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Poder

O que Bolsonaro quer esconder com mudanças na Lei de Acesso à Informação?

Publicado em 25/01/2019 12:00 -

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Após o presidente em exercício, general Hamilton Mourão, modificar a Lei de Acesso à Informação (LAI), a sociedade passou a questionar os motivos do governo de Jair Bolsonaro (PSL) para tomar essa medida que praticamente fere de morte o dispositivo criado em 2011, durante a gestão de Dilma Rousseff (PT) na presidência. O tema ganhou os trend topics mundiais e é o assunto mais comentado do dia nas redes sociais.

A alteração, publicada na última quinta-feira (24) no Diário Oficial da União, permite que servidores públicos comissionados decretem sigilo por 25 anos de informações públicas. Antes, apenas presidente, vice, ministros, comandantes das Forças Armadas e chefes em missões diplomáticas eram autorizados.

Para o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), o decreto "destrói a LAI, importante instrumental de garantia da transparência na administração pública. Eles não querem transparência. É o segundo decreto que usurpa competências do parlamento", disse, em referência também à edição da medida que facilita a posse de armas no país.

Quem também se manifestou foi o deputado federal eleito Marcelo Freixo (Psol-RJ). Conhecido por seu trabalho no combate às milícias no Rio de Janeiro, Freixo questionou os motivos do governo, ao lembrar de suspeitas de envolvimento da família do presidente com os grupos criminosos cariocas. "Depois das movimentações financeiras suspeitas e das relações do clã Bolsonaro com milicianos, o governo enfraquece a LAI. Um ataque à transparência e à democracia."

O PSOL afirmou que entrará no STF (Supremo Tribunal Federal) com uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) pedindo a nulidade do decreto. Além disso, o partido apresentará um projeto de decreto legislativo na Câmara para sustar o conteúdo do texto. "O decreto presidencial, na prática, esvazia a LAI [lei de acesso], violando princípios básicos da Constituição Federal", afirma em nota.

Outra parlamentar, Erika Kokay (PT-DF) lembrou que a LAI foi um avanço editado durante o governo de Dilma Rousseff. "É um avanço dos governos democráticos e populares do PT. Ela aumentou a transparência e o controle público dos atos governamentais. Governo autoritário de Bolsonaro estabelece sigilo ultrassecreto a dados públicos. O que querem esconder?", questionou.

Como a mudança na lei vai no sentido contrário do que pregava o ministro da Justiça, Sergio Moro, enquanto era juiz, o deputado Paulo Pimenta (PT-RS) cobrou manifestação do grupo da Operação Lava Jato. "Moro, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, e o (procurador) Deltan Dallagnol vão bater palmas?"

Reação

Diretor-executivo da Transparência Brasil, entidade que monitora ações do poder público, o economista Manoel Galdino diz que as alterações podem representar um retrocesso na publicidade dos atos do governo. 

“Há hoje, no Brasil, um certo grau de subjetividade para definir algo que coloca risco à sociedade e ao Estado. [A mudança] sugere que a gente vai ter mais variação de critérios para classificar como ultrassecreto, o que pode representar um risco à transparência”, afirma o economista.

A entidade dirigida por ele divulgou nota em que repudia a medida e diz que "o governo levanta suspeitas e temores de retrocesso" ao não seguir "as boas práticas de governo aberto". Critica ainda a ausência de diálogo do Planalto antes da mudança. "Esperamos que explique à sociedade as razões que motivaram a decisão", afirma o texto.

Galdino integra o Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção da CGU (Controladoria-Geral da União). O colegiado, formado por membros da sociedade civil e do Executivo, é responsável por discutir esse tipo de mudança. A própria minuta da Lei de Acesso, aprovada em 2011, foi rascunhada pelo grupo.

Segundo Galdino, o conselho não foi consultado pelo governo. “A gente teve uma reunião no dia 12 de dezembro, que foi, inclusive, a posse dos novos membros. O ministro [da CGU, Wagner Rosário] foi bem claro ao dizer que as eventuais alterações na LAI [lei de acesso] seriam discutidas junto aos membros do conselho, seriam apresentadas lá, e não houve isso. Foi uma mudança que nos pegou de surpresa. A gente não sabe por que o governo fez”, declarou.

A Lei de Acesso à Informação prevê a publicidade sobre os atos do gestor público como regra, cabendo decretar segredo sobre informações apenas em casos excepcionais. 

Para a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o novo decreto é “esquisito” e “bastante prejudicial”. A gerente-executiva da entidade, Marina Atoji, avalia que, ao limitar o número de autoridades capazes de classificar informações como ultrassecretas, a versão anterior do decreto assegurava, de alguma forma, de que o sigilo seria usado de forma mais pontual. 

Quando se expande essa prerrogativa a um grupo muito maior de servidores, segundo ela, há a possibilidade de esse tipo de restrição ser aplicada com muito mais frequência.

Outra questão levantada pelas entidades é que ministros são figuras públicas e, nessa condição, estão sujeitos a maior constrangimento ao, eventualmente, classificar uma informação como ultrassecreta sem justificativa adequada. Isso não ocorreria com funcionários públicos de menor escalão. 

O ex-presidente da Comissão de Ética da Presidência da República Mauro Menezes, que ocupou o cargo de 2016 a 2018, classificou a mudança como "deplorável". "O sistema de transparência pública sofre um golpe duro com essa ampliação indiscriminada dos agentes capazes de impor sigilo a dados públicos."

Para Mônica Sapucaia Machado, professora do IDP-SP (Instituto Brasiliense de Direito Público) e especialista em administração pública, a mudança na regulamentação da Lei de Acesso à Informação subverte o espírito dela.

“A lei não foi feita para classificar documentos, ela foi feita para ampliar a informação. O governo pode não expor determinadas decisões em tempo real, isso abre a porta para ele não informar a população e os meios de comunicação. Parece um contrassenso no combate à corrupção”, disse.

Outro efeito pode ser eximir os políticos de primeiro escalão, como os ministros, do ônus de classificar dados como sigilosos. “Se isso [a restrição] vem à tona, você pode dizer que foi um erro e que vai reverter. De certa forma, é um jeito de se eximir da responsabilidade, colocando-a num funcionário. 'Não é comigo, é uma decisão técnica'.”

“Mas isso são especulações. O que preocupa é que [a mudança] restringe um direito constitucional [o direito à informação] e não vem embasada numa justificativa sólida”, afirmou.

Kumi Naidoo, secretário-geral da Anistia Internacional, fala em "muita preocupação". "Isso causa muita preocupação. É um sinal de limitação da abertura, da transparência e um ataque à liberdade de imprensa e o direito da população de saber o que acontece no Brasil. Aconselhamos fortemente o governo do Brasil a reconsiderar a decisão urgentemente", disse.

O Decreto

O decreto alterou as regras de aplicação da LAI e permitiu que ocupantes de cargos comissionados da gestão, em muitos casos sem vínculo permanente com a administração pública, possam classificar dados do governo federal como informações ultrassecretas e secretas —aquelas com grau máximo de sigilo de 25 anos e 15 anos, respectivamente.

O texto amplia o número de autoridades que podem tornar as informações protegidas por 25 anos. Pelo texto anterior, essa classificação só poderia ser feita por presidente, vice-presidente, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas ou consulares permanentes no exterior. Com isso, 251 pessoas estavam autorizadas a fazerem a classificação.

Agora, o decreto que entrou em vigor nesta quinta autoriza também os assessores comissionados do Grupo-DAS de nível 101.6 ou superior, entre os mais elevados do Executivo, a fazê-lo. Podem ocupar esse cargo servidores públicos ou não, que exercem funções de direção ou assessoramento superior, com remuneração mensal de R$ 16.944,90. O número de pessoas que podem decidir sobre as informações ultrassecretas passa de 251 para 449.

Além desses, as autoridades podem delegar a dirigentes máximos de autarquias, de fundações, de empresas públicas e de sociedades de economia mista também a fazerem essa classificação dos documentos públicos da esfera federal.

Representantes de entidades que militam pela transparência na administração pública criticaram as mudanças no decreto. O ex-presidente da Comissão de Ética da Presidência da República Mauro Menezes, que ocupou o cargo de 2016 a 2018, classificou a alteração como "deplorável". "O sistema de transparência pública sofre um golpe duro com essa ampliação indiscriminada dos agentes capazes de impor sigilo de dados públicos." 

Inicialmente, a Casa Civil informou que o decreto restringia o número de agentes públicos que poderia fazer as classificações.

Ao ser confrontada com os números, técnicos da SAJ (Subchefia de Assuntos Jurídicos), órgão ligado à Casa Civil e responsável pela revisão jurídica de atos do Executivo, explicaram que o novo decreto tem como objetivo uma melhor adequação ao que diz a LAI, de 2012.

Eles argumentam que a legislação falava na possibilidade de ministros poderem delegar essas funções a subordinados, mas que isso não era permitido pelo decreto anterior, editado no mesmo ano que a lei entrou em vigor.

A Casa Civil, por meio de seu corpo técnico, nega que haja diminuição de transparência e afirma que as classificações podem ser revistas a todo momento. Eles dizem ainda que a medida visa tornar menos burocrático o trabalho, alegando que os ministros ficavam sobrecarregados com a função de terem eles próprios de analisar o grau de publicidade que cada informação produzida em sua pasta teria de ter.

Questionado sobre os motivos de o decreto ter sido editado agora, o governo explicou por meio de sua assessoria que isso evitaria um problema que poderia ocorrer em abril, quando informações classificadas como ultrassecretas têm um prazo de revisão expirado, exigindo nova análise. Eles não informaram quais dados seriam esses.

O decreto editado na gestão Bolsonaro permite ainda que seja delegada a competência para que comissionados façam a classificação de informações consideradas de grau secreto, cujo prazo de sigilo é de 15 anos. Para este caso, ocupantes de cargos comissionados de nível DAS 101.5, com remuneração de R$ 13.623,39, podem ser delegados a fazer a classificação, mas ficam proibidos de subdelegar a função a outras pessoas. Há 901 cargos desse tipo no governo.

Lei da mordaça

O jornalista Ricardo Kotscho, que foi secretário de Imprensa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, disse que a edição de Mourão se trata de uma lei de mordaça. "Acaba, na prática, com a LAI editada em 2011, no governo Dilma Rousseff. Principal instrumento da sociedade para se informar sobre o que os governos querem esconder, a LAI era muito utilizada por jornalistas investigativos, uma raça em extinção."

"Esta nova modalidade da velha Lei da Mordaça dos governos autoritários ressurge um dia após o cancelamento da entrevista coletiva do presidente Jair Bolsonaro, em Davos, na Suíça, que deixou perplexos os jornalistas dos principais veículos do mundo (menos os brasileiros). Em lugar da coletiva, o presidente achou por bem dar mais uma entrevista exclusiva à Record, uma das emissoras chapa-branca do governo, para defender seu filho Flávio Bolsonaro, alvo de variadas acusações sobre suas movimentações financeiras e ligações com as milícias", completou em texto publicado no Jornalistas pela Democracia.

Contradição

A flexibilização no controle da transparência é mais uma contradição do governo de uma série recente. No último dia 7, o presidente Jair Bolsonaro disse que cobraria “transparência acima de tudo”. Há outras divergências ainda mais graves entre discurso e prática. Um presidente eleito com a promessa de “lei e ordem”, por exemplo, é o mesmo que ataca a fiscalização do Ibama que enfrenta verdadeiros bandos armados de assaltantes de madeira no interior do Brasil e é o mesmo que sugere a permissão para venda, por indígenas, de terras indígenas demarcadas, uma prática expressamente vedada pela Constituição e por toda a legislação nacional. Lei e ordem? Na campanha, fez propaganda do Ministério Público ao surfar na onda da Operação Lava Jato. Quando seu filho se tornou alvo de investigação, porém, disse que “a pressão em cima dele é para tentar me atingir”, insinuando que investigadores agem com agenda política secreta. Em outros tempos, isso se chamaria estelionato eleitoral.

ENTENDA O QUE MUDA NA CLASSIFICAÇÃO DE SIGILO

O que é a Lei de Acesso à Informação?
A lei nº 12.527, de novembro de 2011, garantiu o acesso a informações do poder público, direito previsto na Constituição. A lei foi regulamentada por um decreto em maio de 2012 —que foi agora alterado pelo governo Bolsonaro

Como ocorria a classificação?
O decreto de 2012 restringia a competência para definir que documentos teriam sigilo ultrassecreto ou secreto

  • Ultrassecreto – Somente o presidente, o vice, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas podiam dar essa classificação
  • Secreto – Grau podia ser conferido pelas mesmas autoridades e mais os "titulares de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista"

O que prevê o novo decreto?

  • Diz que agora "é permitida a delegação da competência de classificação no grau ultrassecreto" para "ocupantes de cargos em comissão do grupo-DAS de nível 101.6 ou superior […] e para os dirigentes máximos de autarquias, de fundações, de empresas públicas e de sociedades de economia mista"
  • Diz ainda que "é permitida a delegação da competência de classificação no grau secreto" para "ocupantes de cargos em comissão do grupo-DAS de nível 101.5 ou superior"

O que isso significa na prática?
Que ocupantes de cargos comissionados (servidores de carreira ou não, que são os "DAS") poderão classificar dados como ultrassecretos e secretos, o que antes era vedado


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