Brasil
Publicado em 14/03/2019 12:00 -
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No bairro Barreirinha, na zona norte de Curitiba, o teólogo Mike Rodrigo Vieira, de 37 anos, sobe ao púlpito para mais um culto na comunidade Congrega Church. Em sua quase totalidade, o público é formado por jovens, adolescentes e crianças da classe média baixa. “São filhos de operários, donas de casa, desempregados. Nossa visão na igreja é, acima de tudo, inclusiva. A juventude quer e precisa ser ouvida para discutir seus dilemas e dividir seus medos. Não podemos desampará-los”, explica Mike.
Com treinamento missionário pela Steiger Missions School, na Alemanha, ele percebeu essa necessidade convivendo com comunidades periféricas em países do Leste Europeu, como Albânia, Kosovo e Hungria. Depois, percorreu o caminho de Che Guevara pela América Latina, retratado no filme Diários de Motocicleta. “A desigualdade que vi me chocou profundamente”, comenta Vieira. Mas foi na Nova Zelândia, evangelizando skatistas, que começou sua missão. “Senti que precisava fazer alguma coisa. Deixei o jornalismo para me dedicar em tempo integral aos jovens de periferias”, diz o hoje pastor, sempre combativo na defesa de bandeiras progressistas.
Drogas, homossexualidade, feminicídio, violência doméstica e nas ruas, aborto… Nenhum tema é tabu. Esses assuntos, sustenta Mike, precisam ser debatidos e vistos à luz do Evangelho, principalmente em uma sociedade que está cada dia mais em movimento. “Minha postura como cristão é não ficar em silêncio, mas agir em defesa dos mais necessitados. Nas igrejas, a onda contra movimentos LGBTs, por exemplo, nasceu de uma cultura fomentada por cristãos fundamentalistas e os ‘cidadãos de bem’ destas comunidades.” A igreja, emenda, precisa sair das quatro paredes, das clausuras, e entender que existe um mundo real. “Esse isolamento tem gerado cristãos desconectados da realidade social. Não percebem que assim se afastam da missão de Cristo, que é promover o amor ao próximo, a paz e a justiça.”
Em Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, distante 850 quilômetros da capital paranaense, o pastor Henrique Vieira, de 30 anos, líder da Igreja Batista do Caminho, vive dilemas semelhantes. “Todos esses temas devem ser alvo de reflexão crítica e debate.” Para ele, são os setores fundamentalistas das igrejas que interditam o pensamento progressista, estimulam um ambiente de aversão à diversidade e ao debate fraterno de ideias. “Quem pensa diferente de certos líderes religiosos é rechaçado. Tratam de demonizar a dúvida e exaltar uma fé acrítica”,
Sem laços de parentesco, ambos os Vieira defendem abertamente a descriminalização do aborto, por exemplo. “A proibição não inibe a prática, apenas resulta em um número enorme de mortes de mulheres, especialmente pobres e negras. A criminalização afasta o diálogo, gera medo e faz com que as mulheres muitas vezes tomem decisões precipitadas”, diz o curitibano Mike. O colega fluminense concorda. Ser favorável à descriminalização não significa o apoio ao procedimento, mas sim em buscar uma política pública que seja mais humana e acolhedora. “Tratar as mulheres que abortam como criminosas só gera um ambiente de culpa, medo, angústia, silêncio e morte. A descriminalização do aborto, portanto, é pela vida.”
Colunista do site Mídia Ninja, ativo nas redes sociais, Henrique Vieira não teme debater com milhares de seguidores sobre temas ousados, como o “LGBTfobia e o pecado”. “Por que o amor incomoda? Por que o afeto entre pessoas incomoda? Como discípulo de Jesus não posso ficar em silêncio diante de tanta violência com os LGBTs. Entendo que pecado é ausência de amor, é eliminar pessoas, é nutrir uma moral insensível. LGBTfobia mata a vida, em vida. Sejamos servos do amor, assim seremos livres de tudo!”, publicou recentemente em sua página no Facebook, com mais de 113 mil seguidores.
Ao contrário do que parece, não são apenas os pastores mais jovens que adotam posturas progressistas entre os mais de 42 milhões de brasileiros que se consideram “evangélicos”, segundo dados do IBGE. Hermes Fernandes, 50 anos, psicólogo, escritor e pastor, líder da Comunidade Reina, em Engenho Novo, no Rio de Janeiro, defende a descriminalização das drogas, do aborto, os direitos dos homossexuais e a regulamentação do trabalho das prostitutas. Para ele, tais questões não podem ser mantidas na penumbra, varridas para debaixo do tapete dos falsos escrúpulos e da religiosidade de fachada. “Um cristão comprometido com as demandas do evangelho jamais seria favorável à prostituição, mas não pode fazer vista grossa ao sofrimento desumano do qual prostitutas são vítimas nas ruas de nossas cidades.”
Fernandes apoia as pesquisas com células-tronco embrionárias, opõe-se à redução da maioridade penal e é defensor incondicional do Estado laico. “Martinho Lutero dizia que o Estado e a Igreja seriam os dois braços de Deus no mundo. Um seria o braço da lei. Outro, o braço da graça. Para que ambos sejam eficientes, devem manter-se em seus respectivos escopos de atuação”, explica.
Para o pastor, é indispensável assegurar a liberdade de culto, de forma que nenhuma fé exerça primazia sobre as demais. “Quando me deparo com grupos de umbandistas, em vez de criticá-los, enalteço-os pelo direito de viver em um país onde isso ainda é possível”, diz Fernandes. “Embora discorde teologicamente, não posso me esquecer que sou contemplado com a mesma liberdade que lhes é garantida pelo Estado.”
Após três décadas de experiência missionária, Fernandes acredita que a homossexualidade nas comunidades religiosas é “muito maior do que se possa imaginar”. No entanto, a quase totalidade dessas pessoas prefere se manter velada, temerosa de ser descoberta, exposta e excluída da comunidade. Por isso, condena o preconceito das lideranças, por vezes responsáveis pelo sofrimento emocional, depressão e até mesmo o suicídio de fiéis. “Trata-se de uma verdadeira tortura. As pessoas são submetidas a ritos de ‘exorcismo’, impedidas de participar de atividades e até expulsas da igreja ou de casa.”
O líder da Comunidade Reina considera o aborto uma questão de saúde pública e defende o direito de as mulheres terem um atendimento que não coloque em risco suas vidas. “Sou e sempre serei contra o aborto. Mas também sou e sempre serei contra a hipocrisia com que tratamos temas morais como este, fazendo vista grossa a milhares de mulheres que perdem suas vidas ou são tratadas como criminosas por interromperem uma gestação indesejada.”
Claudio Ribeiro, de 56 anos, serviu como pastor durante quase duas décadas na Igreja Metodista, no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Para ele, as críticas exacerbadas das lideranças conservadoras fazem com que as mulheres que se submeteram a um aborto carreguem o peso da culpa pelo resto de suas vidas. “Ouvi o relato de muitas mulheres. Trazem consigo um enorme dilema emocional. Não encontram nas igrejas o refúgio, a paz e a busca pelo perdão.” Como pastor, Ribeiro diz que sua missão é mostrar que existe sempre o “amor e a misericórdia de Deus na vida de todas as pessoas”.
Para esta parcela progressista, os grupos conservadores foram tragados pelo evangelho made in USA, que coloca o lucro e a propriedade privada acima da justiça social, os bens de consumo acima do ser humano, a moral acima da ética e os dogmas religiosos acima da ciência. “Precisamos de uma teologia que surja do nosso próprio contexto social, que considere nossas demandas e nos desafie a responder às questões que inquietam nossa harmonia social”, observa Fernandes.
Eles resistem ao evangelismo made in USA, que coloca o lucro acima da justiça social, a moral acima da ética e o dogma acima da ciência.
Lusmarina Campos Garcia, teóloga e jurista, mestre e doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, classifica o modelo neopentecostal como político-mercadológico, que adota a lógica do capital, da competição, do acúmulo, do enriquecimento e de poder. “Trata-se de uma lógica expansiva: quanto mais tem, mais procura ter. Nesse contexto, a busca incessante pelo poder transforma-se em desejo de domínio. É o que sucedeu com grande parte das igrejas evangélicas.”
As novas gerações de pastores, oriundos de seminários teológicos tradicionais, seguem o mesmo modelo e, por conseguinte, estão comprometidas com a agenda fundamentalista. Os que destoam são tachados de hereges, liberais, lançados na fogueira da nada santa inquisição cibernética. Discordar das lideranças tradicionais é pagar um alto preço. Mas existe uma parcela do segmento evangélico disposta a enfrentar essa realidade. Em tempos de mobilização das massas pelas redes sociais, há um movimento crescente de líderes e pensadores cristãos que tem abandonado o fundamentalismo estéril e abraçado um evangelho mais engajado e comprometido com as transformações sociais.
Hermes Fernandes sugere que as igrejas redescubram sua vocação primordial, que é “o exercício da misericórdia e a proclamação da justiça”. Para ele, é preciso parar de policiar corpos e atitudes morais, e anunciar um novo tempo em que a miséria e as desigualdades sociais sejam combatidas.
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