18/05/2024 - Edição 540

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Carta à Lula mostra que Milei pode ser “doido”, mas não rasga dinheiro

A poucos dias da posse, presidente eleito da Argentina parece compreender que a realidade é o único lugar onde os 40% de argentinos empurrados para a miséria podem conseguir três refeições decentes por dia

Publicado em 27/11/2023 11:04 - Semana On, Jamil Chade, Giovanna Galvani e Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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O presidente eleito na Argentina, Javier Milei, pode ser “doido”, mas não rasga dinheiro. Milei enviou uma carta ao presidente Lula (PT) por meio de sua futura chanceler, Diana Mondino, tentando colocar panos quentes sobre o clima de confronto construído pelo argentino contra o presidente brasileiro, a quem ofendeu mais de uma vez.

Mondino esteve ontem (26) em Brasília, onde se reuniu com o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Mauro Vieira. O objetivo do encontro foi ressaltar o convite do presidente de extrema-direita eleito para a cerimônia de posse, a ser realizada em Buenos Aires no dia 10 de dezembro. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), do qual Milei é admirador, já confirmou presença.

O tom do texto da carta entregue a Lula, porém, é diferente dos ataques feitos pelo argentino ao brasileiro durante a eleição. Milei já se referiu ao petista como “ladrão”, “comunista furioso” e “ex-presidiário”. As primeiras críticas são de 2021, quando se fortaleceram os rumores de que Lula seria candidato à Presidência.

Para o Palácio do Planalto, o conteúdo da carta é positivo e até surpreendeu. Mas não seria suficiente para garantir que Lula viaje até Buenos Aires no dia 10. A decisão de ir ou não à posse depende inteiramente de Lula. O que se ventila nos bastidores é que o presidente não deve comparecer, enviando um representante de peso em seu lugar.

Em pronunciamento depois da eleição na Argentina, Lula publicou que ele não tinha que gostar e ser amigo de outros presidentes para ter relações diplomáticas.

“Eu não tenho que gostar do presidente do Chile, da Argentina, da Venezuela. Ele não tem que ser meu amigo. Ele tem que ser presidente do país dele, eu tenho que ser presidente do meu país. Nós temos que ter política de Estado brasileira e ele do Estado dele. Nós temos que nos sentar na mesa, cada um defendendo os seus interesses. Não pode ter supremacia de um sobre o outro, a gente tem que chegar a um acordo. Essa é a arte da democracia. A gente tem que chegar a um acordo”, disse.

No texto, Milei cita o desejo de “continuar compartilhando áreas de complementaridade, no nível da integração física, do comércio e da presença internacional”.

O presidente eleito da Argentina ainda defende a “construção de laços” entre os dois países.

Carta de Milei a Lula é o início de uma recomendável caída em si

Javier Milei prevaleceu na disputa presidencial da Argentina informando aos eleitores que detesta a realidade. A poucos dias da posse, marcada para 10 de dezembro, parece compreender que a realidade é o único lugar onde os 40% de argentinos empurrados para a miséria podem conseguir três refeições decentes por dia. A carta enviada por Milei a Lula marca o início de uma recomendável caída em si. Nela, a retórica encrespada da campanha foi substituída por um documento escrito que contém um alvissareiro aceno à cooperação entre vizinhos.

A carta de Milei anota a certa altura: “Sabemos que nossos países estão estreitamente ligados pela geografia e história e, a partir disso, desejamos seguir compartilhando áreas complementares, a nível de integração física, comércio e presença internacional, que permitam que toda esta atuação conjunta se traduza, de ambos os lados, em crescimento e prosperidade para argentinos e brasileiros”.

O futuro governo Milei continua sendo uma incógnita. Mas a aparente moderação de uma retórica que privilegiava a ofensa a Lula e o desprezo pela parceria histórica com o Brasil estimula o raciocínio com hipóteses. Desde a mais otimista —na melhor das hipóteses, haverá na Casa Rosada um presidente que se esforçará para retirar a Argentina da cova econômica e social em que se encontra— até a mais pessimista —Milei continuará jogando terra em cima dos argentinos, às voltas com governantes que rodam como parafusos espanados há mais de sete décadas.

No caso do que espera a Argentina e parceiros como o Brasil com Milei no trono, a quantidade de hipóteses é vasta, já que ninguém sabe ao certo o que há dentro de um embrulho vendido com todas as armas de que dispõe o marketing político para seduzir um eleitorado em desespero. A melhor das hipóteses é que a autoimagem de salvador da pátria coincida com a fantasia do público que a comprou, e que a conjunção de ilusões produza algum proveito.

A pior das hipóteses é que, sendo apenas um produto eleitoral de sucesso, Milei inaugure na Argentina um governo-espetáculo do fascismo pós-moderno, incapaz de construir as pontes que levam um presidente minoritário no Congresso à maioria indispensável à conversão da propaganda radical impulsionada por meia dúzia de memes em projetos que garantam uma economia estável, uma educação de qualidade, uma saúde acessível e uma atmosfera de segurança. Sem isso, as mesmas mãos que elegeram logo estarão apedrejando o eleito. A impaciência tem pressa.

Milei não será propriamente um presidente, será um gestor de crises. Mesmo mantendo relações amistosas com países como Brasil e China, os dois maiores parceiros comerciais da Argentina, e apostando na concretização do acordo do Mercosul com a União Europeia, será difícil para o administrador da ruína atrair investimentos. Mas a insistência no desprezo às parcerias e um chute no balde do Mercosul transformariam a dificuldade num outro nome para o impossível. Daí a percepção de que a carta enviada por Milei junto com um convite para que Lula compareça à posse pode ser um relevante ponto de inflexão.

Leia carta completa de Milei a Lula

Estimado senhor presidente,

Envio-lhe esta mensagem com minhas cordiais saudações e para transmitir-lhe meu convite para que se junte a mim, no próximo dia 10 de dezembro, nas cerimônias que serão realizadas aqui por ocasião da minha Assunção ao Comando Presidencial.

Sei que Vossa Excelência conhece e aprecia plenamente o que este momento de transição significa para a trajetória histórica da República Argentina, de seu povo e, naturalmente, para mim e para a equipe de colaboradores que me acompanharão na próxima gestão.

Ambas as nações têm muitos desafios pela frente e estou convencido de que as mudanças econômicas, sociais e culturais, baseadas nos princípios da liberdade, nos posicionarão como países competitivos nos quais seus cidadãos podem desenvolver suas capacidades ao máximo e, assim, escolher o futuro que desejam.

Sabemos que nossos dois países estão intimamente ligados pela geografia e pela história e, com base nisso, desejamos continuar compartilhando áreas de complementaridade, no nível da integração física, do comércio e da presença internacional, o que permitirá que toda essa ação conjunta se traduza, de ambos os lados, em crescimento e prosperidade para argentinos e brasileiros.

Espero que nosso tempo juntos como Presidentes e Chefes de Governo seja um período de trabalho frutífero e de construção de laços que consolidem o papel que a Argentina e o Brasil podem e devem desempenhar no concerto das Nações.

Esperando poder encontrá-lo nesta próxima ocasião, receba meus cumprimentos com estima e respeito.

Javier Milei


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