18/05/2024 - Edição 540

Especial

10 ANOS DE JUNHO DE 2013

O mês que poderia ter mudado o Brasil

Publicado em 09/06/2023 11:46 - Jean-Philip Struck, Bruno Lupion e Edison Veiga (DW), Bianca Muniz, Rafael Oliveira (Agência Pública) – Edição Semana On

Divulgação Midia Ninja / Agência Pública

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Em junho de 2013, um movimento iniciado para protestar contra tarifas do transporte público explodiu após forte repressão policial, ganhando contornos de convulsão social em todo o Brasil e provocando consequências políticas que ainda são sentidas. Confira a cronologia.

Antecedentes: agosto de 2012 a maio de 2013

Protestos contra o aumento de tarifas no transporte público eclodem em Natal (RN), Porto Alegre (RS), Goiânia (GO) e Rio de Janeiro (RJ). Na capital do Rio Grande do Norte, o movimento, chamado de “Revolta do Busão” e que chegou a bloquear avenidas e rodovias, é bem-sucedido, levando a Câmara Municipal a revogar o aumento em setembro de 2012.

2 de junho de 2013 – Aumento de tarifas entra em vigor em São Paulo

Dez dias após a prefeitura e o governo de São Paulo anunciarem um reajuste de 20 centavos nas passagens de ônibus, trens e metrô, entra em vigor a nova tarifa de R$ 3,20. O índice de aumento foi de 6,7%.

3 de junho – Primeira manifestação em São Paulo

Um dia após o aumento entrar em vigor, cerca de cem manifestantes bloqueiam a Estrada do M’Boi Mirim, periferia de São Paulo. Essa primeira manifestação não conta com convocações feitas pelas redes sociais. Parte dos participantes são moradores da região. O ato recebe cobertura mínima da imprensa.

A organização coube ao braço paulistano do Movimento Passe Livre (MPL), um movimento descentralizado e sem liderança clara lançado em 2005 no Fórum Social Mundial em Porto Alegre, e que tinha como inspiração protestos que ocorreram em Salvador e Florianópolis na primeira metade dos anos 2000. Com a bandeira da gratuidade no transporte público, o MPL paulistano já tinha realizado algumas manifestações em 2011. Seus membros eram ligados à esquerda, mas o movimento se definia como “apartidário” e “independente”.

6 e 7 de junho – Movimento ganha tração em São Paulo

A segunda manifestação do MPL marca uma mudança de tática: o protesto começa com uma concentração na região central de São Paulo, em frente ao Theatro Municipal, e segue para a Avenida Paulista. Algumas centenas de manifestantes bloqueiam todas as vias da avenida. Há registro de depredação da entrada de uma estação de metrô, portas de um shopping e bancas de jornais. Quinze pessoas são detidas após intervenção da PM, que fez uso de gás lacrimogênio e balas de borracha.

Também entram em cena as convocações do MPL por meio das redes sociais. Esse tipo de convocação já tinha antecedentes no Brasil em 2011, com o “Churrascão da Gente Diferenciada”, “A Marcha das Vadias” e a “Marcha da Maconha”, que fizeram uso das redes sociais para atrair diretamente participantes com princípios ou bandeiras semelhantes.

No exterior, convocações por redes sociais ou fóruns de internet já haviam sido usadas em 2011 por manifestantes da Primavera Árabe (Oriente Médio e Norte da África), do Occupy Wall Street (EUA) e do Movimiento 15-M (Espanha), além de protestos contra os resultados das eleições russas.

No dia 7 de junho, um novo protesto convocado pelo MPL, com concentração no Largo da Batata, resulta no bloqueio da marginal Pinheiros, uma das artérias viárias da capital, e em uma nova marcha até a Avenida Paulista. Duas mil pessoas participam da manifestação. A PM volta a usar gás lacrimogênio. No protesto, manifestantes entoam gritos como “Se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”.

11 de junho – “Black blocs” passam a receber atenção

O terceiro grande protesto na região central de São Paulo atrai 5 mil pessoas, que se deslocam da Avenida Paulista rumo ao terminal parque D. Pedro II. Parte dos manifestantes empunha bandeiras do movimento anarquista, e de alguns pequenos partidos políticos de esquerda, como o PSTU. Alguns jornalistas que acompanham o protesto são hostilizados.

A marcha principal acaba após a Tropa de Choque da PM, que já esperava no parque D. Pedro, intervir violentamente e entrar em confronto com manifestantes encapuzados. Manifestantes pacíficos gritam palavras de ordem como “sem violência!”. Outros participantes seguem para a Praça da Sé e Avenida Paulista, com registro de confronto com a PM, que volta a reprimir o protesto com violência, usando balas de borracha e gás lacrimogênio.

No dia seguinte, o termo “black bloc” começa a aparecer na imprensa para descrever os manifestantes encapuzados e desgarrados da massa principal que promovem enfrentamento com as forças de segurança. O termo descreve uma tática de confronto associada a movimentos anarquistas e que começou a se disseminar na Alemanha Ocidental nos anos 1980.

O bloqueio de vias e os atos de enfrentamento com a polícia, que gera quebra-quebra e danos ao patrimônio público, provocam uma reação hostil de comentaristas e veículos de imprensa.  “A grande maioria dos manifestantes são filhos de classe média. Ali não havia pobres que precisassem dos R$ 0,20. Os mais pobres ali, eram os policiais apedrejados que ganham muito mal”, disse o comentarista Arnaldo Jabor no Jornal da Globo na noite de 12 de junho.

As fichas dos presos naquela noite, no entanto, mostram perfis distintos. Há professores, estudantes, um metalúrgico, jornalistas, um artista, uma desempregada, um publicitário, entre outros.

De Paris, onde cumpriam agenda, o prefeito Fernando Haddad (PT) e o governador Geraldo Alckmin (PSDB) criticam a depredação. Para Haddad, os atos de vandalismo foram produzidos por “pessoas inconformadas com o Estado democrático de Direito”.

13 de junho – Repressão violenta da PM marca estopim de movimento nacional

O quarto protesto na região central de São Paulo começa com uma concentração tensa nas escadarias do Theatro Municipal. PMs revistam pessoas – inclusive jornalistas – que se dirigem à área. Estações de metrô são fechadas. Pessoas que carregavam vinagre – usado para aliviar os efeitos do gás lacrimogênio nos olhos – são presas, incluindo um jornalista. Em parte da imprensa de São Paulo, o tom adotado foi de exigir que a PM tomasse providências para sufocar o movimento.

O jornal Folha de S.Paulo havia publicado pela manhã um editorial com o título “Retomar a Paulista”, que acusava os participantes do movimento de serem “jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária”. “É hora de pôr um ponto final nisso”, concluía o editorial.

No início da noite, cerca de 5 mil pessoas deixam as escadarias do teatro e seguem para a rua da Consolação, um dos acessos para a Avenida Paulista. Sem registrar incidentes significativos no percurso, a marcha é bloqueada pela PM quando alcança a esquina da Consolação com a rua Maria Antônia, local que já havia sido palco de um famoso confronto entre estudantes em 1968.

Sem emitir qualquer advertência, policiais da Tropa de Choque passam a disparar gás lacrimogênio e balas de borracha na multidão, inclusive em manifestantes que tentam fugir por ruas adjacentes.

Nas horas seguintes, membros da PM, longe de se limitarem a bloquear o acesso à Avenida Paulista, atacam jornalistas, moradores da região, motoristas que trafegavam e clientes de bares nas ruas dos bairros Bela Vista e Consolação. Pelo menos 17 profissionais da imprensa ficam feridos – um fotógrafo perde um olho. Outros três são presos.

A noite termina com mais de 230 pessoas presas. A violência da PM, no entanto, tem o efeito oposto. Em vez de dissuadir a participação nos protestos, acaba por alimentá-los.

14 de junho – Governo de SP defende repressão, mas violência policial causa revolta

Na manhã seguinte, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, defende a ação da polícia e chama os manifestantes de “baderneiros e vândalos”.

No entanto, o governador não consegue controlar a narrativa, e chovem críticas de ONG, grupos da sociedade civil, movimentos sociais, grupos de advogados e até de setores da imprensa sobre os excessos na ação da PM. Protestos são organizados no exterior em apoio aos manifestantes no Brasil.

Uma nova manifestação é convocada em São Paulo pelo MPL para 17 de junho. “Não é por centavos, é por direitos”, diz um panfleto distribuído na capital.

15 e 16 de junho – Protestos contra a Copa

Em meio à indignação provocada pela repressão do dia 13 em São Paulo, o Brasil recebe no dia 15 de junho o jogo de abertura da Copa das Confederações, evento teste da Copa do Mundo de 2014. A presidente Dilma Rousseff é vaiada dentro do Estádio Mané Garrincha, em Brasília, palco da partida. Do lado de fora, há confronto entre algumas centenas de manifestantes e a cavalaria da PM do Distrito Federal.

No dia seguinte, na estreia do Rio de Janeiro como sede do torneio, do lado de fora do Maracanã, um novo confronto entre a PM e cerca de 500 manifestantes, que criticavam o volume de recursos usados para a Copa e cobravam mais verbas para educação e saúde.

17 de junho – Megaprotestos se espalham pelo país, e pauta se amplia

Enormes manifestações tomam conta do país, levando cerca de 250 mil pessoas às ruas em 12 capitais, no que foi considerado à época o maior movimento popular desde o impeachment de Fernando Collor em 1992. A noite do dia 17 foi palco de algumas das imagens mais emblemáticas das jornadas de junho de 2013, como a invasão do telhado do Congresso Nacional e a depredação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

São Paulo – Cerca de 65 mil pessoas saem às ruas na nova manifestação convocada pelo MPL. Após a má repercussão causada pela repressão do dia 13, a tropa da PM paulista se mantém distante da manifestação, que é acompanhada por apenas alguns oficiais da corporação que adotam uma linguagem conciliadora. Manifestantes entoam gritos como “o povo acordou” e “o gigante acordou”. “Saímos do Facebook”, diz um cartaz na manifestação.

A maior parte dos manifestantes participa de protestos pela primeira vez, expressando pautas que vão além do “passe livre”, cobrando melhorias em serviços públicos, reclamando dos custos da Copa e cobrando medidas para conter violência urbana e a corrupção (tema que recebeu atenção em 2012 com o julgamento do Mensalão).

Após se concentrar no Largo da Batata, a marcha se desloca pela Avenida Faria Lima, um dos principais centros financeiros de São Paulo. Das janelas e das portarias dos prédios comerciais, pessoas aplaudem os manifestantes e gritam palavras de apoio.

Após atravessar a avenida e a ponte estaiada sem incidentes, parte do protesto chega ao fim em frente ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo, enquanto outro grupo segue para a Paulista. A PM finalmente intervém quando alguns black blocs derrubam o portão e invadem os jardins do palácio.

Rio de Janeiro – Cerca de 100 mil pessoas ocupam a avenida Rio Branco, no centro da capital fluminense. O protesto carioca resulta em cenas violentas, que acentuam um caráter de radicalização do movimento. Manifestantes investem contra a sede da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), cercando o prédio e obrigando policiais a se refugiarem no interior. Lojas da região são saqueadas, e agências bancárias acabam destruídas. Alguns PMs fazem disparos de fuzil para cima numa tentativa de dispersar a multidão.

Brasília – Cerca de 10 mil pessoas protestam em Brasília. Apesar de menor em comparação com outras cidades, o protesto ganha destaque quando algumas centenas de manifestantes furam um bloqueio policial e invadem o telhado do Congresso Nacional.

Outras cidades – Manifestações com milhares de participantes também são registradas em Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Fortaleza, Belém, Vitória e Salvador, com pautas diversas como cobrança por mais investimentos em serviços públicos e combate à corrupção.

Mídia freia críticas – Antes com uma postura crítica às manifestações, alguns veículos de imprensa passam a mudar sua abordagem, focando no novo leque de pautas que surgem nas ruas. A revista Veja estampa em sua nova capa: “A revolta dos jovens. Depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?”.

18 de junho – Novo protesto em SP; Mídia Ninja ganha destaque

São Paulo – Um novo protesto resulta numa tentativa de invasão e depredação da sede da prefeitura da cidade. Pelo menos 65 mil pessoas saem às ruas. Um carro da emissora Record e um módulo da PM são incendiados por manifestantes ao lado da sede do Executivo paulistano.

Apenas a Guarda Municipal entra em ação. Após as críticas sobre o 13 de junho, a PM se mantém distante. O sumiço dos policiais acaba criando um cenário para ação de saqueadores em lojas de eletrônicos do centro de São Paulo.

Dilma Rousseff aborda protestos – Durante um discurso em Brasília, a presidente Dilma Rousseff aborda as manifestações e adota um tom de compreensão com as demandas, afirmando que o movimento era uma “mensagem direta das ruas”. Na ocasião, ela afirma que é “bom” ver jovens e adultos empunhando bandeiras do Brasil e cantando o Hino Nacional. “O Brasil hoje acordou mais forte. A grandeza das manifestações de ontem comprova a energia da nossa democracia, a força da voz da rua e o civismo da nossa população. (…) Essas vozes das ruas precisam ser ouvidas.”

Mídia Ninja – Na mesma noite de 18 de junho, na esquina da Avenida Paulista com a rua da Consolação, um grupo incendeia um painel da Coca-Cola, uma das patrocinadoras da Copa das Confederações.

Em contraste com as cenas de vandalismo na prefeitura, que foram transmitidas por helicópteros a serviço de veículos de mídia tradicionais, a cena de vandalismo é capturada por aparelhos celulares, que transmitem tudo ao vivo e por meio das redes sociais. É a primeira transmissão de impacto da Mídia Ninja, uma “teia” de colaboradores criada em 2011 e ligada ao coletivo de esquerda Fora do Eixo.

A transmissão, mesmo com todas as limitações técnicas da época, é acompanhada por pelo menos 100 mil pessoas. Nos protestos seguintes, as imagens ao vivo no meio dos protestos e a cobertura abertamente favorável aos manifestantes atraem mais espectadores que rechaçam a cobertura de grandes veículos.

Em 2013, o pioneirismo desse tipo de transmissão ao vivo permaneceria fortemente associado a grupos de esquerda. Nos anos seguintes, porém, acabaria sendo adotada por movimentos bem distantes desse perfil ideológico.

Dez anos depois de junho de 2013, Bruno Torturra, um dos criadores da Mídia Ninja, disse encarar com desgosto que esse tipo de transmissão ao vivo tenha se tornado “um catalisador da radicalização” na direita.

19 de junho – Autoridades revogam aumentos

Após duas semanas de manifestações, o prefeito Haddad e o governador Alckmin anunciam a revogação do aumento em São Paulo e a volta da tarifa de R$ 3.

No Rio, o prefeito Eduardo Paes também revoga um aumento de 20 centavos que estava em vigor desde o início de junho.

PT convoca militantes a participar de protestos – Diante do crescimento das manifestações, o presidente nacional do PT, Rui Falcão, conclama a militância petista “a assumir decididamente a participação das manifestações de rua em todo o país”.

20 de junho – Mais de um milhão saem às ruas do país; movimento tem virada antipartidária

O país registra o auge das “Jornadas de Junho” quando mais de 1 milhão de pessoas saem às ruas de 388 cidades, incluindo 22 capitais.

São Paulo – Com a revogação do aumento no dia anterior, outras pautas dominam o protesto que reúne 110 mil pessoas na Avenida Paulista. Grupos exibem cartazes com demandas de regulação para algumas profissões, moradores exigem reparos em vias, manifestantes exibem placas contra a corrupção e exigem educação e saúde “padrão Fifa”.

O protesto também acaba sendo marcado por uma virada antipartidária. A conclamação feita pelo comando do PT para que os militantes do partido participassem da manifestação se revelou desastrosa. Assim que pisaram na Paulista, os petistas começaram a ser intimidados, ofendidos ou agredidos. Manifestantes que diziam ser apartidários, jovens que entoavam slogans nacionalistas e, em menor número, anarquistas, formaram a ponta de lança da perseguição aos gritos de “Sem partido!” e “Sem bandeira!”.

Ao longo do trajeto, alguns petistas chegaram a ser ameaçados por pessoas que portavam tacos de beisebol e de hóquei. Depois da marcha percorrer 1,5 quilômetro, ao lado de militantes de outros partidos como PSTU, PCO e Psol – que já haviam participado de outras manifestações –, os petistas são cercados por outros manifestantes. Suas bandeiras foram tomadas, rasgadas e queimadas. Em poucos minutos, não havia mais nenhuma bandeira de partido na Paulista. Apenas bandeiras do Brasil. A maior parte do público na Paulista não notou o que havia ocorrido.

Rio de Janeiro – A virada “antipartidária” também marca o protesto do Rio de Janeiro, que reuniu um recorde de cerca de 300 mil pessoas. Participantes ligados a partidos de esquerda, como o PSTU, ou a sindicatos como a CUT são hostilizados e expulsos da manifestação.

Ocorrem também episódios de confronto com a polícia, que usa gás lacrimogênio e balas de borracha. Um carro da emissora SBT é incendiado. Oito pessoas são detidas, inclusive o catador Rafael Braga, que carregava uma garrafa de desinfetante. Ele acabaria sendo condenado a cinco anos de prisão. Nos anos seguintes, seu destino se tornaria uma cause célèbre de ONGs de direitos humanos.

Brasília – Manifestantes tentam voltar a invadir o teto do Congresso Nacional, mas são repelidos por forças de segurança. Um grupo segue para o Palácio do Itamaraty, que é vandalizado. Mais de cem pessoas ficam feridas em confrontos.

21 de junho – MPL anuncia que não convocará novos protestos

O MPL de São Paulo informa que não vai mais promover protestos na capital paulista, citando que sua reivindicação de revogação do aumento das tarifas foi atendida pelas autoridades. No entanto, membros do grupo também mencionam que o recuo foi influenciado pela presença de grupos que passaram a trazer “pautas conservadoras” para os protestos, como a redução da maioridade penal. O MPL também critica a violência de alguns participantes contra militantes de partidos políticos.

Nas semanas seguintes, o movimento passa a se limitar a organizar pequenos protestos pontuais na periferia de São Paulo em associação com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), sem as convocações gerais por redes sociais. No segundo semestre de 2013, o MTST e seu coordenador, Guilherme Boulos, liderariam novos protestos e ocupações na cidade.

Dilma faz pronunciamento – Em pronunciamento na TV, a presidente Dilma promete lançar um pacto, com governadores e prefeitos, para melhorar os serviços públicos. Em sua fala, Dilma classifica a onda de manifestações como um “movimento democrático e justo”, mas adverte contra ações violentas, atribuindo-as a uma “minoria” dos manifestantes.

“Se deixarmos que a violência nos faça perder o rumo, estaremos não apenas desperdiçando uma grande oportunidade histórica, como também correndo o risco de colocar muita a coisa a perder.”

A presidente também menciona o combate à corrupção em três momentos. “Precisamos muito, mas muito mesmo, de formas mais eficazes de combate à corrupção.”

“Ocupa Cabral” – Manifestantes montam um acampamento em frente à residência do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, no bairro nobre do Leblon. O movimento acabou tendo diferentes etapas, com protestos em frente à casa do político sendo registrados até outubro.

22 de junho – Protesto de procuradores contra a PEC 37

O vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) é palco de um protesto que reúne 30 mil pessoas. Convocada com a ajuda de procuradores de Justiça, a manifestação tem uma pauta bem específica: barrar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, que tramitava na Câmara e que tinha o objetivo de limitar a investigação de crimes exclusivamente à polícia, impedindo a abertura de inquéritos pelo Ministério Público.

Diferentes setores do Ministério Público vinham fazendo campanha contra a PEC desde o final de 2012. A campanha contra a “PEC da Impunidade”, como foi chamada à época, vinha surtindo efeito, e vários manifestantes de 17 e 20 de junho em São Paulo já haviam exibido cartazes contra a proposta.

Um dos presentes que discursou no evento do Masp foi Renan dos Santos, que no ano seguinte seria um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL).

Novos protestos em Curitiba e Belo Horizonte – A capital mineira é palco de protestos que reuniram mais de 60 mil pessoas em uma marcha em direção ao Estádio do Minerão, palco de partida pela Copa das Confederações. Houve confronto com a polícia. Na ocasião, um jovem despencou de um viaduto – ele morreu no hospital três semanas depois.

Curitiba também é palco de protestos violentos, que reúnem 10 mil pessoas. Alguns manifestantes vandalizam diversos prédios e instalações públicas no Centro Cívico da cidade. Vinte e seis são detidos. O perfil dos presos é diverso: estudantes, mecânicos, servidores públicos, militares, serventes de pedreiro, empresários e desempregados.

24 de junho – Dilma propõe cinco pactos e nova Constituinte

Em meio à crise, a presidente Dilma Rousseff propõe durante uma reunião com governadores e prefeitos de capitais a adoção de cinco “pactos nacionais” em áreas como responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte e educação.

Entre as propostas estão melhoria dos serviços públicos, contratação de médicos estrangeiros (que viriam a ser os cubanos do Mais Médicos), destinação de royalties do petróleo para a educação, e endurecimento da legislação para combater a corrupção.

A ideia mais chamativa – e controversa – envolve a convocação de um plebiscito para que o eleitorado fosse consultado sobre a convocação de uma constituinte que trataria exclusivamente da reforma política.

O plano da Constituinte foi abandonado em 24 horas, diante da má repercussão e críticas de juristas. Mas medidas na área de saúde e no endurecimento da legislação contra a corrupção avançam.

25 de junho – Câmara derruba PEC 37

Sob pressão das ruas, a Câmara derruba a PEC 37. A proposta, que chegou a ter 207 assinaturas a seu favor quando foi apresentada, acabou rejeitada por 430 deputados. Apenas nove votam a favor – e dois deles afirmam depois que foi por engano.

26 de junho – STF ordena prisão de deputado em exercício, a primeira desde 1988

Pela primeira vez desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) determina a prisão de um deputado federal em exercício do mandato. Natan Donadon, que representava Rondônia na Câmara, já havia sido condenado a 13 anos por desvios na Assembleia Legislativa do seu estado. Sua defesa protesta e afirma que clima das ruas influenciou decisão.

Protestos menores de pauta única em SP – A tendência de substituição de megaprotestos por manifestações menores de pauta única se consolida em São Paulo. No mesmo dia, na Avenida Paulista, três grupos distintos realizam concentrações.

Algumas centenas protestam contra um projeto de lei que previa o fim da proibição, pelo Conselho Federal de Psicologia, de tratamentos que se propõem a reverter a homossexualidade. Apelidado de “cura gay”, o projeto havia sido aprovado no dia 19 em uma comissão da Câmara presidida pelo evangélico Marco Feliciano – o texto acabou sendo arquivado em julho.

Outro grupo, formado por profissionais de saúde, protesta contra os planos do governo de contratar médicos estrangeiros.

No vão do Masp, uma pequena concentração de pessoas, entre idosos e pessoas com roupas camufladas e bandeiras do Brasil, pede a “volta dos militares” ao poder e uma “intervenção militar” no país.

Senado aprova projeto para tornar corrupção crime hediondo – Com o apoio de Dilma, o Senado aprova um projeto de lei para aumentar as penas para o crime de corrupção e tornar esse tipo de delito crime hediondo, considerado de maior gravidade. À época, a presidente parabeniza os senadores pela votação. No entanto, o projeto cairia no esquecimento após ser remetido à Câmara.

Fim do voto secreto em cassações – Uma comissão da Câmara dá sinal verde para proposta que acaba com o voto secreto durante decisões para cassação de mandato. A medida foi promulgada pelo Congresso em novembro. O deputado Natan Donadon se tornaria em 2014 o primeiro deputado a ser cassado em votação aberta.

29 de junho – Popularidade de Dilma despenca

Pesquisa Datafolha aponta para uma queda vertiginosa da aprovação de Dilma no espaço de apenas três semanas. No início de junho, quando os protestos eram ainda limitados, Dilma era aprovada por 57% da população. No dia 29 de junho, o índice havia caído para 30%, queda de 27 pontos percentuais.

De acordo com o Datafolha, essa seria a maior redução de aprovação de um presidente entre uma pesquisa e outra desde o confisco da poupança por Collor em 1990.

Outros políticos também passam a enfrentar ondas de queda de aprovação em espaço de semanas, como Alckmin (de 52% para 38%), o governador fluminense Sérgio Cabral (55% para 25%) e Haddad (34% para 18%).

30 de junho – Protestos começam a arrefecer

Ao longo de julho, com exceção de algumas manifestações pontuais em São Paulo e outras capitais, que acabaram sendo dominadas por black blocs, o país começa a ver um arrefecimento da onda de grandes protestos. Movimentos mais relevantes só continuaram a mostrar alguma força no Rio de Janeiro, onde manifestações contra o governo Cabral e autoridades locais se estenderam até outubro, com forte repressão policial.

1 e 2 de agosto – Dilma sanciona medidas de combate à corrupção

A presidente Dilma assina uma série de medidas de um pacote anticorrupção, como um projeto que definia organizações criminosas e autorizava instrumentos como delação premiada, além de uma lei que previa punição para empresas acusadas de corrupção. Os efeitos das medidas começariam a ser sentidos poucos meses depois, a partir de março de 2014, data de início da operação Lava Jato.

“Pessoas esquecem, mas junho de 2013 tinha muita esperança”

Marco inicial de uma década vertiginosa no Brasil, as jornadas de junho de 2013 estão sendo agora reexaminadas em livros, reportagens e debates que buscam esmiuçar aquela explosão de forças sociais que produziu eventos políticos decisivos e que reverbera até hoje.

Uma testemunha da primeira onda das manifestações, contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo, é o jornalista Piero Locatelli, que cobriu de perto a dinâmica dos protestos e do Movimento Passe Livre (MPL) e acabou virando notícia ao ser preso pela polícia paulista por portar uma garrafa de vinagre – substância que atenua o efeito das bombas de gás lacrimogêneo.

Locatelli foi solto algumas horas depois, após pressão de entidades de representação dos jornalistas, e nas semanas seguintes mergulhou ainda mais fundo na cobertura dos protestos, o que rendeu um livro escrito à quente, lançado em julho de 2013 pela editora Companhia das Letras, sobre os eventos e seu principal catalisador, o MPL.

Em entrevista à DW, Locatelli detalha a lógica daquele movimento de jovens de esquerda críticos ao governo do PT, organizado de forma horizontal, sem símbolos tradicionais ou ligação com partidos e com foco total numa pauta única: revogar o aumento de vinte centavos da tarifa do transporte público paulistano. E reflete sobre como essas características constituíram, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza da intensa mobilização inicial.

Esse modo de agir do MPL, diz Locatelli, abriu espaço para que milhares de cidadãos saíssem de suas casas e tomassem as ruas, “gente que não entraria numa manifestação na qual tivesse muitas pessoas com boné do MST”. E o grupo foi bem sucedido, forçando o então prefeito Fernando Haddad (PT), hoje ministro da Fazenda, a revogar o reajuste. Ele ressalta que, naquela altura, havia um sentimento de “muita esperança” nas ruas. “Ninguém estava muito cético ou cínico. Era um momento em que as pessoas acreditavam numa postura questionadora da política.”

Por outro lado, após conquistar seu objetivo, o MPL não expandiu sua pauta, evitou transformar seus membros em lideranças políticas mais amplas e se retirou das manifestações, também receoso com a proporção e a diversidade política que elas haviam assumido. “Como se você colocasse fogo num lugar e desses dois passos para trás”, diz Locatelli, que na época trabalhava na revista Carta Capital e hoje é jornalista freelancer em Taipei.

O resultado, avalia, foi a abertura de um enorme vácuo político durante um período de intensa mobilização social, que não é ocupado pela esquerda tradicional – atônita e despreparada para lidar com o que acontecia –, mas sim por movimentos organizados de direita e pelo Ministério Público, que deram a tônica dos anos seguintes na política nacional.

Do impeachment à tentativa de golpe, direita também passou a ocupar as ruas

O relógio se aproximava das 15 horas quando milhares de pessoas que marchavam do Quartel-General do Exército desde o início da tarde alcançaram a praça dos Três Poderes, em Brasília. A seguir, parte do país acompanhou atônita enquanto milhares de pessoas invadiam e vandalizavam o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), sem grande resistência das forças policiais.

Mas a conjunção de fatores que levou à tentativa frustrada de golpe em 8 de janeiro de 2023 não se iniciou naquele dia. Tampouco nas semanas pós-segundo turno, quando a extrema direita, revoltada com a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro (PL) e alegando uma jamais provada “fraude” nas urnas, montou acampamentos na frente de quartéis ao redor do país, clamando por um golpe militar.

Para o cientista político e coordenador do Observatório da Extrema Direita, Guilherme Casarões, as narrativas de rejeição às instituições e de desconfiança em relação ao sistema eleitoral, centrais para explicar a invasão de Brasília, já apareciam nos primeiros atos da direita, há dez anos, mas foram minimizadas.

“Desde 2014, das primeiras manifestações com uma cara de direita no Brasil, ainda às vésperas da reeleição da Dilma, já havia pessoas carregando cartazes com dizeres do tipo “intervenção militar”, ainda que isso seja crime ou pelo menos um crime em potencial”, explica. “Essas coisas foram minimizadas ou toleradas em 2014 e ganharam um pouco mais de visibilidade [a partir das manifestações] em 2015 e 2016.”

Manifestação na Avenida Paulista, região central da capital, contra a corrupção e pela saída da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016. Foto: Rovena Rosa – Abr

A direita não ia às ruas com tamanha recorrência e amplitude desde a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, série de manifestações ocorridas logo antes do golpe de 1964, explica a cientista política Camila Rocha, autora do livro Menos Marx, mais Mises – O liberalismo e a nova direita no Brasil. Na época, os atos foram uma resposta à suposta “ameaça comunista” representada na figura do então presidente João Goulart, deposto pelos militares em 1º de abril daquele ano.

Nos anos seguintes à redemocratização, o monopólio das ruas seguiu sendo da esquerda, lembra Rocha. Mesmo durante o período mais agudo do mensalão, em que o antipetismo tomou forma, a direita não promoveu grandes manifestações de massa. Isso começou a mudar em junho de 2013, quando uma gama maior de segmentos da sociedade resolveu se manifestar.

“Pela primeira vez, pessoas que não necessariamente eram de direita ou se percebiam como de direita foram às ruas pra defender pautas que ou eram de direita mesmo ou que não eram de esquerda necessariamente”, diz Rocha, parte do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Para a pesquisadora, junho de 2013 também gerou um processo “pedagógico”, com muitas pessoas passando a querer saber mais sobre política e se percebendo de direita. “Foi ali que nasceu um embrião do que depois veio a ser o MBL [Movimento Brasil Livre]. Esses grupos eram minoritários, mas eles perceberam que podiam ir para a rua levando pautas de direita e conseguiriam eventualmente uma maior adesão de massa nessas pautas”, diz.

2013 despertou, Lava Jato explodiu

Com a crise econômica, a eclosão da Operação Lava Jato e a reeleição apertada de Dilma Rousseff (PT), questionada por seu adversário Aécio Neves (PSDB), a presença da direita e da extrema direita nas ruas passou a ser sistemática. Primeiro, mais timidamente, com manifestações convocadas por grupos como o MBL e Vem pra Rua, reunindo alguns poucos milhares de pessoas, ainda em 2014. Nos dois anos seguintes, de maneira mais organizada e robusta, chegando a 13 de março de 2016.

Às vésperas da instalação da comissão especial de análise do impeachment de Dilma, milhões de pessoas foram às ruas em todo o Brasil, na maior manifestação da história do país segundo o Instituto Datafolha, superando as Diretas-Já.

Depois que a petista foi derrubada e Michel Temer (MDB) chegou ao poder, o número de atos protagonizados pela direita diminuiu, segundo os pesquisadores ouvidos pela Agência Pública. Isso mudou com a eleição presidencial de 2018, quando um candidato capaz de amalgamar as diferentes vertentes desse espectro político surgiu.

“O Bolsonaro se constrói como uma liderança política de uma direita que antes não tinha uma pessoa que vocalizava seus anseios. Tem os antipetistas, tem as questões comportamentais e morais que ele traz, tem as questões do liberalismo”, explica a cientista política Carolina Botelho, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP).

Para ela, Bolsonaro foi capaz de compor um mosaico de apoios em um momento em que a sociedade estava estressada com questões econômicas, políticas e institucionais e, também, tomada pelo ambiente antissistema, em parte provocado pela Lava Jato, “em que a política em si é algo deletério, algo que deve ser combatido”.

Rumo à radicalização

A década em que a direita voltou a ocupar as ruas ficou marcada pela extremização da retórica, das pautas e das ações, com a extrema direita se sobrepondo à direita moderada. Se até 2014 os manifestantes eram majoritariamente eleitores do PSDB, como aponta Casarões, nos anos seguintes o partido chegou a ser apontado como de esquerda por alas mais radicais do bolsonarismo.

Da dancinha coreografada de “Bolsonaro é Norte, Bolsonaro é Nordeste” em Fortaleza, ainda em 2018, à marcha rumo à invasão da praça dos Três Poderes, em 2023, a direita foi às ruas com cada vez mais frequência – e com um perfil cada vez mais radicalizado.

“O que vai acontecer no processo das manifestações é que o espaço de alguns grupos que são vetores da radicalização, de uma forma nova e radicalizada de comunicação política, vai aparecer de maneira mais clara, vão ganhar protagonismo”, afirma Casarões.

É ainda no primeiro semestre de 2020, por exemplo, que Sara Winter e seus “300 de Brasília” protagonizaram um ensaio do que viria a ocorrer entre o final de 2022 e o início de 2023.

Movimento de Sara Winter acampou em Brasília e contava com armas entre seus integrantes. Facebook Reprodução

A ex-liderança do grupo feminista Femen comandou um acampamento na capital do país, com direito à presença de armas entre os integrantes, e capitaneou uma marcha pela Esplanada com tochas, máscaras, roupas pretas e palavras de ordem.

Depois que o acampamento foi desmontado, os extremistas tentaram invadir o Congresso, sem sucesso. Sara Winter chegou a dizer que gostaria de convidar Alexandre de Moraes para “trocar socos”.

A isso se seguiram atos contra medidas de isolamento social, contra o Congresso e contra o STF, especialmente na figura de Moraes, e os atos de 7 de setembro de 2021, quando Bolsonaro falou em desobedecer a decisões do Supremo, e de 2022. Ao mesmo tempo, o então presidente promoveu dezenas de motociatas pelo país.

Ex-presidente Bolsonaro promoveu várias motociatas por todo o Brasil entre 2021 e 2022, desobedecendo as medidas de isolamento social. Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

“Há um certo desprezo pela democracia que se construiu ao longo desse processo [de manifestações]. A ideia-chave talvez fosse aquela de que “Supremo é o povo”. Eles repetiam muito essa frase para dizer que não interessava o que o STF diga ou faça, a vontade do povo vale mais. Mas que povo é esse? Na verdade, é o povo bolsonarista, não é o povo brasileiro como um todo”, diz Casarões.

Com a derrota de Bolsonaro em outubro, o processo de radicalização seguiu. A extrema direita trocou os atos nas ruas por bloqueios nas estradas e acampamentos em frente a quartéis do Exército, clamando por uma intervenção militar, até chegarmos à tentativa fracassada de golpe em 8 de janeiro.

“O bolsonarismo é um fenômeno político baseado em mobilização popular constante. Não só digitalmente, mas também presencialmente. O papel dessas manifestações que o Bolsonaro promovia era justamente deixar essa chama acesa”, explica Camila Rocha.

Segundo ela, a capacidade de mobilização dos manifestantes bolsonaristas se explica em parte pelos “laços de sociabilidade e solidariedade” que foram criados durante os atos. “A despeito dos direitistas acampados não sofrerem o tipo de repressão que a esquerda sofre, ainda assim é uma tática bastante desgastante, a pessoa realmente tem de estar muito mobilizada. E acabava que esses laços eram importantes para reforçar essa dinâmica. Muitas vezes eram pessoas sozinhas, pessoas idosas, pessoas que tinham rompido laços com as famílias”, aponta a cientista política.

Golpistas subindo a rampa do Planalto em Brasília na invasão dos Três Poderes em 8 de janeiro. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Recuo tático

Depois da prisão de milhares de extremistas que participaram dos atos de 8 de janeiro, somada à demora de Bolsonaro para voltar ao Brasil e os sucessivos reveses judiciais do político, como no caso da falsificação do comprovante de vacina, a direita ainda não foi às ruas em peso desde a tentativa de golpe.

Para Casarões, falta uma pauta clara, capaz de mobilizar essas manifestações, como uma eventual prisão de Bolsonaro, por exemplo. Na visão de Camila Rocha, porém, o recuo do bolsonarismo é tático e de curto prazo.

“Eu faço um acompanhamento semanal com eleitores junto com a professora Esther Solano [que estuda a extrema direita no Brasil], e vira e mexe eu já ouvi alguns eleitores do Bolsonaro falando em impeachment do Lula. Eu não me espantaria se em algum momento durante esses quatro anos esse ciclo de mobilizações à direita fosse retomado, principalmente com base no antipetismo, com pautas contrárias ao governo Lula”, afirma a pesquisadora.

Para Carolina Botelho, pesquisadora associada do Laboratório de Estudos Eleitorais de Comunicação Política e Opinião Pública (Doxa/Iesp/Uerj), é fundamental reverter o quadro de criminalização da política que se aprofundou nos últimos anos, durante a Operação Lava Jato. “Você não rompe com o sistema político do nada, com a sociedade passando incólume”, diz. “Fazer crítica aos políticos é necessário e democrático, faz parte do jogo. A gente tem que punir os maus políticos por seus comportamentos desviantes. Agora, não podemos achar que tem que punir a política e dizer que ela é a raiz de todos os problemas.”

“É importante fazer correção histórica sobre junho de 2013”

Era um outro país aquele de junho de 2013. A petista Dilma Rousseff, presidente, enfrentava alta rejeição popular e, ao mesmo tempo, se preocupava com as obras para a Copa do Mundo, que o Brasil receberia no ano seguinte. O julgamento do Mensalão, escândalo de corrupção que abalou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, acirrava os discursos antissistema. E manifestações em todas as grandes cidades passaram a reivindicar uma demanda que parecia utópica: a gratuidade nos transportes públicos.

Esse caldeirão fez com que a nação mergulhasse em um cenário de protestos constantes, nem sempre com pauta compreensível. Para muitos, ali estava o ovo da serpente que faria germinar o bolsonarismo. Não é o que diz o urbanista, ensaísta e ativista Roberto Andrés, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que lançou nesta semana o livro A Razão dos Centavos.

“Basta olhar as pesquisas. Quem ganhou intenção de voto após as revoltas de junho não foi [o pré-candidato do PSDB] Aécio Neves, mas [a então ex-senadora] Marina Silva e o [juiz responsável pelo caso do Mensalão] Joaquim Barbosa, alternativas de centro-esquerda e de centro, progressistas que renovavam o repertório depois do PT, mas não eram de um movimento que levava para a extrema-direita”, afirma ele. “O Brasil faz uma espécie de achatamento da história, com o apagamento de certas partes, gerando conexões entre coisas que não são conectadas.”

Observador do fenômeno da crise das cidades, Andrés vê como legado daquele movimento a importância de trazer para a pauta a ideia da tarifa zero, antes irrealista, agora mais factível. “Em junho de 2013, eram pouco mais de 10 cidades que praticavam, atendendo a 300 mil pessoas. Hoje são 70 cidades, 3 milhões de pessoas”, enumera.

Dez anos de protestos: qual o perfil dos manifestantes que vão às ruas no Brasil?

Um homem branco, com Ensino Superior completo e renda familiar de cinco a dez salários mínimos. Um homem negro, com Ensino Fundamental completo e renda familiar de até dois salários. Os dois perfis representam as características dominantes das pessoas que participaram de dois grandes momentos de protestos de rua no Brasil na última década.

A primeira descrição representa o público mais comum de atos que defendiam o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), nos anos de 2015 e 2016, que ocorreram na avenida Paulista, na cidade de São Paulo. O segundo perfil, de um homem negro, foi a figura preponderante em uma das manifestações contrárias ao impeachment em 2015, no largo da Batata, também em São Paulo.

A partir de informações de 23 pesquisas de campo realizadas pelo Ibope, DataFolha e Monitor Digital, a Agência Pública traçou os perfis dos manifestantes que estiveram presentes em diferentes protestos de rua entre 2013 e 2022. O período abrange atos contra o aumento das tarifas no transporte público das “Jornadas de Junho” de 2013; manifestações em apoio aos estudantes secundaristas de São Paulo em 2015; passeatas favoráveis e também as contrárias ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) nos anos de 2015 e 2016, em São Paulo;  contra a reforma da Previdência, em 2017; e diversos atos a favor ou contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), de 2018 a 2022, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Homens brancos, cristãos e com renda alta foram o principal público dos atos pró-impeachment da ex-presidente Dilma e das mobilizações em defesa do ex-presidente Bolsonaro. Segundo os dados, essas manifestações tiveram uma maior quantidade de participantes que se identificaram como católicos e evangélicos.

Já nos atos contrários ao impeachment de Dilma e contra Bolsonaro, organizados por campos à esquerda, registraram comparativamente maior participação feminina e de pessoas autodeclaradas sem religião (49%).

Segundo Ricardo Ismael, cientista político e professor da PUC-RJ, a atuação de Bolsonaro explica em parte essa consolidação do público religioso nas manifestações de espectro de direita. “As manifestações de junho de 2013 têm um elemento mais difuso de insatisfação. Havia uma insatisfação em relação ao governo federal, mas também contra governos estaduais e prefeitos. A predominância religiosa nas manifestações de rua, sobretudo católica e evangélica, se deu muito mais a partir do fenômeno Bolsonaro, que estava sempre se direcionando para esse público”, explica.

De acordo com a pesquisadora Esther Solano, cientista social e professora de Relações Internacionais na Unifesp, os movimentos que surgem com junho de 2013 se mostravam mais heterogêneos, sem um consenso no seu repertório ideológico. “Nós temos desde os mais novos movimentos sociais, como o MPL  [Movimento Passe Livre], mais horizontais, mais contemporâneos, até a esquerda tradicional, os movimentos que orbitam ao redor do petismo. Mas também aparece uma direita mais emergente, já presente nas pautas da luta contra a corrupção, de estética nacionalista, de verde e amarelo, da lógica da família”, pontua.

Movimento secundarista

As manifestações do movimento secundarista, em 2015, foram uma resposta às decisões do governo de São Paulo em reorganizar os ciclos de ensino no estado. A proposta mobilizou a chamada pelos estudantes de “primavera secundarista”, que gerou ocupações em escolas e manifestações nas ruas em apoio ao movimento estudantil.

No ano seguinte, as manifestações foram retomadas em vários estados em protesto à Medida Provisória 746, que implementava o Novo Ensino Médio, e à PEC 241, que instituia um teto de gastos públicos, com cortes na educação.

Segundo as pesquisas, o perfil dominante da manifestação em apoio aos secundaristas na cidade de São Paulo, em maio de 2015, foi de jovens, de 14 a 20 anos, com renda familiar de até dois salários mínimos. Entre todas as manifestações ocorridas desde 2013 que foram analisadas, essa tem a maior participação de indígenas (2,7%). Ela é também uma das com a maior proporção de participantes mulheres que homens (52%).

Manifestação do movimento secundarista em 2015 contra os cortes na educação e a reorganização escolar. Foto: Rovena Rosa/Agencia Brasil

Os dados mostram que mais da metade dos participantes dos atos dos secundaristas, em 2015, diziam confiar muito em movimentos com pautas tradicionalmente identificadas com a esquerda: o Movimento Passe Livre (MPL), 91%, os Sem Terra (MST), 63%, e os Trabalhadores Sem-Teto (MTST), 58,5%. Em relação aos partidos, os manifestantes não confiavam no PMDB (93%), PSDB (96%) e na REDE (61,8%) e confiam pouco no PT (45%) e PSOL (49%).

Mais idade, maior renda: o perfil nos atos a partir de 2015

Foi também no ano de 2015 que tiveram início os protestos que pediam o impeachment da ex-presidente Dilma. Segundo os dados, as manifestações favoráveis à sua saída tinham, em sua maioria, pessoas com renda familiar superior a cinco salários mínimos. Nos atos realizados em São Paulo, na avenida Paulista, os participantes eram predominantemente da Zona Sul da cidade.

Já as manifestações contrárias ao impeachment, que também ocorreram a partir de 2015, tiveram maior porcentagem de participantes de outras cidades paulistas (média de 33%). A renda, contudo, foi semelhante à das manifestações que entoavam “Fora, Dilma”: acima de cinco salários.

Para o pesquisador Pablo Ortellado, Coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação (GPoPAI), o monitoramento do perfil dos manifestantes favoráveis ou contrários ao impeachment de Dilma foi importante para concluir que os grupos “eram mais semelhantes do que diferentes”, em termos sociodemográficos. Em ambos os grupos, as amostras entrevistadas possuem mais participantes com Ensino Superior completo ou iniciado, renda familiar entre 5 a 10 salários mínimos e pessoas brancas. O grupo de Ortellado realizou pesquisas em dez atos contra ou favoráveis ao impeachment no ano de 2015.

A exceção entre essas manifestações foi o ato contra o impeachment realizado em 20 de agosto de 2015, no Largo do Batata. O protesto foi o único da amostra em que a maior parcela dos participantes era autodeclarada negra (preta ou parda) — um dos perfis que abrem a reportagem. De modo geral, houve uma média maior de manifestantes autodeclarados negros em manifestações contra o impeachment e contra Bolsonaro, em comparação com atos pró-impeachment e favoráveis ao ex-presidente.

Os perfis de manifestantes de atos que levaram milhares de pessoas às ruas durante a pandemia, como o Vidas Negras Importam (Black Lives Matters) e o ato organizado por movimentos feministas contra Bolsonaro #EleNão, não fizeram parte da amostra analisada. Para o cientista político Ricardo Ismael, esses atos são  pontos fundamentais na história desta década de manifestações nas ruas brasileiras. “Movimentos sociais negros, feministas, indígenas, MST, a sociedade civil organizada de modo geral mostraram capacidade de mobilização na pandemia, quando os atos de rua foram suspensos. Então, esses atos  foram um contraponto fundamental às manifestações bolsonaristas.”

A Pública questionou o DataFolha se havia realizado pesquisas demográficas sobre o público dessas manifestações. O instituto respondeu que “Todas as pesquisas realizadas pelo Datafolha em manifestações, incluindo bases e relatórios, estão disponíveis no site do CESOP/UNICAMP”.


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