18/05/2024 - Edição 540

Poder

Congresso hostil à democracia tenta emparedar a Justiça

A pretexto de enquadrar o STF, Senado piora o que já melhorou

Publicado em 05/10/2023 9:21 - Ricardo Noblat (Metrópoles), Gabriel Valery (RBA), Josias de Souza (UOL) - Edição Semana On

Divulgação Foto: Pedro França/Agência Senado

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Nada demais que haja deputados federais e senadores favoráveis à fixação de mandato para ministros do Supremo Tribunal Federal. E que defendem mudanças na Constituição para dar ao Congresso o direito de rever decisões da Justiça das quais discorde.

É verdade que, nesse caso, a pretensão cheira a naftalina. A Constituição do Estado Novo, o período ditatorial da Era Getúlio Vargas que começou com um golpe militar em 1930, permitiu que a vontade do Congresso prevalecesse sobre a da Justiça.

A vontade do Congresso, não, a de Vargas. Porque o Congresso não passava então de um puxadinho do governo. É assim em ditaduras de direita ou de esquerda tuteladas pelas Forças Armadas. Aqui deixou de ser assim com o esgotamento da ditadura de 1964.

O mundo gira, a Lusitana roda e as instituições se modernizam ou envelhecem. Acontece que o Congresso, neste momento, não está interessado em mudar a face da Justiça para que ela funcione melhor; quer emparedar a Justiça para que não o contrarie.

É, de longe, o Congresso mais reacionário dos últimos quase 40 anos. Por reacionário, entenda-se: contrapõe-se ao presente e às mudanças sociais e políticas; é hostil à democracia e clama pelo retorno ao estado anterior. Daí porque reúne tantos golpistas.

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, ontem, uma proposta de emenda à Constituição que limita decisões monocráticas e pedidos de vista em tribunais superiores. Decisões monocráticas são aquelas tomadas por um só juiz.

Um só juiz pode interromper o julgamento de uma ação com o pedido de vista do processo para estudá-lo mais detidamente. No passado recente, pedidos de vista postergaram decisões por anos a fio. Agora, não mais, só por poucos meses.

Proposta semelhante à aprovada pela CCJ, presidida pelo senador Davi Alcolumbre (União-Brasil-AP), já fora rejeitada antes pelo plenário do Senado. Pois bem: a nova proposta foi aprovada sem discussão e no tempo recorde de exatos 42 segundos.

Se não for brecada por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, ela será votada pelo plenário e, se aprovada ali, irá para a Câmara, aos cuidados do deputado Arthur Lira (PP-AL). A bancada de parlamentares bolsonaristas nas duas Casas está exultante.

Pacheco e Alcolumbre são amigos, camaradas e tocam afinados. Com o apoio de Bolsonaro, Alcolumbre se elegeu presidente do Senado em 2019. Com o apoio de Alcolumbre, Pacheco o sucedeu, elegendo-se em 2021 e reelegendo-se este ano.

Alcolumbre é candidato à sucessão de Pacheco na presidência do Senado. E Pacheco aspira a ser candidato ao governo de Minas Gerais em 2026. Os dois precisam do apoio dos bolsonaristas para realizar seus sonhos. E os bolsonaristas são inimigos do Supremo.

A reforma do Poder Judiciário é algo muito sério para sujeitar-se a votações relâmpagos, projetos pessoais, retaliações e situações esdrúxulas como as vividas pelo país nos últimos quatro anos.

Gilmar Mendes questiona sanha do Parlamento em limitar o STF

O decano do STF, ministro Gilmar Mendes, utilizou suas redes sociais para expressar sua crítica à proposta de estabelecer mandatos para os membros da Suprema Corte. É uma ideia que tem ganhado força no Congresso como reação a decisões proferidas pelo tribunal. Essa iniciativa também encontrou apoio no presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.

De acordo com Gilmar Mendes, a medida em discussão no Congresso tem um “comovente esforço retórico” para justificá-la, ressuscitando-a. O ministro argumentou que essa proposta, se implementada, poderia levar ao loteamento das vagas em benefício de determinados interesses.

Mendes levantou um ponto fundamental ao questionar por que os esforços supostamente reformistas estão concentrados exclusivamente no Supremo Tribunal Federal. Isso, particularmente após a tentativa de golpe de Estado que o país enfrentou. “Sonham com as Cortes Constitucionais da Europa (contexto parlamentarista), entretanto, o mais provável é que acordem com mais uma agência reguladora desvirtuada”, disse.

“A pergunta essencial, todavia, continua a não ser formulada: após vivenciarmos uma tentativa de golpe de Estado, por que os pensamentos supostamente reformistas se dirigem apenas ao Supremo?”, questionou o decano.

Gilmar Mendes x Pacheco

Por sua vez, Rodrigo Pacheco defende a elaboração de um anteprojeto que estabeleça o tempo de permanência de cada ministro na Corte. Além disso, fixa uma data para a entrada em vigor da nova regra. É importante ressaltar que um anteprojeto é uma versão preliminar de um texto que ainda não entrou formalmente em tramitação no Legislativo.

Rodrigo Pacheco espera que o anteprojeto, elaborado por um grupo de senadores, esteja pronto até o final do ano. Isso permitiria que o projeto em si começasse a tramitar a partir de 2024. As discussões também incluirão temas como a idade mínima para ocupar uma vaga na Corte. Também aposentadoria especial, quarentena e o modelo de transição para a nova regra, caso ela seja aprovada.

Atualmente, os ministros do STF não têm mandatos com limites de duração. Eles podem permanecer no cargo até completar 75 anos de idade.

A pretexto de enquadrar o STF, Senado piora o que já melhorou

Operando no modo chantagem, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou em 42 segundos proposta de emenda à Constituição que interfere no funcionamento do Supremo Tribunal Federal. A pretexto de aperfeiçoar o sistema decisório da Corte para prover segurança jurídica, os senadores pioraram o que Rosa Weber havia melhorado. Ignoraram resolução aprovada pelo Supremo em dezembro de 2022.

A proposta prevê que pedidos de vista passem a ser coletivos. E fixa prazo para a devolução dos processos em nove meses -seis, renováveis por mais três. Um retrocesso. Na resolução aprovada sob Rosa, o antídoto contra os pedidos de vista-bloqueio é mais eficaz. Manteve-se a prerrogativa dos ministros de requisitarem a vista. Mas, para evitar o engavetamento indiscriminado, os processos serão automaticamente liberados para análise dos demais ministros após um prazo de 90 dias.

A emenda do Senado proíbe a concessão de decisão monocrática que suspenda leis ou atos normativos que atinjam a coletividade, atos do presidente da República ou dos presidentes da Câmara, do Senado e do Congresso. Prevê também que decisões liminares tomadas individualmente sejam submetidas ao colegiado em até quatro meses. Na resolução providenciada por Rosa, medidas cautelares decididas na canetada por apenas um ministro precisarão, em casos de urgência, ser imediatamente submetidas à análise dos demais integrantes do plenário ou da Turma responsável.

Líder da chantagem, o senador Davi Alcolumbre, presidente da comissão de Justiça, não está interessado em melhorar o Supremo. Olha para o próprio umbigo. Candidato à presidência do Senado, opera para obter a simpatia e os votos da bancada bolsonarista.

Luís Roberto Barroso, o sucessor de Rosa Weber, reagiu instantaneamente. Declarou-se contra ideias controversas como a fixação de mandato para os magistrados e extravagantes como um projeto que autoriza o Congresso a derrubar decisões não unânimes do Supremo —uma bizarrice que vigorou no velho Estado Novo, durante a ditadura de Getúlio Vargas. Evocou em defesa do Supremo a ação redentora contra o negacionismo que infelicitou os brasileiros durante a pandemia e o golpismo que ameaçou a democracia. Tudo verdade.

Referido-se especificamente ao conteúdo da PEC aprovada na votação relâmpago da comissão de Justiça, Barroso declarou não ver razões para mexer no funcionamento do Supremo. Meia verdade. É preciso levar a sério os avanços obtidos sob Rosa.

Por exemplo: Em decisão individual, o ministro Nunes Marques suspendeu as quebras de sigilo que a CPI do Golpe impôs ao bolsonarista Silvinei Vasques, o ex-chefe da Polícia Rodoviária Federal. Diante da péssima repercussão, Nunes Marques liberou a liminar para apreciação da Segunda Turma. O início do julgamento foi marcado para 20 de outubro, dois dias depois da data de encerramento da CPI.

Ou seja: A blindagem fornecida por Nunes Marques a Silvinei foi assegurada, pois a CPI não poderá mencionar em seu relatório final os dados sobre os sigilos bancário, fiscal e telemático do suspeito.

Todo brasileiro comprometido com o aperfeiçoamento institucional deve torcer para que a esquisitice aprovada na comissão de Justiça seja bloqueada no plenário do Senado. Simultaneamente, convém cobrar seriedade das togas. Para exigir respeito externo, o Supremo precisa se dar ao respeito.


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