04/05/2024 - Edição 540

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Na ONU, Silvio Almeida cita apartheid e acusa Israel de ‘punição coletiva’

'Crianças de 5 anos falam que preferem morrer', dizem médicos em Gaza

Publicado em 26/02/2024 11:19 - Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Imagem: Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania

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O ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, cobrou de Israel o cumprimento das determinações da Corte Internacional de Justiça para que um genocídio seja evitado, defendeu que a ocupação das terras palestinas seja declarada como “ilegal” e acusou o governo de Benjamin Netanyahu de promover uma “punição coletiva” contra o povo palestino em Gaza.

Falando na abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU, nesta segunda-feira em Genebra, o ministro declarou a “profunda indignação com o que acontece, neste momento, em Gaza”.

O discurso é o primeiro do Brasil depois da crise estabelecida com o governo de Israel, que declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como “persona non grata”. O brasileiro havia citado a Alemanha nazista, ao acusar Israel de “genocídio” em Gaza.

Na ONU, Silvio Almeida ajustou a mensagem brasileira, num discurso em que cada palavra foi calculada.

Ele fez questão de condenar os ataques do Hamas, em 7 de outubro de 2023, contra Israel. “Em mais de uma oportunidade, condenamos os ataques perpetrados pelo Hamas contra cidadãos israelenses e demandamos a libertação imediata e incondicional de todos os reféns”, disse.

Mas seu discurso foi direcionado contra as ações cometidas por Israel.

“Também reitero nosso repúdio à flagrante desproporcionalidade do uso da força por parte do governo de Israel, uma espécie de “punição coletiva”, que já ceifou a vida de quase 30 mil palestinos – a maioria deles, mulheres e crianças -, forçadamente deslocou mais de 80% da população de Gaza, e deixou milhares de civis sem acesso a energia elétrica, água potável, alimentos e assistência humanitária básica”, denunciou.

Ao tomar a palavra, Silvio Almeida ainda defendeu que “a criação de um Estado Palestino livre e soberano, que conviva com o Estado de Israel, é condição imprescindível para a paz”. No sábado, o UOL havia revelado com exclusividade que esse apelo seria feito por parte do governo brasileiro.

Ao tratar da situação dos palestinos, o ministro ainda destacou a discriminação que existe conta os palestinos e fez uma alusão ao regime criado pelos sul-africanos.

Ao pedir que a ONU atue para lidar com a crise, ele destacou: “Consideramos ser dever deste Conselho prestigiar a autodeterminação dos povos, a busca da solução pacífica dos conflitos e se opor de forma veemente a toda forma de neocolonialismo e de Apartheid”, disse.

Durante sua fala, o representante brasileiro ainda cobrou de Israel que cumpra as decisões da Corte de Haia que, há um mês, pediu medidas por parte de Netanyahu para evitar um genocídio.

“Ao celebrarmos a iniciativa da África do Sul de acionar a Corte Internacional de Justiça para proteger a população palestina, ao amparo da Convenção para a Repressão e Punição do Crime de Genocídio, instamos o Estado de Israel a cumprir integralmente as medidas emergenciais determinadas pelo tribunal no sentido de que cessem as graves violações ao direitos humanitário e impedir o cometimento das condutas tipificadas no Artigo 2º da Convenção”, disse Silvio.

Isso, segundo ele, inclui “matar ou submeter intencionalmente um grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, ou seja, genocídio”.

De acordo com ele, o Brasil ainda espera que o tribunal “reafirme que a ocupação israelense dos territórios palestinos é ilegal e viola normas internacionais”.

Novo mandato do Brasil na ONU

A fala de Silvio Almeida ocorre no momento em que o Brasil retorna ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. “Há um ano, ainda no início de minha gestão como Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, anunciei que o Brasil havia voltado, “de uma nova forma e para um novo tempo”. O ano que passou nos desafiou, diariamente, a reconstruir políticas públicas e a pensar novas abordagens para responder às necessidades de um Brasil que encontramos mais desigual e mais dividido”, disse.

Segundo ele, Lula “resgatou a vocação universalista e reposicionamos o Brasil nas discussões multilaterais e nos contenciosos internacionais no campo dos direitos humanos”.

Silvio Almeida alertou ainda que um dos desafios é materializar os direitos humanos na vida das populações. “Por isso, defendemos a necessária convergência entre o debate econômico e a agenda de direitos humanos”, disse.

“Sem transformações econômicas profundas que incluam a proteção do trabalhadores, a ampliação dos direitos sociais e a inclusão dos pobres no orçamento, os direitos humanos tornar-se-ão retórica vazia e o caminho para a ascensão do fascismo estará livre”, afirmou.

Crítica aos países ricos e defesa da reforma da ONU

O palco da ONU ainda foi usado pelo governo para apresentar a agenda do Brasil como presidente do G20, para defender a reforma dos organismos internacionais e fazer críticas abertas contra os países ricos por instrumentalizar o órgão de Direitos Humanos da ONU.

“Conclamo a todos os presentes a, conjuntamente, refletirmos sobre o papel a ser desempenhado por este Conselho”, disse.

“Aqui, são colocados muitos dos desafios enfrentados pela humanidade. Há, ainda, quem resista a enxergar parte dessa humanidade como destinatária dos mesmos direitos de que desfrutam e, tragicamente, há quem não acredite que esses desafios que enfrentamos são, de fato, comuns a todos nós”, afirmou, num recado a certos grupos de países.

“Os direitos humanos não podem se submeter à lógica mercantil, em que só os que podem pagar são dignos de respeito”, afirmou.

Silvio Almeida criticou abertamente os países ricos pelo uso dos direitos humanos para fins políticos. “A instrumentalização do Conselho como subterfúgio moral para que os países mais ricos possam impor seu poder bélico e econômico apenas aprofundará a crise do multilateralismo e, o que considero mais preocupante, resultará no descrédito das instituições internacionais aos olhos de nossas populações”, alertou.

Golpe e desinformação

O ministro ainda pediu que a ONU atue para lidar com o discurso do ódio e desinformação. “No campo da memória, verdade e justiça, o ano de 2024 marcará os 60 anos do Golpe Militar que inaugurou 21 anos de um regime ditatorial repressivo, violento e antipopular no Brasil, cujas sombras ainda pairam sobre a nossa sociedade”, disse.

“Diversos eventos promovidos por entidades governamentais e não governamentais buscarão enfatizar a importância da defesa permanente da democracia”, explicou.

“Nesse contexto, exortamos este Conselho a aprofundar seus trabalhos no campo do combate ao discurso de ódio e à desinformação, que, consistentemente, tem minado não apenas nossas democracias, mas a convivência pacífica no interior de nossas sociedades e entre nossos povos”, destacou.

“Por isso, o Brasil entende ser seu dever, mas também deste Conselho, se opor firmemente a toda forma de racismo, sexismo, antissemitismo ou islamofobia”, defendeu.

Ações domésticas e reposicionamento

O ministro ainda listou suas iniciativas adotadas em 2023, como nas políticas para pessoas com deficiência, a defesa de ativistas e ambientalistas, no enfrentamento da miséria e a fome no Brasil, na luta contra a violência contra Pessoas LGBTQIA+.

“No plano internacional, passamos a integrar a “Equal Rights Coalition”, o que reforça nosso compromisso em construir um mundo livre de violência e discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero”, disse. O gesto representou uma ruptura em relação às políticas adotadas por Damares Alves, que ocupou o ministério nos anos de Jair Bolsonaro.

O ministro ainda confirmou o compromisso do Brasil com a questão do meio ambiente e da mudança do clima, bem como suas relações com a agenda de direitos humanos.

Segundo ele, o Brasil vai usar a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, em 2025 em Belém, para destacar a relação entre a promoção do desenvolvimento sustentável e a realização dos direitos humano.

“Ao ocuparmos novamente uma cadeira neste Conselho, renovamos nosso compromisso pela construção de um mundo em que todas as pessoas tenham a oportunidade de conhecer e aprender com o passado e a possibilidade de projetar para si e para sua comunidade um futuro mais justo e solidário. Que direitos humanos seja sinônimo de palavras como futuro, transformação e esperança”, completou.

Conselho de Segurança foi ‘fatalmente’ abalado por inação em Gaza, diz ONU

Num duro discurso feito nesta segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou que a incapacidade de que um acordo tenha sido encontrado no Conselho de Segurança da ONU para colocar um fim à guerra em Gaza pode ter sido um abalo “fatal” para a credibilidade do órgão máximo do sistema internacional.

A reforma do Conselho é uma das principais prioridades do governo brasileiro, que colocou o tema no centro da agenda dos debates no G20. O reconhecimento por parte de Guterres, porém, é um sinal claro de que a paralisia representa uma ameaça existencial para a entidade.

Na última sexta-feira, o Conselho de Segurança não conseguiu chegar a um acordo sobre um apelo a um cessar-fogo em Gaza. Pela terceira vez, o governo americano vetou uma resolução com a proposta de uma suspensão do conflito.

“O Conselho de Segurança está frequentemente em um impasse, incapaz de agir sobre as questões de paz e segurança mais importantes de nosso tempo”, afirmou o chefe da ONU, ao abrir os trabalhos do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra.

“A falta de unidade do Conselho em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia e às operações militares de Israel em Gaza, após os terríveis ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro, prejudicou gravemente – talvez fatalmente – sua credibilidade”, alertou.

“O Conselho precisa de uma reforma séria em sua composição e em seus métodos de trabalho”, defendeu.

Ao abrir o Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Guterres fez questão de condenar o Hamas. Mas não deixou de fazer duras denúncias contra Israel. Ele ainda lançou um alerta de que uma ofensiva contra a cidade de Rafah, em Gaza, será o “último prego no caixão” das operações humanitárias das Nações Unidas para ajudar a população palestina.

Rafah: “último prego no caixão”

Para Guterres, um dos aspectos mais preocupantes é o total desrespeito ao direito internacional.

“Nada pode justificar a morte deliberada, os ferimentos, a tortura e o sequestro de civis pelo Hamas, o uso de violência sexual ou o lançamento indiscriminado de foguetes contra Israel”, disse.

Mas completou: “E nada justifica a punição coletiva do povo palestino”.

Ele lembrou como invoco o Artigo 99 pela primeira vez em seu mandato para exercer a maior pressão possível sobre o Conselho para que faça tudo o que estiver ao seu alcance para pôr fim ao “derramamento de sangue em Gaza” e evitar uma escalada.

“Mas isso não foi suficiente. O Direito Internacional Humanitário ainda está sendo atacado”, constatou.

“Dezenas de milhares de civis, inclusive mulheres e crianças, foram mortos em Gaza. A ajuda humanitária ainda é completamente insuficiente”, disse.

Parte de seu alerta se refere ainda aos planos de Israel de realizar uma operação militar sobre Rafah, no sul de Gaza e onde mais de um milhão de palestinos se aglomeram.

“Rafah é o centro da operação de ajuda humanitária, e a UNRWA é a espinha dorsal desse esforço”, disse Guterres.

“Uma ofensiva israelense total contra a cidade não seria apenas aterrorizante para mais de um milhão de civis palestinos que se abrigam lá; ela colocaria o último prego no caixão de nossos programas de ajuda”, alertou.

“Repito meu apelo por um cessar-fogo humanitário e pela libertação imediata e incondicional de todos os reféns”, disse.

Guterres ainda relembrou aos governos as regras da guerra:

Todas as partes devem distinguir entre civis e combatentes em todos os momentos.

Ataques contra civis ou infraestrutura protegida, incluindo escolas e hospitais, são proibidos.

Ataques indiscriminados são proibidos.

Ataques em que a probabilidade de morte de civis seja desproporcional à provável vantagem militar são proibidos.

– O deslocamento forçado é proibido.

– A tomada e a manutenção de reféns são proibidas.

– O uso de civis como escudos humanos é proibido.

– É proibida a punição coletiva.

– O uso de violência sexual como arma de guerra é proibido.

– E as violações de uma parte não isentam a outra do cumprimento.

“Não podemos – não devemos – ficar insensíveis às violações terríveis e repetidas das leis internacionais humanitárias e de direitos humanos”, disse.

Guterres ainda deixou claro que não poupará nem os funcionários de sua organização. “Todas as alegações de violações e abusos graves exigem investigação e responsabilização urgentes. E estamos determinados a tomar essas medidas em relação às alegações contra nossos próprios funcionários”, disse.

Guterres não qualificou a guerra em Gaza, mas foi claro ao alertar que “o estado de direito e as regras da guerra estão sendo minados”.

“Da Ucrânia ao Sudão, a Mianmar, à República Democrática do Congo e a Gaza, as partes em conflito estão fechando os olhos para o direito internacional, para as Convenções de Genebra e até mesmo para a Carta das Nações Unidas”, alertou.

‘Crianças de 5 anos falam que preferem morrer’, dizem médicos em Gaza

Amputações sem anestesia estão sendo feitas em crianças na Faixa de Gaza e, ainda que tenham apenas cinco anos de idade, elas falam que preferem morrer.

A constatação faz parte do discurso feito ao Conselho de Segurança pelo secretário-geral da entidade Médicos Sem Fronteiras, Christopher Lockyear. Nele, o representante da organização médica apresentou um raio-x dramático da situação de saúde de Gaza e alertou, em especial, para a situação das crianças.

Segundo ele, a dimensão da destruição e das mortes de civis levaram as equipes médicas a acrescentar uma nova sigla ao seu vocabulário: WCNSF. Ou seja, “Criança Ferida, Sem Família Sobrevivente”, em inglês. “As crianças que sobrevivem a essa guerra não apenas carregam as feridas visíveis dos ferimentos traumáticos, mas também as invisíveis – as do deslocamento repetido, do medo constante e de testemunhar membros da família literalmente desmembrados diante de seus olhos”, disse o representante médico.

“Essas lesões psicológicas levaram crianças de apenas cinco anos de idade a nos dizer que prefeririam morrer”, constatou.

Os dados oficiais do Ministério da Saúde palestino apontam que dois terços dos cerca de 30 mil mortos em Gaza desde 7 de outubro são compostos por mulheres e crianças. Não há como verificar de forma independente o número, mas tanto a OMS como a ONU usam esses dados em seus informes oficiais.]

Gazes usadas em mais de um paciente e partos em tendas de plástico

Para a entidade, o que se vê em Gaza hoje é: “Uma guerra de punição coletiva, uma guerra sem regras, uma guerra a todo custo”, diz Christopher Lockyear, chefe da MSF.

Ele conta com, nesta semana, enquanto uma família se sentava à mesa da cozinha em uma casa que abrigava a equipe da entidade Médicos Sem Fronteiras e suas famílias em Khan Younis, um projétil de tanque de 120 mm explodiu através das paredes, provocando um incêndio, matando duas pessoas e queimando gravemente outras seis. Cinco dos seis feridos são mulheres e crianças.

De acordo com Lockyear, a destruição promovida pelos ataques israelenses contra hospitais têm impedido que parte do trabalho de socorro às vítimas seja realizado. O governo de Benjamin Netanyahu justifica as ações, alegando que esses centros de saúde abrigam membros do Hamas. As vítimas, porém, são civil, destaca a ONU.

“Nossos pacientes têm lesões catastróficas, amputações, membros esmagados e queimaduras graves. Eles precisam de cuidados sofisticados. Precisam de reabilitação longa e intensiva”, disse o representante da Médicos Sem Fronteiras.

“Os médicos não podem tratar esses ferimentos em um campo de batalha ou nas cinzas de hospitais destruídos”, disse. “Não há leitos hospitalares suficientes, medicamentos suficientes e suprimentos suficientes”, alertou.

“Os cirurgiões não tiveram outra opção a não ser realizar amputações sem anestesia em crianças”, afirmou aos demais membros do Conselho de Segurança.

“Nossos cirurgiões estão ficando sem a gaze básica para impedir que seus pacientes sangrem. Eles a usam uma vez, espremem o sangue, lavam-na, esterilizam-na e a reutilizam para o próximo paciente”, explica.


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