18/05/2024 - Edição 540

Especial

A banalidade do mal

Publicado em 28/09/2018 12:00 -

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“Estou assustado. Muito assustado”. A manifestação do ator Anderson Lima resume uma sensação que permeia parte da sociedade brasileira em meio a proliferação da violência física e, principalmente, moral, promovida pela extrema direita.

O medo de Anderson teve como gatilho a agressão que sofreu no último dia 26, em Campo Grande (MS), quando, parado em um sinal na Avenida Salgado Filho, foi surpreendido por um eleitor de Jair Bolsonaro (PSL) que desembarcou do banco de carona de um veículo, arrancou violentamente um cartaz com a hashtag #EleNão – que Anderson havia colado no vidro da sua Kombi – deu um soco no vidro e avisou: “Ele sim! Para limpar o Brasil de hippie nojento igual a você”.

Anderson diz ter ficado paralisado naquele momento. “Percebi um carro parado ao meu lado, no sinal, e vi quando um rapaz desembarcou e veio na direção da Kombi. Nunca imaginei que iria passar pelo que passei. Fiquei estático, tentando processar a violência e, principalmente, o que havia por detrás do aviso dele. Rodei todo o Brasil com minha Kombi, que é caracterizada com desenhos de circo, alegria, levando arte aos locais mais remotos e nunca havia passado por isso. Ele me classificou como um ‘hippie sujo’ e considerou que isso seria justificativa para me atacar”.

Após a agressão, Anderson seguiu para o teatro, ainda abalado, e ouviu de outras pessoas situações semelhantes. Um amigo que, com um camisa estampada com um arco íris, foi chamado de “bicha desgraçada” em plena rua, outro que se sente temeroso em expressar seu repúdio ao preconceito.

O caso de Anderson não é isolado. O jornalista Guilherme Maia (pseudônimo, a pedido da fonte), que atua em um site de notícias de Mato Grosso do Sul, também foi alvo de ataques. Ele conta que, em seu plantão no último dia 23, publicou uma reportagem da Agência Brasil, desfavorável a Bolsonaro. Por um lapso, seu nome figurou como autor da matéria por cerca de uma hora. Foi o suficiente para que os defensores do candidato localizassem suas redes sociais e espalhassem insultos.

“Pegaram fotos minhas, da minha mãe. Recebi ameaças. Foi assustador, porque alguns dos agressores são da mesma cidade que eu. É um momento assustador, as pessoas se sentem intimidadas pelo discurso de ódio, que muitas vezes se torna real. É difícil entender como um país que passou pelas tragédias que passou, como censura e ditadura militar, conseguiu chegar a esse ponto de tanto ódio, de desrespeito a livre-expressão. Eles creem que a força é maior que a lei, e contra isso não há segurança. Eu temo não só pela minha integridade física, mas também psicológica. Desfiz amizades virtuais que apoiam Bolsonaro também para preservar minha saúde emocional”, disse o jornalista.

Diante do caso de Anderson, resolvi perguntar em minha timeline no Facebook se as pessoas de meu círculo de amizades sentiam-se temerosas em sofrer uma agressão física ao, por exemplo, ostentar uma camisa vermelha nas ruas, ao se dizerem “de esquerda” ou, no caso dos muitos amigos gays que cultivei, expressarem algum tipo de afetividade em público. O resultado foi revelador. Dos 72 votos na enquete – que até o fechamento desta reportagem estava no ar há pouco mais de 24 horas – 81% confirmaram o temor.

Corpos Medrosos

A produção do medo é um elemento saudável, já que, ao gerar a percepção de algo que possa ser uma ameaça, permite, também, a construção de manejos e estratégias para enfrentar este risco, diz o médico sanitarista Emerson Elias Merhy, professor titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e livre-docente pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No entanto, prossegue, é preciso diferenciar este “medo saudável” daquele que leva à construção de um “corpo medroso”, um corpo tão dominado pelo pânico que se paralisa, se submete, que passa a aceitar o poder da ameaça a tal ponto que se desvitaliza.

“O corpo medroso é uma construção que em diferentes civilizações sempre foi uma grande estratégia de governantes que exerciam um poder violento sobre o corpo do outro, o poder soberano, que é a construção de um poder que dita sobre a vida e morte do outro”, explica, citando como exemplo o poder soberano do cidadão grego sobre seu escravo, que não era um cidadão, portanto não era humano. “Criar no escravo não só o medo como o corpo medroso era uma estratégia de governo fundamental. Vemos este processo se repetindo em diferentes lógicas de organização societárias e, no Brasil de hoje, especialmente na extrema direita”.

Para Merhy, a estratégia é paralisar pela ameaça física, pela destruição exemplar de alguns para que os outros anulem o próprio desejo de se contrapor a este poder soberano violento e autoritário. “A morte de Marielle Franco, o assassinato de várias lideranças, a violência contra gays nas ruas, o assassinato de travestis e de homossexuais, as surras que são dadas em pessoas que pensam de forma diferente fazem parte desta estratégia da extrema direita”, afirma.

O combate a esta sensação de medo é necessário, sustenta Merhy. “Se você não é um corpo medroso, vai montar estratégias para se manifestar sem ser destruído. Vai participar de manifestações ao lado de muitas pessoas, e medir melhor a importância daquilo que você vai fazer na produção e consolidação de novas pessoas que possam perceber esta extrema direita como, de fato, algo que não é do interesse da maioria. Portanto, uma coisa é ter medo, outra é ser um corpo medroso.”

O sociólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Aparecido Francisco dos Reis concorda. Ele afirma também que uma das características de governos totalitários é a criação de milícias para combater os opositores de forma agressiva.

“Bolsonaro e seu vice têm uma postura bastante agressiva, preconceituosa, de retirada de direitos fundamentais. Aqui há professoras e alunos que querem ir no protesto de sábado (referindo-se ao protesto deste sábado, dia 29, em todo o país) e têm medo. Cria-se um clima de insegurança muito grande”.

Reis afirma, no entanto, que, apesar deste medo ser justificado, ele não deve ser um fator que paralise o cidadão. “Devemos ter cuidado, sim, mas não devemos ter medo. Senão, as mulheres, LGBT’S e demais movimentos sociais ficarão acuados. Devemos enfrentar esta situação dentro do que a civilidade nos permite. É preciso denunciar. Não podemos ficar acuados em casa com mede de nos manifestar”.

Ele lembra que a violência como arma política é própria de regimes totalitários – que podem ocorrer tanto à direita quanto à esquerda – e tem como objetivo cercear a existência do “outro”. “É a descrença total nos valores da democracia, da liberdade de opinião e expressão, da diversidade e da pluralidade. Uma postura totalitária, de combate à diversidade. Isso não pode ocorrer em uma democracia. A democracia se caracteriza exatamente pela pluralidade”.

Para o sociólogo, o mais assustador neste processo é que existem pessoas que embarquem neste tipo de pensamento, mas, reforça, este receio não deve ser potente a ponto de impedir a livre manifestação de ideias. “É preciso enfrentar esta situação, não se pode fingir que ela não está acontecendo, imaginar que não temos nada a ver com ela. É preciso defender a democracia, pois o que está havendo hoje é um assalto a ela, um assalto à liberdade e a tudo o que acreditamos compor aquilo que a gente chama de civilidade”.

O cientista político Bruno Lima Rocha afirma que a intimidação difusa, ou seja, o medo generalizado diante da ameaça de agressão é o reflexo imediato da presença na extrema direita nas eleições. “É parte da liturgia do fascismo a violência e a covardia e os efeitos podem ser diversos. Listo dois. Um, o medo de se expressar publicamente para além das redes sociais, algo que já ocorre em países com muita violência política, como na Colômbia. Outro, a iniciativa de autodefesa dos movimentos populares, visto que podem haver agressões em todos os níveis e nos momentos mais inesperados."

Rocha afirma que é preciso ter cuidado. “Seria prudente estar sempre em contato com grupos de apoio e cuidar os ambientes físicos dos debates políticos. A ameaça fascista é uma constante, mas sempre em condição de covardia, pegando de surpresa a vítima ou em superioridade numérica. O medo não pode paralisar a cidadania e interromper o protagonismo das pessoas. O fascismo é covarde e é fácil de ser derrotado se a militância assume o desafio em todos os níveis."

Rocha considera que a linha que separava o tolerável do intolerável foi apagada no Brasil, e que posturas totalitárias, que proliferavam no ambiente privado, hoje ocorre em público, sem restrições.

“Não creio que Bolsonaro apenas crie em si o ódio, mas o normaliza, passa um verniz de aceitabilidade no ódio ‘comum’, represado”, analisa o jornalista e doutorando em Direitos Humanos Raphael Tsavkko Garcia. “Não é que o Brasil não fosse já intolerante e violento, mas toda e qualquer amarra foi perdida, comportas foram arrombadas pela força da torrente de ódio que o Bolsonaro e seus apoiadores promoveram e promovem. O medo de muitos é que o que era ruim tenha ficado pior e que piore ainda mais”, complementa.

Segundo Garcia, o receio de que o ódio trazido ou tornado legítimo por Bolsonaro acabe por se alastrar e não possa ser contido, que gays sejam forçados a se esconder, que minorias de todo tipo sejam forçadas a olhar por sobre os ombros mais do que já fazem, é real. “Anos de luta por inclusão e visibilidade correm perigo”, diz.

Apesar do cenário sombrio, o ator Anderson Lima se recusa a ser um “corpo medroso” e, mesmo diante do receito de ser alvo de novo ataque, diz que não vai se acovardar. “Olha eu vou colocar outros cartazes na minha Kombi e encarar isso. Se eu for agredido novamente vou procurar a polícia para me resguardar”, assegura.

Violência como arma

Casos de violência cometidos por seguidores de Jair Bolsonaro têm pululado pelo país. O mais emblemático e recente ocorreu contra uma das administradoras do grupo “Mulheres Unidas contra o Bolsonaro”, Maria Tuca Santiago, que foi agredida na noite do último dia 24 no Rio de Janeiro, por três homens armados com revólver. Ela teve seu celular roubado e foi agredida com socos e coronhadas.

Em sua mais recente publicação no Facebook, a ativista se disse abalada.

Outro recente caso de intolerância e violência, desta vez moral, se deu em Santa Maria (RS), quando uma mulher foi expulsa de um estabelecimento comercial por estar vestida com uma camisa estampada com o rosto e o nome do revolucionário argentino Enesto Che Guevara.

Também de cunho moral e ético foi a agressão sofrida por pacientes do Hospital Vittá, em Goiânia (GO), que foram alertados por uma funcionária – vestida com a camiseta de Bolsonaro – que o ginecologista Cláudio Coelho de Vasconcelos se nega a atender quem não vote no candidato. Segundo ela (assista ao vídeo abaixo) quem não vota no candidato nem deve entrar na sala, pois o médico estaria “muito estressado” e já teria expulsado pacientes por esse motivo.

Para o psicólogo-sanitarista Túlio Batista Franco, da Universidade Federal Fluminense (UFF), do ponto de vista da psicanálise as agressões promovidas no âmbito da polarização política apontam para uma ruptura com o estatuto normativo que rege a vida em sociedade, ou seja, as pessoas começam a agir pelos seus impulsos primários de extermínio do outro divergente, contraditório. Uma forma de agir autocentrada, um retorno à primeira infância.

“O agressor, nestes casos, é antes de tudo um ser infantilizado, vivendo uma etapa pré-civilizatória do seu desenvolvimento sociocultural, pois ainda não incorporou os valores da cultura, os quais regem as relações em sociedade, os limites para o respeito entre eu e o outro. O agressor é violento porque é fraco. Para ele existe apenas o eu, onde o outro é desqualificado. Regras de convivência passam a ser precárias. É assim que podemos entender as cada vez mais frequentes agressões que alguns têm perpetrado contra pessoas que pensam ou agem de forma não convencional, o diferente para ele”, explica o pesquisador, que tem na área da saúde pública seu campo de atuação.

Para Franco, a situação se torna mais aguda no atual momento porque a grande mídia tem funcionado como um dispositivo propagador do ódio, que vem sendo reforçado por lideranças políticas e sociais, que difundem uma sociedade ariana, asséptica, e a condenação a comportamentos, grupos populacionais e pensamentos divergentes. “Este discurso e os atos de lideranças conservadoras têm sido assimilados como autorização para a violência, ou seja, aquele que traz em si as marcas infantis da intolerância, se veem autorizados a perpetrar o ato violento, de morte do outro. Morte física ou por intimidação psíquica, que agencia no sujeito o medo de se expressar, uma forma brutal de morte subjetiva”.

O ensaísta e professor da Universidade Tulane, Idelber Avelar, afirma que o Brasil vive uma espiral de intolerância muito perigosa. “O bolsonarismo tem expressado essa intolerância com uma série de práticas bastante odiosas, e tem também, ocasionalmente, sido objeto delas, como no episódio da facada no candidato. Trata-se de uma compreensão do processo político no qual o adversário é visto como um sujeito a ser eliminado, aniquilado, extirpado”.

Avelar argumenta que, para desarmar essa bomba-relógio, não é suficiente denunciar a intolerância expressa nesses atos, embora isso seja necessário. “É preciso entender como chegamos aqui, o que essa intolerância expressa, quais afetos ela mobiliza, em quais fenômenos sociais ela está enraizada. Esse é o nosso grande desafio hoje: denunciar a agressividade e a intolerância sempre que elas aconteçam sem perder de vista o trabalho de pensamento que é necessário fazer”.

Daniel Estevão Ramos de Miranda, cientista político e docente do curso de Ciências Sociais da UFMS aponta alguns dos motivos que levaram a exacerbação da violência e da intolerância no país. Para ele, o problema é fruto de uma confusão em relação a conceitos como liberdade de expressão e direitos humanos.

A Constituição de 1988 consagrou uma concepção de sociedade igualitária e anti-autoritária (como reação à Ditadura então recém acabada). Essa constituição não se formou no vácuo, obviamente, antes foi antecedida e sucedida por inúmeras mobilizações, organizações, pressões etc. de diversos grupos, historicamente excluídos (negros, mulheres, gays, indígenas etc.) que foram se projetando na cena pública brasileira e questionando nossa ordem social autoritária  e hierárquica ('você sabe com que está falando?'), racialmente segmentada, mas auto-iludida com uma imagem de "democracia racial" ('não sou racista, tenho até amigos negros'), machista ('bela, recatada e do lar'), homofóbica ('não tenho nada contra gays, mas porque se manifestar na rua?') etc.

“Assim, quando tais grupos, e sua sistemática discriminação ou desvalorização, passaram a ser ativamente mobilizados/questionados na cena pública, denunciando sua condição precária e degradante, o universo simbólico cotidiano teve que se refazer: na medida em que negros já não mais aceitam piadas racistas e nem se enquadrar automaticamente em padrões de beleza brancas; na medida em que gays saem de mãos dadas ou mostram carinho em público; na medida em que as mulheres denunciam seus agressores etc., as pessoas em geral são forçadas, querendo ou não, a repensar sua própria formação educacional e moral (em termos de valores) e seu lugar na sociedade. Enquanto uns refletem e compreendem o que está sendo discutido, outras pessoas se colocam como vítimas da ‘ditadura do politicamente correto’, argumenta o sociólogo.

Essa fórmula da "ditadura do politicamente correto" é a via de sobrevivência de opiniões e atitudes já não mais aceitáveis por aqueles grupos sistematicamente discriminados. Assim, quando emergem lideranças (Bolsonaro, Magno Malta, Malafaia etc.) e "artistas" (Alexandre Frota, Danilo Gentili) que fazem piadas, comentários, incitações machistas, raciais etc., são elogiados e seguidos por essas pessoas justamente porque são "corajosas", representam a "resistência" à ditadura do "politicamente correto". “Manifestar-se abertamente homofóbico ou machista torna-se, assim, um sinal de 'coragem' (o fulano "mitou", "lacrou" etc.) e de 'autenticidade' ("falo o que penso"). Preconceito como virtude”, explica Miranda

Dessa forma, os direitos humanos, como plataforma de projeção política de demandas antidiscriminatórias, passam a ser atacados como "coisa de esquerda" ou "de bandido", "comunista" etc. Denunciar o "politicamente correto" e o "comunismo" passou a ser a via de sobrevivência, resistência e afirmação do preconceito e discriminação. “O que nos leva a um dos grandes problemas da democracia: quais os limites da liberdade de expressão? Defender ideias abertamente anti-democráticas e frontalmente contra os valores básicos inscritos na Constituição de 88 deve ser permitido? Em minha opinião, não: a defesa e manifestação pública de ideias e valores anti-democráticos deve ser severamente combatida, mas dentro dos marcos legais (ampla defesa, contraditório) e de forma tão pública quanto possível, seja para criarmos um processo pedagógico ('não seja ou pelo menos não manifeste publicamente seu preconceito'), seja para evitarmos que a boa intenção de limitar discursos de ódio conduza o país à censura”, sustenta o sociólogo.

Os casos de violência física ao longo desta campanha eleitoral, argumenta, são, em certa medida, resultantes desse problema mal resolvido da liberdade de expressão. “Se se permite, e até elogia-se, os fulanos que tem a ‘coragem’ de ir contra a ‘ditadura do politicamente correto’, então não demora muito para alguém ‘agir’, fazer ‘o que tem que ser feito’, ‘cortar o mal pela raiz’ etc. etc. Isto é, sair dos grupos de whatsapp e Facebook e ir para a violência pura e simples. O pior é que, no cenário atual, haverá ainda o discurso de culpar a vítima: apanhou porque ‘mereceu’, ‘se não tivesse provocado…’ etc.”.

A vida em comunidade e a banalidade do mal

O sociólogo David Victor-Emmanuel Tauro, professor da UFMS, considera que a política é a vida em comunidade, onde as pessoas precisam conviver com diferentes. “É preciso preservar valores ligados ao respeito para com comunidades outras, para com o outro. É isso que nos enriquece, a diferença e não a similaridade. A similaridade traz uma mentalidade de horda, de massa impensante. É preocupante. As pessoas estão começando a ter medo onde deveriam sentir prazer”.

Se os poderes constituídos falham quando deveriam assumir suas responsabilidades a tendência é que as pessoas assumam estas responsabilidades, com tendências irreversíveis, afirma. “A vida em comum exige uma resposta coletiva em defesa de valores como a liberdade. O que está em jogo é a nossa liberdade, nosso direito de andar livremente nas ruas, de nos reunirmos, de andar como quisermos, de mãos dadas, ou camisas vermelhas ou com cartazes. São direitos constitucionais”.

O que está em jogo, de fato, são décadas de conquistas sociais que estabelecem a legitimidade da diferença e, ao mesmo tempo, a garantia cidadã ao outro. “A democracia é para todos”, é “como um ser vivo que precisa ser defendido ativamente”, diz Kai Michael Kenkel, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, em recente artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil.

“Quando você vive com antenas muito bem desenvolvidas para o renascimento da intolerância e do fascismo, o alarme não poderia soar mais claramente que no caso desse homem (Bolsonaro) e seus apoiadores. É só substituir LGBT, negro e mulher por ‘judeu’ e estamos tão claramente em 1933. O paralelo é de extrema aplicabilidade sim. Os campos de concentração também começaram com palavras. E me desculpem dizer, mas a democracia brasileira–nas cabeças da grande massa das pessoas–ainda é muito frágil para se defender contra esse ataque. Não que seja, no momento, tão mais firme em outro lugar- está enfraquecendo no mundo inteiro”, diz Kenkel.

Mas como viver em sociedade, com a possibilidade da diferença, da aceitação do outro diante de discursos tão beligerantes? Para Kenkel, o paradoxo da tolerância proposto pelo filósofo Karl Popper em seu livro “The Open Society and Its Enemies” é a chave de tudo, e por isso não podemos ser tolerantes com a intolerância. “Porque sem resistência, a intolerância sufoca a tolerância–ela é o caminho de menor resistência para a mente simples”.

De fato, o Brasil de hoje seria um tremendo campo de pesquisa para Hannah Arendt (1906-1975), uma das intelectuais que melhor compreenderam a cooptação do cidadão comum pelas dinâmicas do totalitarismo. Filósofa alemã de origem judaica, Arendt testemunhou o mal concreto do nazismo e fez do totalitarismo o objeto de sua investigação em diversas obras.

A resolução de Arendt sobre a “banalidade do mal” – suscitada pela filósofa após observar o julgamento de Adolf Eichmann, responsável pela morte de milhares de judeus durante o regime nazista – nos aponta que o totalitarismo faz uso da incapacidade de um pensamento aprofundado e de autorreflexão entre seus adeptos em relação a suas responsabilidades diante do mal. Este posicionamento irrefletido em apoio ao totalitarismo foi analisado por Lucas Eduardo Silveira de Souza – mestrando em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) – em recente artigo publicado no Justificando.

Diz ele: “Não se trata de admitir que o Brasil atual e a Alemanha totalitarista são a mesma coisa, o que a mim pareceria, de fato, forçar a mão da análise. O elo entre a sociedade totalitária descrita por Arendt e os nossos tempos não está na presença de campos de concentração ou na perseguição oficial a judeus, mas na degradação da empatia social e na naturalização da violência. A banalização do mal ganha nuances novas e se torna perceptível em praça pública quando discursos de ódio são aplaudidos inofensivamente por milhares de quaisquer uns.”

Estes “quaisquer uns” são os mesmos que proliferam nas redes sociais inundando as timelines com ofensas, memes e retórica vazia. São os mesmos que esmurraram o carro de Anderson Lima, que assediaram moralmente o jornalista Guilherme Maia, que agrediram covardemente a ativista Maria Tuca Santiago. São os mesmos que insistem em propagar o ódio e a homogeneização social.

Encontrei poucas formas mais convincentes de encerrar esta reportagem do que as palavras de Kai Kenkel, no artigo já citado aqui:

“Então, se você apoia ele, ou aceita ele sabendo o que ele representa como consequências vividas na pele e nos ossos de seus concidadãos que são de minorias, nossa divergência não é só política ou de discurso, mas do mais profundo nível moral.

Para quem ainda enxerga algum mal maior que o Bolsonaro, parem para pensar. Os alemães em 1933 também estavam prontos para aceitar o que eles achavam que era o mal menor, e foram totalmente enganados porque era mais fácil seguir o discurso sedutor do que pensar para si. Ele é o mal maior.

Parem de banalizar esse fenômeno e pensar só em vocês mesmos, e pensem nas consequências para o nosso país e todas as pessoas que vivem nele. É seu dever de ser humano decente".


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