagem do GLOBO, o assassinato de Moïse é o terceiro caso de morte por espancamento na orla da Barra em menos de um mês (leia abaixo).

Não menos preocupantes são as tentativas de linchamento de suspeitos de furtos nas praias da Zona Sul — num intervalo de apenas três semanas, foram contabilizadas ao menos 12. Essas distorções crescem na ausência do Estado. Não se trata de fenômeno regional. Em abril do ano passado, dois suspeitos de furtar carne num supermercado de Salvador (BA) foram entregues por seguranças ao tráfico para serem assassinados. Eles haviam implorado que se chamasse a polícia.

São situações que não condizem com o Estado Democrático de Direito. A sociedade deve rechaçar de forma veemente esses crimes. Sem isso, a pena será normalizar a barbárie.

Tentativas de linchamentos em praias do Rio já chegam a 12 em três semanas

Por volta de 17h15 do último dia 26, cinco guardas municipais do Grupamento de Operações Especiais (GOE) participavam da Operação Verão patrulhando o calçadão na altura do Posto 8 de Ipanema. Eles foram acionados para socorrer Cleberson da Silva Oliveira, de 20 anos, que estava sendo agredido na areia com socos, chutes e até com paus de guarda-sol após ser supostamente flagrado furtando o celular de um banhista. Em três semanas, o rapaz foi o décimo segundo suspeito de praticar crimes a ser vítima de tentativa de linchamentos na orla da Zona Sul do Rio.

— Corremos até ele enquanto uma multidão de mais de 50 pessoas o cercava e o agredia. Quando o alcançamos, os populares se dispersaram e conseguimos resgatá-lo já desacordado e bastante machucado, com cortes na cabeça, hematomas e escoriações nos braços, pernas e tronco. Em 28 anos de profissão, nunca tinha me deparado com tamanha selvageria — conta o líder operacional da Guarda Municipal Elias Pedro da Silva, que participou da ocorrência.

Sem agressor identificado

Cleberson foi levado pelos agentes para o Hospital Municipal Miguel Couto, na Gávea, onde foi atendido por um médico e submetido a tomografia de crânio, tórax e abdômen, sendo liberado nove horas depois. Na 14ª DP (Leblon), foi feito um registro de ocorrência em que ele figura como vítima de lesão corporal provocada por pauladas, e os guardas, como testemunhas. A eles, o rapaz, que já foi preso em flagrante por roubo e furto e responde por tráfico de drogas, se disse inocente e contou ter tido até os pertences levados no momento da confusão. Nenhuma vítima do suposto crime cometido por ele compareceu até agora à delegacia, nem os agressores foram identificados.

A Polícia Civil informou que esse e todos os casos registrados são investigados visando à identificação dos autores dos crimes. “Os agentes coletam informações, ouvem testemunhas e analisam imagens de câmeras instaladas em cada localidade para determinar as circunstâncias de cada ação”, disse a corporação, em nota.

Um levantamento feito pelo GLOBO cruzando dados da própria Guarda Municipal, das polícias Civil e Militar, do Corpo de Bombeiros e ainda informações de vídeos postados em redes sociais mostra que, de 5 a 26 de janeiro, foram praticados pelo menos cinco crimes semelhantes em Ipanema, um no Arpoador, três em Copacabana e três no Leme.

Para José de Souza Martins, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de “Linchamentos — A justiça popular no Brasil”, a maior pesquisa feita sobre o tema no país, os casos estão ligados a um objetivo comum de supostamente reparar uma injustiça:

— O linchamento é um crime de ódio social, que acontece na multidão, com um ajuntamento de indivíduos dispostos a fazer justiça, no sentido de ser reparatório; não é do bem, mas é supostamente praticado em nome da sociedade indefesa. Nessas situações, a população vai à praia, no período de férias dos filhos, para tentar relaxar diante de um momento tão difícil da pandemia, e vem alguém, se aproveitando desse cenário de distração, e subtrai os bens. Então, se intui haver uma concepção de injustiça, o que propicia a prática dessa violência com sangue, que não tem por objetivo matar, mas também não tem o de poupar e pode terminar com a eliminação da pessoa.

Responsável pela página do Instagram Zona Sul Alerta, o publicitário e vigia predial Leandro Pereira recebeu e postou ao menos quatro vídeos de suspeitos sendo espancados na última semana na região. Apenas no Leme, foram dois casos flagrados em um intervalo de dez horas, na última quarta-feira, dia 26. Por volta de 3h, um rapaz foi agredido na Avenida Atlântica por 12 homens, com chutes, socos e capacetes, e socorrido, minutos depois, por militares do programa Bairro Seguro. Já às 12h45, Pedro Ivo Martins, de 18 anos, foi espancado por mais de 20 banhistas na areia e atendido por uma ambulância do 3º Grupamento Marítimo (GMAR).

— Criei o perfil no início de 2021 com a intenção apenas de mostrar notícias da Zona Sul, mas as ocorrências policiais tomaram mais visibilidade e acabou sendo natural receber informações com esse tema — conta.

Entre as publicações, há um vídeo em que um suspeito é espancado em um canteiro da Avenida Vieira Souto, no Posto 9, em Ipanema, no dia 23. Nas imagens, filmadas de um prédio, é possível ver pelo menos 30 pessoas em volta do rapaz e ouvir as agressões, que acontecem com paus. Nos comentários da postagem, alguns internautas comemoram: “Bela massagem. Agora vai pensar duas vezes se vai roubar ou não”, escreveu um homem. “População tá de saco cheio de não poder nem mais curtir uma praia sem ter medo”, observou uma mulher.

Professor de Direito Penal da PUC-Rio, o advogado Sérgio Chastinet Duarte pondera que quem participa desse tipo de agressão a suspeitos de furtos ou roubos de celular ou ainda de outros crimes, ao menos, assume o risco de matá-los.

— O ordenamento jurídico não admite fazer justiça com as próprias mãos, salvo nas situações excepcionalíssimas de legítima defesa ou defesa da posse, que não se aplicam a esses casos. O chamado linchamento é uma prática criminosa para todos os que participam materialmente e até para quem o instiga. O fato de supostamente a vítima ter praticado algum crime não isenta quem participa do linchamento de responsabilidade criminal, dado que configura homicídio ou tentativa de homicídio qualificado, conforme a vítima sobreviva ou não — explica.

Mais roubos no verão

De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública, historicamente, os roubos e furtos de celular na Zona Sul disparam nos meses de verão. Enquanto de julho a setembro de 2021 foram 282 roubos e 901 furtos nas áreas do 19º BPM (Copacabana) e do 23º BPM (Leblon), entre outubro e dezembro do mesmo ano, foram 317 e 1.078 — um aumento no trimestre de 12% e 19%, respectivamente, com a chegada do calor.

Na última semana, o secretário da Polícia Militar, coronel Luiz Henrique Pires, chegou a admitir que realiza quase uma operação de guerra para garantir a segurança da população durante o lazer nas praias. Em nota, a corporação informou que coíbe toda e qualquer prática delituosa e que o efetivo está atento às movimentações atípicas nas areias, como princípios de tumulto e desentendimentos, e que instrui que as pessoas não se deixem tomar por atitudes intempestivas e sempre acionem os PMs ou liguem para 190.

A Guarda Municipal informou que, “diante de ocorrências de linchamentos, a primeira e principal atitude é cessar a agressão e resguardar a integridade das vítimas”. Acrescentou que os agressores, se identificados, são levados para a delegacia. “Já às vítimas os agentes prestam os primeiros socorros e os conduzem para hospitais. Se forem suspeitos, após o atendimento médico, são conduzidos para a delegacia”, acrescentou.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *