Poder
Publicado em 30/11/2018 12:00 -
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Dos 81 senadores com mandato a partir de fevereiro de 2019, 59% serão novos. É o maior índice de renovação das últimas três décadas. Na Câmara, a renovação foi de 52,5%, o mais alto percentual desde 1994. Vários outros fatores permitem afirmar que estamos diante de um quadro de ruptura política, que se reflete na composição do Congresso Nacional.
Eis alguns elementos de ruptura: (a) o brutal esvaziamento do PSDB, do MDB e de outras forças de centro, que elegeram 152 deputados federais em 2014 e só 97 agora; (b) o fato de a internet ter superado as demais mídias como principal meio de propaganda eleitoral, inclusive para o Legislativo; (c) o grande número de parlamentares novatos – 118 na Câmara e 9 no Senado –, que chegarão a Brasília sem terem passado por nenhum mandato eletivo anterior; (d) uma “bancada da bala” três vezes maior, que reunirá quase cem congressistas em torno de teses como o armamento civil e o combate inclemente a criminosos; (e) a inédita ascensão eleitoral de um partido de ultradireita; e (f) o fim da polarização PT/PSDB.
Privilegiarei neste artigo os dois últimos temas, chamando atenção para uma tendência que as urnas de outubro sinalizaram: o novo perfil do Parlamento tende a provocar (g) um fantástico deslocamento da agenda nacional.
Um partido hegemônico de extrema direita
Até os líderes do PSL se espantaram ao saber que passariam a contar com uma bancada federal de 52 deputados, menor apenas que a do PT (56). Foi melhor do que as suas previsões mais otimistas.
Com 10% da Câmara e 5% do Senado, mesmo com o esperado aumento das duas bancadas em razão da adesão de congressistas eleitos por outras siglas, claro que Bolsonaro e PSL dependerão sempre de alianças com outros partidos para ter maioria no Parlamento. Mas a legenda, que era quase nada antes da chegada do capitão, teve um desempenho impressionante.
Além do presidente da República, elegeu três governadores (SC, RO e RR) e um total de 147 políticos. Isso lhe garantiu honroso terceiro lugar no ranking das agremiações partidárias com mais cargos conquistados nas eleições. Foi ultrapassada, por pequena margem, somente por PT (157) e MDB (154). A diferença é que os dois últimos tiveram uma queda de 42% e 45%, respectivamente, entre 2010 e 2018. O PSL cresceu 635%.
Por que “extrema direita”? Grande parte, possivelmente a maioria, dos 57,8 milhões de eleitores que optaram por Bolsonaro no segundo turno o fizeram por um ou mais dos seguintes motivos: esperança em melhores dias na economia; ênfase dada pelo candidato a áreas como segurança e corrupção; rejeição ao PT de Fernando Haddad; afinidade com a agenda econômica liberal; e promessa de renovação política. Evidente que tais aspirações não podem, por si só, ser associadas ao ultraconservadorismo.
A reforma da Previdência divide opiniões e deve indicar o rumo que o bolsonarismo tomará a partir do choque de três visões: o liberalismo de Paulo Guedes, o corporativismo dos militares e o pragmatismo dos políticos.
Há, no entanto, um conjunto de características na agenda e nas práticas de Bolsonaro – e, de tabela, no PSL – que permitem facilmente identificá-los como extremistas. Entre elas, a defesa da ditadura de direita como forma legítima de governo (renegam-se apenas as ditaduras de esquerda); a exaltação de torturadores; o elogio da violência como arma contra os adversários e contra o crime; a ostensiva campanha contra direitos das mulheres e de outros segmentos sociais, como LGBT, negros, indígenas e quilombolas; e, sobretudo, o frágil compromisso com as regras democráticas.
Quando disse que aceitaria os resultados eleitorais só em caso de vitória, Bolsonaro demonstrou pela enésima vez seu pouco apreço pela democracia. E isso tem se repetido, da parte dele, de seus seguidores e assessores, em várias situações posteriores à eleição, como nas frequentes tentativas de afrontar o trabalho dos jornalistas e no pedido para que professores sejam gravados em sala de aula. Sem falar que o vice-presidente eleito, o general da reserva Hamilton Mourão (PRTB), já mencionou mais de uma vez a possibilidade de intervenção militar para “garantir a ordem”.
Fim da era PSDB/PT
Tucanos e petistas disputaram entre si, e venceram, seis eleições presidenciais sucessivas, entre 1994 e 2014, o que em geral ajudou a formar bancadas significativas para o Legislativo. Essa era, marcada pela polarização PSDB/PT, chegou ao fim. Aliás, o bolsonarismo raiz coloca os dois partidos dentro do mesmo saco ideológico, associando-os ao “esquerdismo irresponsável” que quebrou o Brasil.
No caso do PSDB, os 29 deputados federais eleitos em outubro mostram que o partido mergulhou mais fundo no processo de decadência que vive desde 1998, quando elegeu 99 deputados federais e foi o partido com maior votação para a Câmara. Agora, fez a nona maior bancada, empatado com o DEM.
Sob o aspecto eleitoral, também perderam força legendas grandes como o MDB e médias como PP, PR e PTB. Essas últimas, assim como outras menores de perfil conservador, tendem a compensar o que não obtiveram nas urnas com a busca de um lugar ao sol no latifúndio governista.
Impossível afirmar para onde estamos indo, mas é notório que a correlação de forças se deslocou para a direita. Após as eleições de 2014, os partidos com esse perfil passaram a contar com 202 deputados e 22 senadores. Agora, terão 264 cadeiras na Câmara e 37 no Senado.
Ganhar e perder posições faz parte do jogo partidário. O que está em questão aqui é algo maior. É o esgotamento de um ciclo político em que as principais forças antagônicas, PT e PSDB, e as bancadas que orbitavam em torno delas se mantinham conformadas em uma espécie de pacto que incluía a conciliação de política econômica ortodoxa com medidas compensatórias na área social, o respeito aos direitos humanos, o controle civil das Forças Armadas e o multilateralismo nas relações externas.
Basicamente, está sob risco tudo aquilo que alguns chamam de “pacto de 1988”, em homenagem ao ano de promulgação da Carta constitucional em vigor. É sintomático que, depois de eleito, Bolsonaro tenha aparecido várias vezes com um exemplar da Constituição Federal nas mãos, para afastar temores estimulados pelos pendores antidemocráticos dele e de sua turma. Para seguidores do “mito” talvez seja o bastante, não para analistas independentes.
Militares voltam a ocupar postos civis, incluindo cargos-chave do ministério. As bancadas da bala, do boi e da Bíblia, tripé de sustentação do bolsonarismo no Congresso, exibem uma pauta que em vários aspectos colide com princípios constitucionais. A “escola sem partido”, defendida a pretexto de impedir que professores façam doutrinação ideológica de alunos, põe em questão a liberdade de expressão e de cátedra. O Estatuto da Família proíbe o registro civil de parceiros do mesmo sexo e representa retrocesso em relação a vários direitos reconhecidos pelo Judiciário em favor das mulheres e de outros segmentos sociais.
O novo perfil do Parlamento tende a provocar um fantástico deslocamento da agenda nacional. O que está em questão é o esgotamento de um ciclo político.
Juristas questionam a constitucionalidade de proposições como a redução da maioridade penal, o fim das audiências de custódia (nas quais o preso em flagrante é apresentado ao juiz em até 24 horas para que se confirme a legalidade da prisão) e outras medidas cogitadas no campo da segurança pública. No plano externo, a perspectiva é de se curvar às diretrizes de Trump. E, na esfera econômica, pergunta-se se o necessário ajuste fiscal será feito na medida dos limites humanos de uma nação em sua maioria pobre e na qual a plena realização do “Estado mínimo” pode causar verdadeira tragédia social.
O que vem por aí é incerto, mas já se sabe quando e qual será a primeira grande batalha: a reforma da Previdência, que o novo governo quer aprovar no primeiro semestre de 2019 para a economia enfim sair do atoleiro em que está metida há quatro anos. O assunto divide opiniões e deve indicar o rumo que o bolsonarismo tomará a partir do choque de três visões: o liberalismo quebra-louças de Paulo Guedes, o corporativismo defensivo dos militares e policiais e o pragmatismo dos políticos fisiológicos que aderiram ao “mito”. Alguns deles topam aprovar regras de aposentadoria mais rígidas desde que elas sejam aceitas pela maioria da opinião pública ou que eles sejam compensados, com cargos e outras benesses do poder, pelo desgaste eleitoral que o seu voto lhes pode trazer – o velho toma-lá-dá-cá com o qual Bolsonaro prometeu romper.
Este texto foi produzido originalmente para a Revista da Abrig, que é publicada pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais.
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