30/04/2024 - Edição 540

Poder

Musk dissemina fakenews sobre Lula e mostra de onde vem o esgoto em que se transformou o Twitter

Bilionário tentou silenciar críticos, pesquisadores e censurar uso de dados

Publicado em 09/04/2024 3:07 - Leonardo Sakamoto, Josias de Souza e Jamil Chade (UOL), Lucas Pordeus Léon (Repórter Brasil) – Edição Semana On

Divulgação

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O bilionário Elon Musk postou uma mentira em sua conta no Twitter ao afirmar que Alexandre de Moraes “tirou Lula da prisão”. Na verdade, o ministro do Supremo Tribunal Federal foi voto vencido no julgamento de 7 de novembro de 2019, que proibiu a prisão de réus após decisão em segunda instância — o que tirou o petista da cadeia.

Após afirmar em outra mensagem que Moraes tinha Lula “na coleira” na noite desta segunda (8), o bilionário postou: “Mas como Alexandre tirou Lula da prisão e colocou o dedo na balança para eleger Lula, Lula obviamente não tomará nenhuma atitude contra ele”.

A coluna pediu um posicionamento sobre a declaração à Presidência da República. A resposta foi de que não há o que se posicionar porque isso é sabida desinformação em relação ao voto do ministro Alexandre de Moraes no STF em 2019.

A assessoria de Lula também disse que “lamentam a divulgação de fake news em redes sociais, ainda mais pelo proprietário de uma rede social, e com fins políticos”.

Moraes foi um dos cinco ministros que votaram contra a mudança de entendimento do Supremo. Ao seu lado estavam Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia. Enquanto isso, votaram a favor das prisões apenas após o trânsito em julgado seis ministros: Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli.

O pano de fundo daquele julgamento era uma possível soltura de Lula, preso desde abril do ano anterior, na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, por conta de uma condenação em meio à operação Lava Jato na 13a Vara da Justiça Federal, confirmada pelo Tribunal Regional federal da 4a Região. No dia seguinte, foi solto.

Depois disso, e diante das provas de que houve conluio entre o então juiz federal Sergio Moro e os procuradores da República força-tarefa da Lava Jato contra o petista, a sua condenação foi anulada e Moro declarado parcial.

Musk, na mesma postagem, também afirmou que Alexandre “colocou o dedo na balança para eleger Lula”, ou seja, que o presidente do TSE teria manipulado as eleições.

A informação também não procede. As eleicões brasileiras ocorreram dentro da normalidade e o vitorioso foi reconhecido pelos Poderes Legislativo e Judiciário e pelos governos de todo o mundo, da esquerda à direita.

A declaração sobre manipulação das eleições, que ecoa a narrativa bolsonarista e trumpista, representa uma escalada nas declarações de Musk. Até agora, contudo, ele não cumpriu sua principal ameaça: ignorar as decisões judiciais brasileiras.

Desqualificação de Musk deveria inspirar qualificação do Supremo

Em sua nova incursão noturna contra Alexandre de Moraes, Elon Musk usou sua rede social para chamá-lo de “ditador brutal”. Acusou o ministro do Supremo e presidente do TSE de interferir na sucessão de 2022 em prejuízo de Bolsonaro. Insinuou que é Moraes quem manda no Brasil, pois ele tem Lula “na coleira”. Se a desqualificação do proprietário do X serve para alguma coisa é para inspirar uma reflexão da Suprema Corte brasileira sobre a conveniência de se qualificar.

No sábado, dia em que Musk iniciou o tiroteio contra Moraes, o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, participava na cidade americana de Boston de encontro promovido por pesquisadores brasileiros de Harvard e do MIT. Alheio às diatribes de Musk, Barroso acertou no olho da mosca quando declarou: “Precisamos voltar a um STF que seja menos proeminente o mais rápido possível”.

O ministro distanciou-se do alvo ao conceder sobrevida à suprema proeminência: “Não podemos fingir que essas coisas [a tentativa de golpe, o 8 de janeiro…] não aconteceram”. Barroso perdeu a mira ao empurrar a volta à normalidade para um ponto incerto da folhinha: “Infelizmente, ainda precisamos seguir nesses processos por um pouco mais de tempo”.

A sequência dos processos é um imperioso jurídico. A impunidade de Bolsonaro e do alto-comando do golpe seria um novo atentado à democracia. Mas a emergência institucional já não se justifica. Augusto Aras foi para casa, os réus do 8 de janeiro continuam sendo condenados, e a PF faz o seu trabalho. Passa da hora de o Supremo abrir o baú dos inquéritos sigilosos de Alexandre de Moraes.

Elon Musk estaria pregando num saara virtual se, a essa altura, já estivesse exposta à luz do sol a relação de todos os bolsonaristas que Moraes desligou da tomada, a fundamentação das exclusões das redes sociais, e um lote de justificativas para manter os perfis fora do alcance dos donos por tanto tempo. Se Alexandre de Moraes já tivesse abdicado de parte de sua proeminência, não haveria um Xandão para Elon Musk chutar.

Entenda decisão de Moraes que incluiu Musk em investigação no STF

A decisão do ministro Alexandre de Moraes de incluir Elon Musk nas investigações das milícias digitais, está fundamentada e deve ser compreendida em um contexto de ameaças às instituições e da suposta tentativa de golpe de Estado envolvendo o 8 de janeiro. O entendimento é de duas juristas entrevistadas pela Agência Brasil.

Após ser atacado por Musk, Moraes incluiu o dono da plataforma X, antigo Twitter, no inquérito que investiga os supostos grupos criminosos que se articulariam na internet para promover ataques às eleições e às instituições brasileiras. No último fim de semana, ele iniciou uma cruzada contra o Judiciário brasileiro personificado no ministro Moraes.

O também dono da Tesla, uma das principais fabricantes de veículos elétricos do mundo, acusa o magistrado de censurar a plataforma e repete o discurso de parte dos investigados pelo dia 8 de janeiro. De acordo com essa tese, o Brasil viveria uma onda de cerceamento da liberdade de expressão.

A professora de direito constitucional da Universidade Estadual de Pernambuco (UPE) Flávia Santiago destacou que não existe, em nenhuma democracia do mundo, uma liberdade de expressão ilimitada e, por atuar dentro do Brasil, a plataforma está sujeita às leis e decisões judiciais do país.

“Cada democracia estabelece os seus limites. A democracia brasileira tem limites e um deles é não pôr em dúvida as próprias instituições democráticas. Isso faz parte da nossa proposta de democracia que está na Constituição de 1988”, explicou.

Os perfis suspensos que Musk defende estão envolvidos nos inquéritos que apuram crimes como a abolição violenta do Estado democrático de direito, que está tipificado na Lei 14.197 de 2021.

A professora Flávia Santiago acrescentou que a decisão de Moraes está nesse contexto de ameaças às instituições, situação que tornou o STF mais reativo.

“A gente tem, por isso, um tribunal sob pressão. Temos ainda o poder de mobilização desses discursos em relação à população e aos interessados, aos grupos políticos envolvidos, em especial quando você está tensionando as instituições. É isso que eles estão fazendo e o Supremo está numa situação muito difícil. Ele se tornou o fiador das instituições democráticas, que é o que as cortes constitucionais fazem”, afirmou.

Não é a primeira vez que Elon Musk se manifesta diretamente sobre a política interna de países da América do Sul. Em julho 2020, em um debate no X sobre a acusação de que os Estados Unidos estariam por trás da destituição do presidente boliviano Evo Morales, ocorrida em 2019, Musk afirmou: “vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”.

Conexão com milícias

A advogada Tereza Mansi, da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD), também avalia que a decisão de Moraes está fundamentada uma vez que ele tipifica os possíveis crimes praticados pelo dono do X, entre eles, obstrução de justiça, desobediência a decisões judiciais e incitação ao crime.

“A atuação dele reforça a conexão entre as milícias digitais e as plataformas digitais. Porque poderia ser o contrário. Ele poderia estar trabalhando para coibir essas condutas dentro da plataforma e ele está fazendo o inverso”, comentou.

Para a jurista, ao afirmar que não respeitará a decisão judicial, o que é crime de acordo com o artigo 330 do Código Penal, ele está incentivando as pessoas a continuarem promovendo a ruptura democrática na internet.

“Se eles tiveram aquela pena de conta suspensa e ele [Musk], arbitrariamente, reativa essas contas, ele está sim incentivando as pessoas a continuarem cometendo crimes. Há essa conexão (entre o pronunciamento do Musk e os crimes investigados pelo STF)”, completou Mansi.

Ainda segundo a especialista, a liberdade de expressão, no Brasil, não permite discurso de ódio, discriminação, racismo ou notícias falsas que coloquem em risco a democracia. “Como a gente não tem censura prévia, a pessoa pode até falar, mas ela vai arcar com as consequências das falas dela posteriormente”, acrescentou.

Desafio à Constituição

Em nota, a ABJD afirmou que a atitude do bilionário representa um grave desafio à ordem constitucional e à independência do Poder Judiciário, além de configurar ingerência estrangeira nos assuntos internos do Brasil.

“Em um contexto em que a disseminação de informações é um elemento essencial para o funcionamento saudável da democracia, é imperativo que a circulação dessas informações seja regida por princípios democráticos e éticos”, diz a entidade.

A coordenadora da Executiva Nacional da ABJD, Tereza Mansi, relembrou que os perfis já estavam suspensos há algum tempo e que a plataforma do Musk tem participado dos grupos de trabalho no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para encontrar formas de combater a desinformação que coloque em risco a integridade do processo eleitoral brasileiro.

“O ‘X’ têm participado das discussões de como coibir a instrumentalização criminosa que vem acontecendo nas redes sociais. Porque é através dela que as pessoas se organizam e se organizaram, por exemplo, pelo 8 de janeiro”, completou.

A ABJD lembrou ainda que Musk enfrenta acusações de permitir a circulação do discurso de ódio na plataforma X. “Relatos de crescimento de conteúdo racista e extremista desde que assumiu a direção da rede social X levantam sérias questões sobre seu compromisso com valores democráticos fundamentais”, acrescentou.

De acordo com o Centro de Combate ao Ódio Digital (CCDH), aumentou em 202% a média diária de publicações com palavras racistas e 58% a com termos homofóbicos se comparado com antes da aquisição da plataforma pelo multibilionário. Musk processou o CCDH nos Estados Unidos alegando que os relatórios são falsos, mas perdeu a ação na 1ª instância. O “X” prometeu recorrer.

Regulação das plataformas

O ataque de Musk contra Moraes reacendeu o debate, no Brasil, da regulação das plataformas. Lideranças ligadas ao governo federal argumentam que a medida é necessária para disciplinar melhor o funcionamento desses ambientes digitais no Brasil. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PDS-MG), acrescentou que a regulamentação é inevitável.

O tema chegou a ser pautado no ano passado. De acordo com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), o projeto não avançou por pressão das grandes empresas de tecnologia, as chamadas big techs.

Por outro lado, a acusação de Musk reacendeu as críticas da oposição à condução das investigações sobre o 8 de janeiro. Lideranças oposicionistas da Câmara e do Senado se reuniram para discutir estratégias de atuação no Parlamento.

Musk tentou silenciar críticos, pesquisadores e censurar uso de dados

Musk tentou silenciar os críticos, pesquisadores e dificultar o uso de dados da plataforma X — mas, nas cortes americanas, foi derrotado.

No final de março, um juiz federal da Califórnia rejeitou o pedido do empresário que tentava, na Justiça, prejudicar institutos que publicam avaliações sobre o comportamento de sua rede social, principalmente no que se refere a conteúdos tóxicos.

O caso envolvia o CCDH (Center for Countering Digital Hate) especializado em alertar sobre o discurso de ódio nas redes sociais.

Musk alegava que a publicação de um informe por parte da entidade afugentou publicidade, patrocinadores e investidores. No levantamento, a instituição mostrava que a plataforma não retirava do ar conteúdos que disseminavam o ódio, mesmo depois de identificados.

De acordo com o estudo:

– a empresa não tomou medidas contra 99 das 100 contas verificadas por meio do X Premium (anteriormente chamado de Twitter Blue) quando violações de discurso de ódio foram identificadas;

– o volume de postagens contendo insultos aumentou em até 202% desde que Musk assumiu o controle do Twitter;

– o número de postagens insinuando a ligação do termo “aliciamento” e pessoas LGBTQ+ mais do que dobrou nesse período;

– a verificação paga está “ajudando a espalhar desinformação”.

Nas cortes dos EUA, a rede social alegou que os dados tinham sido obtidos de forma ilegal. Para a Justiça, porém, era “evidente” que Musk tentava “punir” a instituição pela publicação do informe e “dissuadir outras” a não adotar a mesma postura crítica contra a plataforma.

“Às vezes, não fica claro o que está motivando um litígio, e somente lendo as entrelinhas de uma reclamação é que se pode tentar supor o verdadeiro objetivo do reclamante”, escreveu o juiz Charles Breyer, em sua sentença, obtida pelo UOL. “Outras vezes, uma reclamação é tão descarada e veemente sobre uma coisa que não há como confundir esse objetivo. Este caso representa a última circunstância. Este caso trata de punir os réus por seu discurso”, afirmou o magistrado.

“Não é verdade que a reclamação se refere apenas à coleta de dados. É impossível ler a reclamação e não concluir que a X Corp. está muito mais preocupada com o discurso da CCDH do que com seus métodos de coleta de dado”, diz Charles Breyer, juiz em decisão contra a empresa.

Entidades comemoram

Cabe ainda recurso, mas a decisão abre um precedente que passou a ser comemorado por dezenas de entidades nos EUA processadas pelo empresário, num esforço da plataforma para silenciar qualquer questionamento a sua atuação.

Assim que assumiu a empresa e comprou o que era o Twitter, Musk ameaçou abrir processos por difamação e levou aos tribunais a entidade Media Matters, que havia denunciado o conteúdo neonazista e antissemita da plataforma.

A decisão do tribunal reafirma que as proteções vitais da Primeira Emenda se aplicam a pesquisadores e jornalistas que usam ferramentas digitais para informar o público sobre as práticas de plataformas poderosas.Esha Bhandari, vice-diretora de projetos do Projeto de Discurso, Privacidade e Tecnologia da ACLU (sigla em ingês para ONG União Americana pelas Liberdades Civis)

Sua entidade foi uma das que lideraram a defesa dos institutos de pesquisa no processo aberto por Musk. Apoiaram ainda o caso a Electronic Frontier Foundation e a Universidade de Columbia.

“Essa é uma decisão importante que vê o processo de Elon Musk pelo que ele é — um esforço para punir seus críticos por discurso constitucionalmente protegido e para impedir que pesquisadores estudem sua plataforma”, afirma Alex Abdo, diretor de litígio da Universidade de Columbia.

“A sociedade precisa de pesquisas confiáveis e éticas em plataformas de mídia social e, muitas vezes, essas pesquisas dependem da possibilidade de estudar publicações disponíveis publicamente. A ação judicial de Musk colocou em risco esse tipo de pesquisa”, disse Abdo.

As pesquisas desses institutos são consideradas como informações cruciais para que os reguladores tomem medidas coercitivas.

Para as entidades que comemoraram a derrota de Musk, a pesquisa de interesse público “serve como um mecanismo de responsabilidade fundamental para revelar as opções de moderação de conteúdo e as políticas e práticas de privacidade das plataformas”.

“O tribunal percebeu, com razão, a tentativa da X de distorcer a Lei de Fraude e Abuso de Computador e a lei contratual para retaliar uma organização sem fins lucrativos que publicou relatórios críticos sobre conteúdo de ódio na X”, diz Cindy Cohn, diretora executiva da Electronic Frontier Foundation.

“Esse processo nada mais foi do que uma tentativa vã de impedir a pesquisa independente em uma plataforma influente de mídia social. A decisão do tribunal é um lembrete muito necessário de que a liberdade de expressão inclui o direito de investigar e criticar Elon Musk e a X”, reforça Jake Karr, vice-diretor da Technology Law & Policy Clinic da NYU, que ajudou a preparar o documento de defesa.

Para ele, a decisão serve como exemplo contra empresas do setor de tecnologia que estejam tentando “abusar do sistema jurídico dos EUA para silenciar críticas e fugir da responsabilidade pública.”

Os problemas não estão encerrados com o caso na Califórnia. Outra estratégia de Musk questionada foi a de tornar quase impossível que pesquisadores tivessem acesso aos dados da plataforma para que pudessem examinar seu comportamento. Desde que comprou a rede social, ele passou a cobrar até US$ 2,5 milhões por ano por dados.

Para centros universitários e pesquisadores, isso passou a ser proibitivo.


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