18/05/2024 - Edição 540

Poder

Isolados: finalmente rachou o paredão do silêncio que protegia os Bolsonaro

Jair e Michelle se calam em depoimento sobre joias

Publicado em 01/09/2023 9:51 - Ricardo Noblat (Metrópoles), Josias de Souza e Leonardo Sakamoto (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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O advogado Frederick Wassef cantou no seu depoimento prestado à Polícia Federal. Cantou exatamente o que, por ora não se sabe, mas cantou. Para quem disse que não fora buscar em Nova Iorque o Rolex roubado por Bolsonaro, e foi e agora confessa que foi, é um avanço. Contra documentos mentiras não se sustentam.

O tenente Osmar Crivelatti, ex-assessor da Presidência da República, também cantou, embora menos do que a Polícia Federal desejava. É um passarinho que está aprendendo a cantar. Foi ouvido durante oito horas. Será ouvido novamente quantas vezes seja necessário para que se esgote sua produção musical.

O tenente-coronel Mauro Cid continuou cantando, e tão cedo irá parar. Com o depoimento de ontem, cantou até aqui mais de 23 horas. Cantou sobre as joias roubadas e devolvidas para esconder o crime, sobre joias não devolvidas, sobre algumas ainda desaparecidas, sobre outras que nem se sabia que existiam.

Cantou sobre as movimentações financeiras de Bolsonaro e de Michelle, sua mulher. E, naturalmente, sobre os certificados falsos de vacina contra a Covid-19. Como ex-ajudante-de-ordem de Bolsonaro, Mauro Cid conhece todos os seus segredos. A cantoria sobre o golpe está longe de terminar.

E pela primeira vez, um general, Mauro Cesar Lourena Cid, pai de Mauro Cid, fez parte do recém-formado Coral dos Canários do Planalto, que dispensa regente e por isso desafina de vez em quando. Rapazes esforçados, esses. Alguns se estranham, mas todos estão unidos pelo mesmo propósito: obter redução de pena.

Estão unidos também, à exceção de Wassef, por outro sentimento: o de que foram abandonados por seu tratador, que os deixou presos na gaiola, sem comida, sem afagos, sem futuro. Magoaram com razão. Foram abandonados, largados sozinhos, sujeitos às intempéries, à beira da desonra ou desonrados.

O par de canários imperiais, marido e mulher, fez as contas e concluiu que perderia menos se se recusasse a cantar. Aferrou-se à tese oferecida por Augusto Aras, Procurador-Geral da República, de que falta ao Supremo Tribunal Federal competência para julgá-lo. A competência seria da primeira instância da Justiça.

Tese fajuta porque roubo de joias, ataques às urnas eletrônicas e à democracia, tentativa abortada de golpe, tentativa fracassada de golpe, tudo tem conexão. O Supremo já deliberou sobre isso. Se for o caso, deliberará outra vez, e o placar provável é de 9 votos contra 2 – os dos ministros Nunes Marques e André Mendonça.

Michelle anda muito assanhadinha para o gosto cerimonioso da toga. Palavra é prata e silêncio é ouro, ensina um ditado árabe. O seu marido sabe, e por isso calou-se ultimamente. Morreu pela boca, não tem por que matar-se de novo. Michelle disse: “Não posso me submeter a prestar depoimento em local impróprio”.

Foi o ministro Alexandre de Moraes, o xerife da República, que autorizou a Polícia Federal a ouvir Michelle. Se ela acha que está certa em seguir a orientação dos seus advogados, que deixe a palavra com eles, não precisa expor-se. Muitos menos apelar para o deboche, o que fez na semana passada ao falar das joias:

“Falaram tanto de joias que em breve teremos um lançamento: Mijoias para vocês”.

A mudez do par de canários imperiais deixa seus antigos devotos sem argumentos para defendê-lo. Isso é mais corrosivo do que possa parecer neste instante. Para os devotos, a acusação de golpe vale nada, porque era para ter havido um golpe, sim, pena não ter sido um êxito. Roubo é diferente. Ladrão é mal visto.

Silêncio fez de Bolsonaro um ex-Bolsonaro

Durante quatro anos, Bolsonaro cultivou no Planalto um velho hábito: falava dez vezes antes de pensar. A loquacidade produziu poderes mágicos. O capitão tirava gambás da cartola. Crises monumentais apareceram do nada. Crises que entraram pequenas no gabinete presidencial, saíram maiores. Retirado do Poder, Bolsonaro continuou apostando na tese segundo a qual melhor do que uma crise, só duas crises. De repente, a Polícia Federal obteve um feito que muitos tentaram, mas ninguém jamais conquistou: o silêncio de Bolsonaro.

O silêncio obtido pela PF não é um silêncio qualquer. Nenhum outro silêncio é mais denso do que o silêncio de um suspeito. O silêncio exibido por Bolsonaro durante o que seria o seu quinto interrogatório soou como aquela falta de ruído que acontece quando um investigado precisa de tempo para ouvir o barulho produzido por um cúmplice que decidiu colaborar com os investigadores.

Bolsonaro arrastou para a tática do silêncio Michelle e outros suspeitos que seriam inquiridos simultaneamente sobre o caso das joias. Mas o tenente-coronel Mauro Cid, que já havia falado à polícia durante 16 horas desde a última sexta-feira, continuou falando nesta quinta. Para complicar, o general Lourena Cid, pai do ex-faz-tudo, também falou.

Sem saber a extensão do estrago produzido pela colaboração do seu ex-ajudante de ordens, Bolsonaro entregou-se aos conselhos dos advogados. Numa petição constrangedora, informou que só falará “diante de um juiz natural competente”. Escorando-se num parecer da vice-procuradora bolsonarista Lindôra Araújo, que já foi rejeitado pelo Supremo, alegou que os autos sobre as joias precisam descer para 6ª Vara Federal de Guarulhos. Uma instância que já declinou da competência em favor da Suprema Corte.

O direito constitucional dos investigados à mudez está regulamentado no artigo 198 do Código de Processo Penal. Ali, está escrito que “o silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.”

Chama-se Alexandre de Morais o magistrado que conduz Bolsonaro na sua excursão pelo purgatório que antecede o inferno de uma condenação criminal. Pobre do investigado que, não tendo nada a dizer em sua defesa, se abstém de demonstrá-lo com palavras. Juridicamente, o capitão se autoconverteu num réu indefeso. Politicamente, Bolsonaro virou um ex-Bolsonaro.

‘Joias estão virando o tríplex do Bolsonaro’, lamenta ex-ministro

Juridicamente, o silêncio de Bolsonaro foi a saída encontrada pelos advogados para ganhar tempo no inquérito sobre as joias. Serve para questionar a legitimidade de Alexandre de Moraes como juiz da causa, enquanto a defesa tenta dimensionar o tamanho do estrago produzido pela colaboração do tenente-coronel Mauro Cid.

Politicamente, aliados avaliam que a estratégia deve abrir uma fenda de difícil reparação na imagem de Bolsonaro. Um ex-ministro compara o drama de Bolsonaro com o calvário vivido por Lula no auge da Lava Jato: “As joias estão virando o tríplex do Bolsonaro”, disse, num timbre de lamento.

Ao enumerar as semelhanças, o ex-auxiliar de Bolsonaro mencionou “o fator da vantagem pessoal”, o surgimento de um réu-colaborador, a efervescência do noticiário e um juiz obstinado. A diferença, disse ele, é que Sergio Moro, o algoz de Lula, atuava no térreo do Judiciário. Havia três instâncias recursais acima dele. Alexandre de Moraes, o carrasco de Bolsonaro, opera no Supremo, na cobertura do sistema judicial. São menores as chances de reverter eventuais sentenças condenatórias.

Somando-se os três depoimentos mais recentes, Mauro Cid falou aos investigadores da Polícia Federal por cerca de 24 horas. Quando anunciou a disposição do ex-ajudante de ordens de “colaborar”, Cezar Bitencourt, o terceiro advogado de Cid, declarou que ele revelaria detalhes da venda e da recompra de um relógio Rolex. Suspeita-se que tenha repassado à PF muitos outros segredos.

Na avaliação do ex-ministro, o caso das joias, assim como o processo que resultou na prisão de Lula, é de fácil compreensão. A exemplo do sucessor, Bolsonaro passou a enfatizar supostos vícios processuais. A diferença é que, embora questionasse a legitimidade de Moro para julgá-lo, Lula não se negou a depor quando foi intimado.

O receio dos aliados é que o medo das revelações de Mauro Cid produza um antibolsonarismo semelhante ou superior ao antipetismo que impulsionou a vitória de Bolsonaro em 2018.

‘Bolsonaro Fujão’ bomba na rede

Jair e Michelle exerceram seu direito a ficarem calados no depoimento à Polícia Federal sobre a investigação das joias surrupiadas para não produzirem provas contra si mesmos. Mas, com isso, “Bolsonaro Fujão”, “Bolsonaro Covarde” permaneceram entre os termos mais postados em redes sociais na quinta (31).

A defesa do ex-presidente e da ex-primeira-dama se aproveitou do direito constitucional ao silêncio para vender a ideia de que ele ocorreu, na verdade, por discordância do foro competente para analisar o caso. Dizem que como Jair é ex-presidente, a investigação deveria sair do Supremo Tribunal Federal e ser remetido à primeira instância.

Para isso, usaram declarações de seu fiel escudeiro, o ainda procurador-geral da República, Augusto Aras, que, em entrevista ao site Metrópoles, prestou mais um favor a Bolsonaro ao questionar a possibilidade de anulação das provas. O que, convenhamos, é uma hipótese distante porque foi Alexandre de Moraes, do STF, que autorizou tudo isso.

O silêncio foi estratégico diante da falta de um beco sem saída trazido pela fatura de provas nas investigações. Assim que o presidente deixou a sede da Polícia Federal, comentei no UOL News que a comparação com Lula foi gritante.

O petista sempre discordou da 13ª Vara Federal de Curitiba como foro para julgar o seu caso na Lava Jato – o que viria a ser reconhecido pelo Supremo com 580 dias de prisão de atraso. Mas não usava essa justificativa para se furtar a responder às perguntas da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do então juiz federal, depois ministro de Bolsonaro e, hoje, senador, Sergio Moro, antes de sua condenação.

Aliados de Lula e críticos de Bolsonaro não perdoaram e trouxeram a comparação à rede nesta quinta e sexta.

Simbolicamente, a situação é muito ruim para o ex-presidente. Com exceção de uma parte de seus seguidores que vive no Bolsoverso, o universo paralelo do bolsonarismo, onde cloroquina é melhor que vacina, urna eletrônica é programada para gritar ‘Lula!’ e o Rolex pertence a Jair, o restante da população entende que um político que fica em silêncio diante da polícia sobre acusações de roubo é porque tem culpa.

Dessa forma, as posturas de Lula e de Bolsonaro produziram efeitos diferentes em suas militâncias. Os depoimentos do petista passaram a imagem de que ele estava sendo alvo de uma injustiça, tornando a sua militância mais aguerrida para sair em sua defesa. Por outro lado, o silêncio do ex-presidente frustrou parte da militância que imaginava que ele esclareceria tudo aos policiais e depois daria uma grandiosa entrevista coletiva.

Saiu rapidinho, sem falar com a imprensa.


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