04/05/2024 - Edição 540

Mundo

Após cortes de recursos, Netanyahu propõe fechar agência da ONU em Gaza

Palestinos precisarão de quase 70 anos para recuperar a infraestrutura e a economia da região

Publicado em 01/02/2024 11:56 - Jamil Chade (UOl) – Edição Semana On

Divulgação Gloucester2gaza

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A crise diplomática entre Israel e a ONU ganhou um novo capítulo com o pedido do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, para que a agência de refugiados palestinos da ONU (UNRWA) seja fechada.

“É hora de a comunidade internacional e a própria ONU entenderem que a missão da UNRWA tem que acabar”, disse Netanyahu, numa reunião com embaixadores estrangeiros nesta quarta-feira. A instituição existe desde 1948, com a missão de cuidar dos refugiados palestinos. Hoje, ela conta com 13 mil funcionários.

Segundo o chefe de governo israelense, porém, a UNRWA deve ser substituída por outras agências de ajuda “se quisermos resolver o problema de Gaza como pretendemos fazer”.

“A UNRWA está totalmente infiltrada no Hamas”, disse. “Ela tem estado a serviço do Hamas e de suas escolas, e em muitas outras coisas”, insistiu, sem apresentar provas.

“Digo isso com grande pesar porque esperávamos que houvesse um órgão objetivo e construtivo para oferecer ajuda”, afirmou. “Precisamos de um órgão assim hoje em Gaza. Mas a UNRWA não é esse órgão. Ela precisa ser substituída por alguma organização ou organizações que façam esse trabalho”, sugeriu.

“A UNRWA está se autoperpetuando. Ela se autoperpetua também em seu desejo de manter viva a questão dos refugiados palestinos”, declarou.

“Precisamos que outras agências da ONU e outras agências de ajuda substituam a UNRWA se quisermos resolver o problema de Gaza como pretendemos fazer. Há outras agências na ONU. Há outras agências no mundo. Elas precisam substituir a UNRWA”, insistiu Netanyahu.

Na semana passada, no mesmo dia em que a Corte Internacional de Justiça ordenou Israel a evitar um genocídio em Gaza, o governo de Netanyahu anunciou que havia entregue para a ONU informações sobre o envolvimento de funcionários da agência no massacre cometido pelo Hamas, no dia 7 de outubro de 2023.

A ONU abriu um inquérito e demitiu nove dos 12 suspeitos. Mas, como resposta, 18 governos anunciaram a suspensão de seus repasses para o organismo que, agora, ameaça parar de funcionar no final de fevereiro.

No início da semana, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, descreveu a UNRWA como “a espinha dorsal de toda a resposta humanitária em Gaza” e fez um apelo a todos os países para que “garantam a continuidade do trabalho da UNRWA que salva vidas”.

Itamaraty defende agência

Num comunicado emitido nesta quarta-feira, o governo brasileiro também saiu em apoio à agência. O UOL havia revelado a posição do Itamaraty no fim de semana. Agora, em nota, a chancelaria afirma que o “Brasil confia em que as investigações, ora em curso, conduzidas pelo Escritório de Serviços de Supervisão Interna das Nações Unidas (OIOS), e que resultaram na demissão de funcionários da Agência, chegarão a bom termo”.

“As referidas denúncias não devem, entretanto, ensejar redução das contribuições imprescindíveis ao funcionamento da UNRWA, em cenário que pode levar ao colapso das atividades da agência, em contexto de grave crise humanitária em Gaza e em prejuízo do cumprimento de recente decisão, de caráter juridicamente vinculante, pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), sobre o imperativo de garantir o acesso humanitário aos cidadãos de Gaza”, defendeu.

“A população civil palestina na região e os esforços de ajuda humanitária têm na UNRWA um ponto de apoio indispensável”, afirmou.

Segundo o Itamaraty, desde 7 de outubro de 2023, a UNRWA realiza atendimento vital a mais de 1,4 milhão de pessoas na Faixa de Gaza. “Cabe lembrar que 152 funcionários da Agência em Gaza foram mortos desde o início da ofensiva militar israelense em resposta aos atos terroristas do Hamas”, completou.

Governo Lula teme que cortes na ONU aprofundem crise em Gaza

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva teme que os cortes anunciados pelos maiores doadores do Ocidente para a ONU aprofundem ainda mais a crise humanitária em Gaza. O Brasil é o único país latino-americano membro do conselho consultivo da UNRWA.

O Brasil iniciou suas doações à agência no segundo mandato do presidente Lula. O gesto significava um caminho para que a diplomacia brasileira pudesse participar dos debates das região e permitiu que o país passasse a ser o único latino-americano entre os 29 membros do Conselho Consultivo da agência. Mas os recursos foram drasticamente reduzidos depois do impeachment de Dilma Rousseff.

Em 9 de novembro de 2023, num discurso em Paris, o assessor especial da presidência, Celso Amorim, afirmou que, 2006 e 2016, o Brasil destinou US$ 20 milhões. Depois de uma queda drástica do apoio brasileiro para a agência a partir dos anos de Michel Temer, Amorim sinalizou que haveria uma mudança.

“Tendo fornecido à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina um total de US$ 20 milhões entre 2006 e 2016, estamos determinados a retomar nosso compromisso com a agência”, afirmou o embaixador.

“Uma contribuição financeira simbólica à UNRWA está sendo feita imediatamente. Uma contribuição mais substancial está sendo preparada e será anunciada em breve”, declarou.

Em 2022, o Brasil destinou apenas US$ 75 mil para a agência, valor que foi repetido em 2023.

Para Giancarlo Summa, ex-diretor de Comunicação da ONU no Brasil e responsável pela aproximação entre a agência e o governo brasileiro há uma década, o governo Lula tem a possibilidade agora de liderar uma ofensiva do Sul Global para socorrer a entidade.

Hoje, segundo ele, os países do Brics representam um PIB maior que o G7. Mas contribuem com apenas 1% dos recursos da agência em Gaza.

“Quando o Brasil se aproximou da agência, o gesto foi recebido como uma boa notícia. O Brasil não era nem uma autocracia do Golfo e nem uma potência do Ocidente. Sua participação, portanto, significava a diversificação da agência”, contou.

Agora, segundo ele, o Brasil “tem a oportunidade de ter um papel à altura da tradição de sua diplomacia”.

“O Brasil pode ser o país do Sul Global a liderar um movimento para salvar a UNRWA”, defendeu. Segundo ele, sem a agência, os palestinos “vão morrer ainda mais”.

“O Ocidente mostrou que pode ser cínico e irresponsável”, disse. “O Sul Global pode mostrar que é diferente”, completou.

Reconstrução econômica da região levará quase 70 anos

Os palestinos precisarão de quase sete décadas e bilhões de dólares em investimentos para recuperar a economia em Gaza. O alerta é da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) que, num informe publicado nesta quarta-feira, revela pela primeira vez a dimensão do impacto econômico da guerra na Faixa de Gaza.

O documento apresenta o que chama de um “quadro assustador” e alerta que Gaza é hoje praticamente “inabitável”. A região, segundo a ONU, teria sido alvo de uma “devastação sem precedentes”.

De acordo com o levantamento, se a atual operação militar terminasse imediatamente e se a reconstrução fosse iniciada no dia seguinte, Gaza levaria até o ano de 2092 apenas para restaurar os níveis do PIB de 2022.

O PIB per capita e as condições socioeconômicas, porém, ameaçam continuar ameaçadas.

Para chegar a essa conclusão, a ONU usou como base a taxa de crescimento entre 2007-2022 em Gaza, de 0,4% de expansão por ano.

Mesmo com o cenário mais otimista de que o PIB poderia crescer 10% ao ano, o PIB per capita de Gaza levaria até 2035 para o nível pré-bloqueio de 2006.

Segundo a ONU, a recuperação da economia de Gaza após a atual operação militar exigirá um compromisso financeiro várias vezes superior aos US$ 3,9 bilhões resultantes da operação militar de 2014 em Gaza e envolverá um esforço internacional conjunto para restaurar as condições socioeconômicas pré-conflito.

“As condições socioeconômicas em Gaza eram terríveis em 2022 e na primeira metade de 2023, com mais de dois milhões de habitantes confinados em um dos espaços mais densamente povoados do mundo, com acesso inadequado à água potável, fornecimento esporádico de eletricidade e sem um sistema de esgoto adequado”, disse.

“Dois terços da população viviam na pobreza e 45% da força de trabalho estava desempregada antes do início da última operação militar”, alertou.

Agora, a ONU ressalta que “a restauração das condições socioeconômicas pré-conflito em Gaza levará décadas e exigirá uma ajuda externa considerável”.

“Em meados de 2023, dois milhões de habitantes de Gaza enfrentavam desafios que iam desde o acesso inadequado à água e à eletricidade até o alto índice de desemprego. A operação militar em andamento deslocou 85% da população de Gaza, interrompendo as atividades econômicas e agravando ainda mais a pobreza e o desemprego”, constatou.

Eis um raio-X da situação de Gaza

– Em dezembro de 2023, o desemprego atingia 79,3% da população. Antes da guerra, a taxa era de 45%.

– 37.379 edifícios – o equivalente a 18% do total de estruturas da Faixa de Gaza – foram danificados ou destruídos pela operação militar.

– A pobreza monetária se ampliou e se aprofundou, afetando toda a população de Gaza.

“A pobreza multidimensional é ainda pior porque leva em conta a privação de educação e de serviços básicos de infraestrutura para captar um quadro mais realista da pobreza”, disse. “As condições de vida em Gaza estão em seu nível mais baixo desde o início da ocupação em 1967 e piorarão ainda mais se a operação militar não for interrompida”, alerta.

De fato, o cálculo aponta que o impacto da atual operação militar de Israel em Gaza é equivalente ao efeito dos 17 anos de bloqueio do território, somado aos resultados de todas as operações militares precedentes na região.

“Utilizando imagens de satélite e dados oficiais, a UNCTAD estima atualmente que a economia de Gaza já havia se contraído em 4,5% nos três primeiros trimestres de 2023”, disse. “Entretanto, a operação militar acelerou muito o declínio e precipitou uma contração de 24% do PIB e uma queda de 26,1% no PIB per capita durante todo o ano”, aponta.

“A Faixa de Gaza, cuja metade da população é composta por crianças, está agora quase inabitável, com pessoas sem fontes adequadas de renda, acesso à água, saneamento, saúde ou educação”.

O relatório destaca a necessidade urgente de romper o ciclo de destruição econômica que tornou 80% da população dependente da ajuda internacional e alerta que o retorno ao status quo pré-conflito não é uma opção.

“A possibilidade e a velocidade da recuperação em Gaza dependerão do fim da operação militar, do envolvimento dos doadores e do desempenho do crescimento subsequente. Um cenário otimista sugere que, mesmo com o fim imediato dos combates, levar Gaza de volta às condições socioeconômicas que prevaleciam antes da eclosão do atual confronto levaria décadas sem um programa de recuperação devidamente financiado e totalmente apoiado pela comunidade internacional”, aponta a ONU.

Na avaliação da entidade, uma nova fase de reabilitação econômica não pode simplesmente ter como meta o retorno ao status quo anterior a outubro de 2023.

O relatório enfatiza a importância de fornecer apoio orçamentário imediato e robusto ao governo palestino.

“Esse apoio ajudaria a evitar um colapso mais amplo, sustentando a governança, prestando serviços públicos essenciais e mantendo a demanda agregada por meio do pagamento de salários e da quitação de dívidas com o setor privado”, disse.

Antes mesmo da atual guerra, porém, a constatação é de que a ajuda externa para Gaza havia sido reduzida de forma drástica. Em 2008, ela havia sido de US$ 2 bilhões, ou 27% do PIB. Em 2022, esse valor caiu para US$ 550 milhões, ou menos de 3% do PIB.


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