08/05/2024 - Edição 540

Ponte Aérea

Esquerda deixou vácuo que foi ocupado por reacionários após junho de 2013

Dez anos depois, manifestações e seus legados ainda servem de arma em batalha de narrativas

Publicado em 19/06/2023 1:50 - Raphael Tsavkko Garcia

Divulgação José Cruz/Agência Brasil

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Chega um determinado momento em que falar sobre junho de 2013 é chover no molhado. Nada que se argumente fará a camada fanatizada da população mudar de ideia sobre sua visão de mundo, seja à direita ou mais ainda à esquerda. 

Petistas vão jurar de pé junto que foi ali que o “ovo da serpente” foi chocado e a responsabilidade pela ascensão da extrema direita foi culpa das ruas – e não da repressão e do apoio incondicional do mesmo PT à violência policial com gritos de “Vai PM!” por militantes virtuais junto a um projeto posterior de cooptação de movimentos sociais.  

No fim das contas trata-se de uma batalha de narrativas. De visões particulares que pouco têm a ver com o movimento em si, com o que realmente aconteceu, mas com desdobramentos posteriores e fenômenos extremamente complexos que não podem ser analisados individualmente – mas que são vistos de forma simplória por aqueles com agendas políticas específicas. 

É verdade que movimentos “patrióticos” — ou, mais precisamente, reacionários — tiveram em junho de 2013 seu nascimento na esfera das ideias, tal como mera possibilidade. O fato, porém, é que havia diferentes forças envolvidas naqueles protestos — dos mais diferentes matizes ideológicos puxados por grupos de esquerda, mas que a cada novo protesto crescia em pautas e em diversidade. Tratava-se de um espaço de (e em) disputa.  

À medida que novas pautas eram incorporadas ao calhamaço de reivindicações, movimentos e indivíduos dos mais diversos matizes ideológicos se juntavam. Mais complexo tornava-se o caldo e mais difícil era impor uma narrativa – mas era possível e necessário fazê-lo. O Movimento Passe-Livre (MPL), em dado momento, reconheceu que não era capaz de liderar as ruas, limitação que já era esperada. Afinal, tratava-se de um movimento pequeno, autônomo e cuja pauta era bastante objetiva e nem de longe abarcava todos os anseios representados nas ruas. 

Partidos de esquerda pequenos (como PCO, PSTU e até mesmo o PSOL, que já contava com representantes no Congresso) tampouco eram capazes de aglutinar aquela massa. Todavia, o principal ingrediente a fazer com que os protestos fizessem transbordar o caldeirão social nas ruas — mais do que a não presença do PT, já desgastado após dez anos no poder — foi a violência e os esforços do partido em denunciar, atacar, criminalizar e fortalecer as forças de direita enquanto se buscava cooptar e criminalizar os movimentos de esquerda.  

O movimento de junho de 2013, portanto, devia ter sido disputado pela esquerda, mas foi entregue de bandeja – com balas de borracha, bombas de efeito moral, gás de pimenta e muito ódio nas redes e fora delas – para a direita ou, mais precisamente, para uma massa que se dizia “apolítica” e tinha naquele mês saído às ruas pela primeira vez. Pequenos movimentos de esquerda não tinham a capacidade de tomar a frente e de se mostrarem uma alternativa, mas o partido no poder – que, é sempre bom lembrar, não era alvo dos protestos – demonstrou-se incapaz de dialogar com a massa que foi às ruas 

O interesse único era a defesa do governo de Dilma Rousseff, que, reitero, nunca esteve sob ataque. Mas o pânico que movia a militância aparentemente tomou conta do PT. O medo que usavam para controlar a base acabou se voltando contra a elite do partido, a qual terminou acreditando em suas próprias conspirações. 

Não se trata de achar que o PT devesse estar nas manifestações. Em São Paulo, ao menos uma pequena minoria da juventude petista até apareceu em alguns dos protestos, assim como elementos do PC do B/UNE tentaram cooptar o movimento passando na frente do MPL e tentando impor rota própria à uma das marchas. Todavia, falharam miseravelmente. De todo modo, é inconcebível que um partido com tendências amplas tivesse estrangulado sua base ao ponto de ficar neutralizado diante dos protestos. 

O processo posterior de cooptação e criação de narrativas foi ainda mais profundo: à esquerda, até mesmo movimentos que estiveram nos protestos passaram a adotar uma posição revisionista ao passo que se aproximavam mais e mais do PT. O movimento dos secundaristas, talvez a última grande mobilização de esquerda pós-2013, foi igualmente assediado pelo PT – menos com criminalização e mais com cooptação e tentativa de aparelhamento.  

Em suma, o partido que sempre liderou a esquerda não foi capaz de aceitar o compartilhamento de poder com outros grupos progressistas e fez de tudo para tornar-se uma vez mais hegemônico e virtualmente incontestável em seu campo ideológico. O preço a ser pago pela sociedade foi a extrema direita encontrando campo livre para crescer. Não existe vácuo na política. Esta é uma frase que carrego como verdade absoluta. Se a esquerda se retirava em meio às tentativas de cooptação do PT, alguém ocuparia o espaço deixado.  

No fim das contas, a extrema direita não foi uma consequência direta de junho de 2013, mas resultado da repressão e posteriormente do processo de cooptação e amansamento da esquerda pelo PT — ou seja, da criminalização da luta social, da tomada das ruas. Assim, conclui-se que a ascensão da extrema direita tem relação com o que se passou há uma década, mas não foi obra dos protestos, tendo resultado da forma pela qual eles foram enfrentados, tirando a esquerda das ruas. 

A ordem dos fatores efetivamente altera o resultado. Melhor dizendo, o resultado só foi possível porque um lado resolveu tirar o time de campo – à força – e preferiu encastelar-se no poder (efêmero), deixando o terreno livre para um adversário que se imaginava derrotado — o reacionarismo, que, tal como a batalha de narrativas em torno de junho de 2013, haverá de nos assombrar além de uma década. 

Publicado originalmente no Jota

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Raphael Tsavkko Garcia


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