18/05/2024 - Edição 540

Poder

Minirreforma eleitoral beneficia autores de crime hediondo, adverte idealizador da Ficha Limpa

Pacote realça vocação da política para o apatifamento

Publicado em 15/09/2023 9:42 - Lucas Neiva (Congresso em Foco), Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

Divulgação OAB

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Na tarde de quinta-feira (14), a Câmara dos Deputados aprovou em plenário a segunda e última etapa da minirreforma eleitoral, que faz mudanças na legislação mirando as eleições de 2024. O projeto de lei complementar altera diretamente trechos da Lei da Ficha Limpa, vigente desde 2012. Idealizador da lei, o advogado e ex-juiz Márlon Reis alerta que o texto aprovado anula os principais efeitos desejados pela norma, aprovada em 2010 como projeto de iniciativa popular após forte pressão da sociedade civil sobre o Congresso Nacional. “Eu diria que foi a maior contribuição para a participação política do crime organizado que já se ousou tentar até o momento no Brasil”, resume. A mudança na lei, segundo ele, beneficia, sobretudo, a candidatura de condenados por crimes hediondos.

A Lei da Ficha Limpa tornou inelegíveis por oito anos aqueles agentes políticos condenados em decisões colegiadas na Justiça criminal, bem como aqueles que tiveram mandato cassado ou renunciaram para evitar uma cassação. A atual legislação conta essa inelegibilidade a partir da conclusão da pena, enquanto que a proposta da minirreforma eleitoral faz com que a punição seja contada a partir da condenação.

Além de alterar o critério de cálculo para a inelegibilidade, ela inclui a exigência de comprovação do dolo específico (intenção de provocar prejuízo) para tornar inelegíveis os agentes públicos que foram condenados em ações administrativas, e cria um limite de 12 anos para a suspensão dos direitos políticos de candidatos, aplicada quando alguém é condenado em ação penal. Para Márlon Reis, o projeto torna a inelegibilidade um fenômeno ainda mais frágil do que a situação pré-Lei da Ficha Limpa.

A grande preocupação do jurista é com os condenados por crimes hediondos, cujas penas muitas vezes superam os oito anos de inelegibilidade e os 12 de suspensão dos direitos políticos. “O maior exemplo são os casos de terrorismo, estupro, narcotráfico, homicídio, genocídio, crimes contra a saúde pública. Essas são as pessoas mais beneficiadas por essas mudanças. O prazo de inelegibilidade na atual lei é alto porque os casos são hediondos, não são pessoas que cometeram uma mera infração”, ressaltou.

Antes da criação da Lei da Ficha Limpa, o prazo de inelegibilidade era de três anos, contados a partir da conclusão da pena. O novo texto, porém, abre margem para que uma pessoa condenada por terrorismo possa se candidatar logo após a conclusão da pena, cujo prazo mínimo é de 12 anos. Em casos de pena maior, a candidatura ainda poderia ser validada sem a conclusão da pena.

No entendimento de Márlon Reis, o projeto viola a Constituição. “É um projeto natimorto, inconstitucional desde a origem. Ele confunde o período de suspensão dos direitos políticos com o período de inelegibilidade ao permitir que os dois corram ao mesmo tempo”, avalia.

Além do projeto confundir prazos, o autor da Ficha Limpa chama atenção para a incompatibilidade do projeto com a intenção manifestada na Constituição. “Essa lei promove valores opostos ao que a Constituição manda a Lei de Inelegibilidades cumprir. A Constituição manda editar uma Lei de Inelegibilidades visando determinados propósitos, e a Câmara está retirando esses propósitos”.

Com a aprovação na Câmara, os dois projetos que compõem a minirreforma eleitoral serão enviados ao Senado, onde deverão passar por uma nova análise e pela construção de um novo relatório. “É muito importante que a população cobre o Senado. Não é possível que essa atrocidade passe lá”, declarou Márlon Reis. O prazo para avaliação na Casa revisora é curto: para que tenham vigência na eleição de 2024, as normas precisam ser sancionadas até 5 de outubro. Tanto a federação PT-PV-PCdoB, principal partido do governo, quanto o PL, principal partido da oposição, votaram favoravelmente ao projeto na Câmara. Confira como votou cada deputado.

Pacote eleitoral realça vocação da política para o apatifamento

A língua portuguesa é tão rica que certas palavras permanecem escondidas nos fundões dos dicionários. Uma delas é “apatifar”. Segundo o Aurélio, significa tornar desprezível, aviltar, envilecer. E não são apenas as pessoas que se apatifam. Uma democracia também pode se apatifar, ou ser apatifada. Impossível olhar para a Câmara dos Deputados sem ser assaltado pela sensação de estar testemunhando um acentuado processo de decomposição.

Sob a batuta de Arthur Lira, a esquerda, a direita e o centrão apressam a análise de um pacote de medidas político-eleitorais. O embrulho inclui uma minirreforma que piora uma legislação já bem permissiva. O texto base foi aprovado na noite passada. Está pronta para sair do forno emenda constitucional que concede a mais generosa, ampla e desavergonhada anistia da história. Cancela multas da Justiça Eleitoral aos partidos e esmigalha o sistema de controle do gasto de verbas públicas em eleições.

Há um pouco de tudo no embrulho da Câmara, exceto probidade. Flexibilizam-se as cotas para candidaturas de negros e mulheres, as leis de Improbidade e da Ficha Limpa são passadas a sujo, reduz-se a transparência, escancaram-se as portas para a compra de votos por meio da subcontratação de cabos eleitorais e um interminável etcétera.

Reunindo velhas ideias com mumunhas novas, a Câmara encontrou uma forma sui generis de acabar com a criminalização da política. Em vez de deter os criminosos, elimina-se o crime. O espetáculo da desfaçatez antecede a definição do valor do fundão eleitoral de 2024. Cogita-se reservar para o financiamento da eleição municipal R$ 5,7 bilhões em verbas públicas.

Há mais de um século, o historiador Capistrano de Abreu propôs uma revisão constitucional revolucionária. A Constituição de Capistrano teria apenas dois artigos: “Artigo 1º – Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Artigo 2º – Revogam-se as disposições em contrário”. Quem olha para a Câmara compreende por que o espírito da proposta de Capistrano não teve futuro. A política brasileira tem vocação para o apatifamento.


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