18/05/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro propôs golpe às Forças Armadas; comandante da Marinha aderiu, diz Cid

Almirante Almir Garnier Santos teria colocado tropas à disposição para golpe de Estado. Exército e Força Aérea não teriam aderido

Publicado em 21/09/2023 9:45 - Aguirre Talento, Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Yurick Luz (DCM), João Filho (The Intercept_Brasil) – Edição Semana On

Divulgação Agência Brasil

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Em um dos depoimentos que compõem a delação premiada que fechou com a Polícia Federal, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid relatou que, logo após a derrota no segundo turno da eleição, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) recebeu das mãos do assessor Filipe Martins uma minuta de decreto para convocar novas eleições, que incluía a prisão de adversários.

Segundo o relato de Cid, que é tenente-coronel do Exército, Bolsonaro submeteu o teor do documento em conversa com militares de alta patente. O delator disse ainda que o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, manifestou-se favoravelmente ao plano golpista durante as conversas de bastidores, mas não houve adesão do Alto Comando das Forças Armadas.

Esse relato consta em um dos anexos com depoimentos já prestados pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro na delação, de acordo com duas fontes que acompanharam as negociações. Cid contou aos investigadores que testemunhou tanto a reunião em que Martins teria entregue o documento a Bolsonaro quanto a do então presidente com militares.

O capítulo da delação premiada sobre as tratativas golpistas foi o que mais despertou o interesse da Polícia Federal. Por causa dos detalhes inéditos, os investigadores decidiram assinar o acordo de colaboração, que foi conduzido pelo advogado Cezar Bitencourt e homologado no último dia 9 pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes.

Uma das suspeitas dos investigadores é que essas articulações resultaram nos atos golpistas do 8 de janeiro.

Cid, que estava preso desde maio após uma operação da PF que tinha como objeto a falsificação de cartões de vacinação, deixou a prisão após a homologação do acordo. Além de contar aos investigadores sobre os planos golpistas, o tenente-coronel apresentou informações sobre outros temas, como o esquema de venda de joias, as fraudes em certificados de vacina e as suspeitas de desvios de recursos públicos do Palácio do Planalto.

Os primeiros depoimentos da delação premiada já foram colhidos pela PF. Agora, os investigadores irão realizar diligências para verificar a veracidade das informações apresentadas e podem chamar Cid para esclarecimentos complementares.

O que Cid contou

O tenente-coronel relatou à PF como uma minuta golpista chegou às mãos de Jair Bolsonaro, após a derrota nas eleições, e os desdobramentos do plano de golpe.

– Cid afirmou que Filipe Martins, então assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência, levou um advogado constitucionalista para uma reunião com Bolsonaro no fim do ano passado. Um padre também teria participado desse encontro. O tenente-coronel, entretanto, disse não se lembrar dos nomes desses dois personagens.

– Nessa reunião, de acordo com o relato do tenente-coronel, o constitucionalista e Filipe Martins apresentaram a Bolsonaro uma minuta de decreto golpista. O documento sugeria a convocação de novas eleições e autorizava o governo a determinar a prisão de adversários.

– Bolsonaro recebeu em mãos o documento, mas não externou sua opinião sobre o plano golpista, segundo a delação. A PF investiga se é a mesma minuta golpista encontrada na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.

– O documento apreendido na residência de Anderson Torres em janeiro também autorizava a prisão de adversários, como o decreto golpista entregue por Filipe Martins a Bolsonaro. A minuta golpista de Anderson Torres determinava a decretação de um “estado de defesa” na sede do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) com o objetivo de apurar supostas irregularidades nas eleições, o que poderia resultar na convocação de um novo pleito.

– Cid contou aos investigadores que, posteriormente, Bolsonaro teve reuniões com militares de alta patente e mostrou a eles parte do documento para verificar a receptividade à ideia do plano golpista. O único apoiador, de acordo com o relato do delator, foi o comandante da Marinha, almirante Garnier.

– O almirante já havia dado demonstração pública contra a posse de Lula, quando se negou a participar de cerimônia de transmissão do cargo ao comandante da Marinha escolhido por Lula, Marcos Sampaio Olsen, em uma quebra de protocolo.

– O tenente-coronel relata uma movimentação errática de Bolsonaro a respeito do tema. Apesar de em alguns momentos dar sinais favoráveis a planos golpistas, ele não chegou a autorizar expressamente seus auxiliares a colocar algum plano desses em prática. Os diálogos com os generais não resultaram na execução das intenções golpistas.

Abr

Quem é Almir Garnier Santos

O tenente-coronel Mauro Cid afirmou, em delação à Polícia Federal, que o ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, manifestou apoio ao plano golpista em conversas internas, embora o Alto Comando das Forças Armadas não tenha aderido a essa proposta.

Cid relatou que, logo após a derrota no segundo turno da eleição, o então presidente Jair Bolsonaro recebeu das mãos do assessor Filipe Martins uma minuta de decreto para convocar novas eleições, que incluía a prisão de adversários.

O ex-capitão, segundo Cid, teria participado de reuniões tanto com Filipe quanto com militares. O ex-ajudante de ordens ainda disse que Garnier teria colocado as tropas à disposição de Bolsonaro para o golpe.

Almir Garnier Santos nasceu em 22 de setembro de 1960, em Cascadura, no Rio de Janeiro. Ele ingressou, aos dez anos de idade, como aluno do curso de formação de operários, na extinta Escola Industrial Comandante Zenethilde Magno de Carvalho.

Ele se graduou Técnico em Estruturas Navais, na Escola Técnica do Arsenal de Marinha (AMRJ), em 1977, tendo estagiado nas Fragata Independência e União, à época em construção na carreira do AMRJ. No mesmo ano iniciou o Curso de Formação de Oficiais da Reserva da Marinha.

Em 1978, o bolsonarista ingressou na Escola Naval (Rio de Janeiro -RJ), formando-se em 1981. Entre os anos de 1981 e 1991, o então tenente Garnier, desenvolveu suas habilidades operativas servindo a bordo dos navios mais modernos da Esquadra brasileira à época.

Anos mais tarde, em 31 de março de 2010, o apoiador do ex-presidente foi promovido ao posto de Contra-Almirante, em 31 de março de 2014 ao posto de Vice-Almirante e em 25 de novembro de 2018 ao posto de Almirante de Esquadra.

Antes de assumir o cargo de Secretário-Geral do Ministério da Defesa em janeiro de 2019, comandou o 2º Distrito Naval por dois anos. No Ministério da Defesa, atuou por mais de dois anos e meio como Assessor Especial Militar do Ministro, tendo servido aos ministros Celso Amorim, Jaques Wagner, Aldo Rebelo e Raul Jungmann.

Garnier, que é considerado o mais bolsonarista dos antigos chefes das Forças Armadas, decidiu romper a tradição e não participar da cerimônia de passagem de comando da Força. Agora, quem está no posto maior da Marinha é o almirante Marcos Sampaio Olsen.

O ex-comandante da Marinha queria entregar o cargo antes da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele chegou a planejar a cerimônia para o dia 28 de dezembro. O Alto Comando da Marinha, no entanto, se reuniu às vésperas do Natal e convenceu Garnier a entregar o cargo somente em janeiro.

O bolsonarista disse ao almirantado que estava decepcionado com a vitória de Lula, razão pela qual gostaria de deixar o posto antes da posse. Apesar da vontade pessoal, de acordo com uma pessoa presente na reunião, Almir decidiu submeter a decisão ao colegiado de almirantes de Esquadra.

Além disso, a ordem para a Marinha desviar seus tanques e lançadores de mísseis para um desfile no centro da capital federal horas antes da votação do voto impresso, partiu de Garnier. Enquanto o presidente da Câmara, Arthur Lira, desconsiderava a derrota do voto impresso na Comissão Especial e jogava a decisão para o plenário, veículos militares circulavam pelas ruas.

A família do almirante também esteve presente no governo Bolsonaro. Esposa de Garnier, Selma Foligne Crespio de Pinho foi contratada pela gestão bolsonarista na Secretaria-Geral da Presidência poucos meses depois de se aposentar da Marinha, em abril de 2019.

Ela passou a comandar a recém criada unidade de Estratégia, Padronização e Monitoramento de Projetos. Selma, que atuava como tecnologista no Comanda da Marinha sem concurso público desde 1993, recebeu um salário de R$ 29,5 mil.

Filho do casal, o advogado Almir Garnier Santos Junior foi contratado pela Emgepron em 29 de julho de 2019, no segundo semestre do governo Bolsonaro, ou seja, seis meses depois do pai ser alçado ao segundo posto de comando do Ministério da Defesa.

Quem é Filipe Martins

Um dos seguidores do ideólogo Olavo de Carvalho (1947-2022), Filipe Martins ocupou a função de assessor especial da Presidência para assuntos internacionais durante a gestão de Jair Bolsonaro.

– Martins foi alvo de uma denúncia do Ministério Público Federal por racismo porque, durante uma sessão no Senado transmitida pelas televisões, fez um gesto com as mãos usado pelos movimentos supremacistas brancos dos Estados Unidos. O gesto forma a sigla White Power, ou Poder Branco. A Justiça do Distrito Federal aceitou a denúncia, mas depois absolveu Martins.

– Durante as eleições, ele reproduzia nas redes sociais o discurso bolsonarista de colocar em dúvida as urnas eletrônicas, abrindo espaço para contestação do resultado do pleito. Após a derrota no segundo turno, Martins parou de fazer publicações em sua rede social.

Outro lado

Procurada na tarde e noite desta quarta-feira (20) por mensagens e telefonemas, a defesa de Jair Bolsonaro ainda não respondeu sobre o assunto.

Na semana passada, o ex-presidente já havia minimizado eventuais articulações golpistas. Ao colunista Lauro Jardim, do jornal “O Globo”, Bolsonaro afirmou que poderia “discutir qualquer coisa” mas que não haveria crime se não colocasse em prática.

“Eu posso discutir qualquer coisa, posso pensar qualquer coisa, mas se não botar em prática não tem problema”, disse Jair Bolsonaro, em entrevista.

Em declarações à colunista Mônica Bergamo, da “Folha de S.Paulo”, ele negou a intenção de desrespeitar o resultado da eleição.

“Desde que eu assumi, eu fui constantemente acusado de querer dar um golpe, tendo em vista a formação do meu ministério e as minhas posições como parlamentar. Mas vocês não acham uma só situação minha agindo fora das quatro linhas da Constituição. Nenhuma. Não seria depois do segundo turno que eu iria fazer isso. Muito menos no 8/1. Eu já não era mais nada, estava fora do Brasil”, afirmou o ex-presidente.

O ex-assessor Filipe Martins foi procurado por mensagens e contatos telefônicos, mas não respondeu. Questionado sobre o assunto, o seu advogado, João Manssur, disse que não poderia se manifestar por não ter conhecimento do assunto e não estar constituído nos autos.

A reportagem também entrou em contato com um assessor do ex-comandante da Marinha Almir Garnier, mas não houve resposta até a conclusão desta matéria.

Só faltou o papagaio no golpe de Bolsonaro

No Brasil do quase-golpe, as piadas foram atualizadas para começarem com “um padre, um advogado e um militar entraram no Palácio do Planalto com uma minuta de golpe para entregar a um político…”

Em sua delação premiada, o gerente da lojinha de joias de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, afirmou que um advogado constitucionalista, um padre e o assessor especial Filipe Martins apresentaram a Jair uma minuta de decreto golpista.

Sim, o que vivemos não foi apenas uma crise ética, mas também estética. Pois o simulacro da Sucupira, da novela O Bem-Amado, coloca Jair Bolsonaro para interpretar a versão real do populista de direita acusado de corrupção Odorico Paraguaçu em um papel que já foi do saudoso Paulo Gracindo.

A questão é de qual minuta de golpe estamos falando. A Polícia Federal investiga se é a mesma que foi encontrada em uma operação na residência do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres – que ficou quatro meses preso neste ano em meio as investigações sobre sua omissão diante dos atos golpistas de 8 de janeiro como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal.

O ex-ministro tratou o documento, que previa intervenção dos militares no TSE para anular eleições, como uma bobagem que lhe foi entregue e ele esqueceu de jogar no lixo. A questão é que o texto ganhou sentido quando visto como segunda etapa da decretação de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) prevista na primeira minuta do celular de Cid.

Essa minuta acabou sendo citada pelo ministro Benedito Gonçalves, relator da ação no Tribunal Superior Eleitoral, que levou à inelegibilidade de Bolsonaro. Confirmada que a minuta foi a mesma de Torres, vai ficar mais claro por que bolsonaristas se esgoelaram em praça pública para atacar o uso do documento.

O ex-presidente foi julgado por fazer uma micareta golpista no Palácio do Alvorada a fim de contar mentiras sobre a urna eletrônica para embaixadores estrangeiros, em uma espécie de ato de campanha eleitoral que usou, ilegalmente, a estrutrura do Estado e, portanto, dinheiro público.

Na ação contra Jair, a denúncia apresentou que a reunião com embaixadores disseminou desordem informacional sobre as urnas como estratégia para inflamar o eleitorado e incitar descrédito no resultado. Isso teria ocorrido como parte de um plano de caráter golpista por parte de Bolsonaro.

A minuta encontrada na casa de Anderson Torres foi acrescentada ao processo sob a justificativa de que ela mostrava aonde essa movimentação toda foi parar. Ou seja, há uma correlação estrita.

A lei permite ao juiz conhecer fatos ocorridos ou revelados depois de a ação ser proposta. O TSE havia decidido que não se pode usar essa norma para criar uma ação nova dentro de uma que já existe, mas apenas para trazer fatos relacionados com a “causa de pedir” – o conjunto de fatos expostos na demanda e instrumentalizados na petição inicial.

Além dessa, a Polícia Federal encontrou outra minuta golpista e estudos para apoiar um golpe de Estado no celular do tenente-coronel Mauro Cid.

Esse documento permitiria ao seu antigo chefe convocar as Forças Armadas em caso de perturbação de caos. Caos que poderia surgir, por exemplo, com a detonação de uma bomba em um caminhão-tanque que explodisse o Aeroporto de Brasília, matando centenas de pessoas – como a frustrada tentativa terrorista de 24 de dezembro do ano passado.

A minuta estava em mensagens trocadas entre Cid e o sargento Luís Marcos dos Reis – ambos presos na operação que investiga a fraude nos registros de vacinação de Bolsonaro. Também foram encontradas propostas sobre como convencer a cúpula do Exército a entrar na empreitada.

Parece piada que duas minutas de golpe circularam entre a alta cúpula do governo Jair Bolsonaro e que uma delas (ou uma terceira) foi levada a ele por um advogado, um padre, um militar e um assessor acusado de fazer gestos de supremacia branca no Senado.

Parece piada, mas não é. E se fossem um pouco menos toscos, a democracia teria sucumbido.

Delação de Cid sobre o golpe se encaixa no roteiro de Bolsonaro

O que há de mais assustador no capítulo da delação de Mauro Cid sobre a tentativa de golpe é que as revelações do ex-ajudante de ordens sobre os planos de Bolsonaro são inacreditavelmente críveis. Ligando-se os segredos testemunhados por Cid com episódios que marcaram o isolamento de Bolsonaro após a derrota para Lula, constata-se que o Palácio da Alvorada foi convertido numa espécie de chocadeira do ovo da serpente que tentou dar o bote no dia 8 de janeiro.

No final de novembro, após visitar Bolsonaro, o general Braga Netto, vice na chapa derrotada, parou o carro no cercadinho para conversar com um grupo de bolsonaristas. “Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora”, declarou o general, enigmático. Ele pediu “paciência”. Ficou entendido que o bunker do Alvorada planejava um Apocalipse.

Um dia depois, Valdemar Costa Netto, o dono do Partido Liberal, disse ter sido pressionado por Bolsonaro num encontro no Alvorada para ingressar com ação no TSE questionando cerca de 250 mil urnas antigas usadas nas eleições de 2022. Protocolada na semana seguinte, a ação foi rejeitada. Rendeu uma multa de R$ 22,9 milhões ao PL. Ficou claro que o plano golpista passava pelo questionamento do resultado das urnas.

Na live que levou ao ar na véspera de sua fuga para a Flórida, Bolsonaro soou como se lamentasse não ter conseguido apoio para o golpe que evitaria a posse de Lula: “Eu busquei dentro das quatro linhas se tinha alguma alternativa para isso aí”, disse ele. “Certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, do Supremo, de outros órgãos e instituições”, desconversou.

Na sua delação, Mauro Cid coloca uma minuta golpista nas mãos de Bolsonaro. Previa a prisão de adversários e a convocação de novas eleições. Coisa muito parecida com o documento apreendido na casa do ex-ministro Anderson Torres. Cid contou que, em dezembro, Bolsonaro sondou a cúpula militar sobre a viabilidade da virada de mesa. Descobriu que as “minhas Forças Armadas” não eram tão suas como imaginava. Apenas o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, aderiu explicitamente ao golpe. Daí o timbre lamurioso da live que antecedeu a fuga.

A Polícia Federal não poderia dispor de um roteiro de investigação tão nitidamente esboçado. Encurtam-se os horizontes de Bolsonaro. Inelegível, ele já não via 2026. Agora, começa a enxergar as grades.

Às voltas com a síndrome do que está por vir, faz declarações esquisitas. “Eu posso discutir qualquer coisa, posso pensar qualquer coisa, mas se não botar em prática não tem problema”, declarou dias atrás.

Bolsonaro se comporta mais ou menos como o sujeito que, flagrado no instante em que tentava assassinar os pais, pede ao juiz na hora do julgamento perdão para um pobre quase órfão.

É precisa colocar os militares golpistas na cadeia

Dezessete anos de prisão. Essa foi a pena dada ao golpista Aécio Lúcio Costa Pereira, primeiro a ser condenado pelo STF. A condenação se deu por dano qualificado, deterioração de patrimônio público tombado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e associação criminosa. A maioria dos ministros concordou com o voto do relator Alexandre de Moraes que, além da pena de prisão, aplicou uma multa de R$ 30 milhões em danos morais coletivos — valor a ser pago em conjunto com outros condenados no julgamento.

A punição é dura, mas compatível com a gravidade: a tentativa de solapar a democracia brasileira. Depois de Aécio, outros dois golpistas foram condenados pelos mesmos crimes e receberam penas parecidas. Essas primeiras condenações têm caráter histórico e pedagógico, já que pela primeira vez se puniu com rigor os delinquentes que conspiram contra a democracia. A anistia concedida aos golpistas de 1964 é a responsável direta pelos atos golpistas de 8 de janeiro. As condenações desta semana indicam que este ciclo finalmente pode ser quebrado. O recado aos golpistas do futuro está dado. Ao todo, 1.390 pessoas estão sendo acusadas pelos atos golpistas de 8 de janeiro. A coisa está só começando.Parte inferior do formulário

O julgamento foi marcado por debates calorosos entre ministros bolsonaristas e ministros democratas. Kassio Nunes cumpriu o seu papel de vassalo do golpismo e tentou desconsiderar o caráter golpista do episódio para enquadrá-lo meramente como um ato de vandalismo. Mendonça seguiu mais ou menos o mesmo caminho, absolvendo os réus pelos crimes relacionados ao golpismo e condenando pelos crimes de vandalismo. Assim como prega a militância bolsonarista, Nunes e Mendonça defenderam a tese estapafúrdia de que o 8 de janeiro foi uma manifestação pacífica, familiar, democrática, que saiu do controle por conta de meia dúzia de manifestantes mais empolgados. Tratam o acontecimento como algo desconectado de outros episódios golpistas, como a tentativa de invasão da sede da Polícia Federal que incendiou carros e ônibus e a tentativa de atentado à bomba no aeroporto de Brasília — ações que foram comprovadamente organizadas nos acampamentos nos quartéis.

Não há dúvidas de que todos esses episódios estão ligados entre si e foram motivados pela expectativa da aplicação da Garantia da Lei e da Ordem, a GLO, para conter o caos através de uma intervenção militar. Esse roteiro está fielmente descrito na minuta do golpe encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres. O desejo por uma intervenção militar sempre foi declarado pelos golpistas. Durante a invasão do 8 de janeiro, o próprio Aécio publicou um vídeo nas redes sociais vestindo uma camisa com os dizeres “intervenção militar federal”. Tratar o assunto como se fosse um “domingo no parque” que fugiu do controle, como lembrou Alexandre de Moraes, é negacionismo puro.

Como se já não bastasse o vexame dos ministros bolsonaristas, os advogados de defesa dos golpistas protagonizaram um show de horrores. A começar pelo advogado de Aécio, Sebastião Coelho da Silva, que já estava errado mesmo antes de abrir a boca. No final do ano passado, ele discursou em uma das manifestações golpistas em pleno quartel general e pediu a prisão de Alexandre de Moraes, o que motivou uma abertura de investigação do CNJ por incitação aos atos golpistas. Ou seja, o advogado do golpista é um golpista. Durante seu discurso, ele simplesmente abandonou a defesa técnica e adotou uma postura afrontosa ao Supremo, afirmando que o julgamento é político e que os ministros são as pessoas mais odiadas do país. Ao invés de argumentos técnicos em defesa do seu cliente, o que se viu foi proselitismo político de quem quer jogar pra torcida bolsonarista. Tudo isso cheira à uma preparação de terreno para se lançar na política em um futuro breve. Mas isso só será possível se o advogado não tiver que sentar no banco dos réus antes.

O golpista Aécio foi pintado pelo advogado como um pai de família, trabalhador, que só quer o bem do Brasil. Mas o seu histórico aponta em direção contrária. Após as últimas eleições, um vizinho abriu boletim de ocorrência contra ele depois de ter sido ameaçado de morte pelo Whatsapp. A mensagem dizia que ele “seria morto, porque todo comunista merece morrer”. Esta é a postura deste patriota pai de família: ameaça de morte, de golpe e destruição do patrimônio público.

Os advogados dos outros dois réus condenados seguiram a linha do colega que defendeu Aécio. Ignoraram os aspectos técnicos do julgamento e atuaram como militantes bolsonaristas indignados com uma fictícia perseguição política. O descaramento dos advogados abunda como as provas existentes contra seus clientes. Impossibilitados de confrontarem as fotos, os vídeos e os áudios que comprovam os crimes dos réus, apelaram para os discursinhos bolsonaristas dos mais chulés. Parece que todos eles estão ensaiando para virar parlamentares de extrema direita.

A pobreza intelectual dos advogados ficou evidente durante o julgamento. Um dos advogados confundiu “O Pequeno Príncipe”, um livro infantil de Antoine de Saint-Exupéry, com o “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel, uma obra fundamental da teoria política. Pior que isso: ele queria citar uma frase de Maquiavel que jamais foi escrita por ele. Alexandre de Moraes não deixou barato e colocou o advogado em seu devido lugar: “É patético e medíocre que um advogado suba à tribuna do STF com um discurso de ódio, um discurso pra postar depois nas redes sociais (…) O advogado ignorou a defesa. Não analisou nada, absolutamente nada. (…) Esqueceu o processo e quis fazer média com os patriotas. Realmente é muito triste.”

O que vimos esta semana foi uma resposta importante da sociedade brasileira contra o golpismo. Os executores do golpe começam a sentir o peso da lei numa democracia. Ainda faltam os financiadores, os organizadores e os mentores intelectuais. Para blindar a democracia, é fundamental que esses outros grupos também sejam rigorosamente punidos. Durante o julgamento, Alexandre de Moraes ressaltou que as Forças Armadas não aceitaram aplicar o golpe — uma fala que me preocupa um pouco. Está mais do que evidente que o golpe só não foi concluído por não haver as condições materiais necessárias. Não havia apoio do governo dos EUA, nem de parte significativa do grande capital brasileiro. Mas o golpe foi fustigado o tempo todo pelo presidente e pelos militares.

É fato incontestável que foi o alto comando do exército que permitiu que os acampamentos golpistas acontecessem em seu quintal. O 8 de janeiro não seria possível sem o apoio estrutural e intelectual das Forças Armadas. Não basta prender apenas os civis golpistas. É preciso colocar os militares de alta patente na cadeia para que eles nunca mais ousem sair da caserna para atormentar a democracia.


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