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Publicado em 13/03/2019 12:00 -
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Todas as principais guerras dos EUA nas últimas décadas começaram da mesma maneira: o governo dos EUA fabricou uma mentira inflamatória e emocionalmente provocadora – que grandes meios de comunicação do país trataram acriticamente como verdade – ao mesmo tempo em que se recusou a veicular questionamentos ou divergências, provocando assim uma raiva primitiva contra o país que os EUA desejavam atacar. Foi assim que tivemos a Guerra do Vietnã (Vietnã do Norte ataca navios dos EUA no Golfo de Tonkin), a Guerra do Golfo (Saddam arrancou bebês de incubadoras) e, é claro, a guerra no Iraque (Saddam tinha armas de destruição em massa e formou uma aliança com a Al-Qaeda).
Foi exatamente esta a tática usada no último dia 23 de fevereiro, quando a narrativa mudou radicalmente em favor das autoridades norte-americanas que desejam operações de mudança de regime na Venezuela. Isso porque foram transmitidas a todo o mundo imagens de caminhões que levavam ajuda humanitária sendo queimados na fronteira da Colômbia com a Venezuela. Autoridades que vêm defendendo uma guerra para mudar o regime na Venezuela – Marco Rubio, John Bolton, Mike Pompeo, o diretor da Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAid), Mark Green – usaram o Twitter para disseminar fake news clássicas: todos declararam com veemência que os caminhões foram incendiados, de propósito, por forças do presidente Nicolás Maduro.
Cada um dos caminhões incendiados por Maduro levava 20 toneladas de comida e remédios. Isto é um crime, e se a legislação internacional tem algum valor, ele deve pagar alto por isso. #23FAyudaHumanitaria https://t.co/IrGzrOUX09
— Marco Rubio (@marcorubio) 23 de fev de 2019
Bandidos mascarados, civis mortos a bala e o incêndio de caminhões levando comida e remédios extremamente necessários. Foi essa a resposta de Maduro a esforços pacíficos para ajudar os venezuelanos. Países que ainda reconhecem Maduro devem pensar bem no que estão apoiando. pic.twitter.com/KlSebd2M5a
— John Bolton (@AmbJohnBolton) 23 de fev de 2019
@SecPompeo: Nós condenamos a recusa de Maduro de permitir que a assistência humanitária chegue à #Venezuela. Que tipo de tirano doente impede a chegada de comida a pessoas famintas? As imagens de caminhões cheios de ajuda pegando fogo são revoltantes. https://t.co/zzFNYVly2c
— USConsulateFrankfurt (@usconsfrankfurt) 24 de fevereiro de 2019
#Maduro ordenar o incêndio de caminhões cheios de ajuda humanitária e o ataque a voluntários é inconcebível. Eu condeno os assassinatos e os abusos aos direitos humanos cometidos por Maduro. Os ataques violentos contra a ajuda para salvar vidas na #Venezuela é desprezível. #EstamosUnidosVE https://t.co/BOSuVP1mTL
— Mark Green (@USAIDMarkGreen) 23 de fevereiro de 2019
Como sempre faz – como sempre fez desde o princípio, quando Wolf Blitzer se misturou às tropas dos EUA –, a CNN saiu na frente, não apenas disseminando essas mentiras do governo como também se propondo independentemente a atestar sua veracidade. Em 24 de fevereiro, a CNN disse ao mundo o que todos sabemos ser uma mentira absoluta: que “uma equipe da CNN viu dispositivos incendiários da polícia no lado venezuelano da fronteira pondo fogo nos caminhões”, embora tenha generosamente acrescentado que “os jornalistas da rede não têm certeza se os caminhões foram incendiados de propósito”.
Outros meios de comunicação endossaram a mentira, ainda que ao menos evitando fazer como a CNN, que a validou pessoalmente. “Ajuda humanitária destinada à Venezuela é incendiada, aparentemente por tropas leais a Maduro”, alegou The Telegraph. A BBC publicou acriticamente: “Também tem havido relatos de vários caminhões humanitários sendo queimados – algo que Guaidó disse ser uma violação da Convenção de Genebra”.
Essa mentira – sustentada por imagens em vídeo incrivelmente fortes – mudou tudo. Desde então, a história de que Maduro incendiou caminhões cheios de ajuda humanitária vem sendo repetida sem parar como fato comprovado em meios de comunicação dos EUA. Imediatamente após a alegação, políticos que estavam em silêncio a respeito da questão da Venezuela ou mesmo relutantes em apoiar a mudança de regime começaram a emitir declarações a apoiando. Estrelas do jornalismo e especialistas famosos que não têm um único neurônio crítico quando o assunto são alegações pró-guerra de autoridades norte-americanas assumiram a liderança batendo os tambores de guerra sem gastar um segundo para questionar se o que estava sendo dito era verdade:
Isso é simplesmente maldade https://t.co/kDOJBZ48td
— Kasie Hunt (@kasie) 23 de fev de 2019
[“Militares venezuelanos estão incendiando caminhões de ajuda humanitária.
Sim. Você leu certo. Eles estão queimando comida e medicamentos.
Animais e criminosos.”]
Mas, no sábado à noite, o New York Times publicou um vídeo detalhado junto com uma reportagem provando que toda a história era uma mentira. Os caminhões de ajuda humanitária não foram incendiados pelas forças de Maduro, mas por manifestantes anti-Maduro que atiraram um coquetel molotov que atingiu um dos veículos. E o vídeo do jornal mostra como a mentira se espalhou: de autoridades norte-americanas que anunciaram de maneira infundada que Maduro os incendiou até meios de comunicação que repetiram a mentira sem pensar.
Ainda que a reportagem e o vídeo do New York Times sejam jornalismo bom e necessário, o crédito que o jornal está implicitamente reivindicando para si por expor essa mentira é absolutamente imerecido. Isso porque jornalistas independentes – do tipo que questiona em vez de repetir impensadamente alegações do governo e é portanto ridicularizado, marginalizado e mantido fora dos canais de TV convencionais – usaram exatamente a mesma prova no dia do incidente para desmascarar as mentiras que estavam sendo ditas por Rubio, Pompeo, Bolton e a CNN.
Em 24 de fevereiro, o dia em que a mentira se espalhou, Max Blumenthal escreveu da Venezuela, no site independente de reportagens Grayzone, que “a alegação era claramente absurda”, observando que “testemunhei pessoalmente bombas de gás lacrimogêneo atingindo todos os tipos de veículos imagináveis na Cisjordânia palestina ocupada, e nunca vi um incêndio como aquele que eclodiu na ponte Santander”. Ele reuniu provas substanciais sugerindo fortemente que os caminhões haviam sido incendiados por manifestantes anti-Maduro, incluindo um vídeo da Bloomberg que os mostrava usando coquetéis molotov, para expressar sérias dúvidas sobre a narrativa dominante. No Twitter, em resposta à mentira de Marco Rubio, ele escreveu:
Não vi nenhuma força do governo venezuelano incendiando caminhões de ajuda dos EUA no lado colombiano da fronteira. E você também não. Na verdade, até o momento, as provas apontam na direção oposta. https://t.co/AVBPYtFMiR
— Max Blumenthal (@MaxBlumenthal) 24 de fev de 2019
Este vídeo encontrado por @graffitiborrao parece mostrar o momento em que um guarimbero de oposição atira um coquetel molotov em um caminhão carregado de auxílio dos EUA: pic.twitter.com/Z4Bg6dL4BR
— Max Blumenthal (@MaxBlumenthal) 24 de fev de 2019
Enquanto isso, outros – que usam o cérebro para avaliar criticamente o que o governo dos EUA diz quando está tentando começar uma nova guerra ao invés de repetir sem pensar as alegações como verdadeiras, como fazem os astros da mídia norte-americana – usaram exatamente a mesma prova citada pelo jornal New York Times para demonstrar que foram manifestantes anti-Maduro, e não soldados de Maduro, que incendiaram os caminhões. Mas eles foram capazes de fazer isso nas horas imediatamente após o incidente, não três semanas mais tarde. No entanto, é desnecessário dizer que foram todos ignorados pelos meios de comunicação dos EUA:
Eis o momento em que os caminhões incendiaram por causa de um coquetel molotov vindo do lado colombiano. https://t.co/vlZKzJpbRu
— Boots Riley (@BootsRiley) 24 de fev de 2019
Os relatos que dizem que o exército venezuelano incendiou caminhões de ajuda humanitária atirando bombas de gás lacrimogêneo contra eles à distância são uma mentira midiática. Gás lacrimogêneo jamais incendiará qualquer coisa.
Além disso, olhe onde estavam os caminhões em relação a onde estavam os militares venezuelanos. pic.twitter.com/y7tyugOXXj
— Boots Riley (@BootsRiley) 24 de fev de 2019
Vocês não têm provas de quem incendiou o caminhão de ajuda humanitária, e essas fotos indicam que seus guarimberos tiveram participação nisso. pic.twitter.com/VsvMDo2XaS
— Dan Cohen (@dancohen3000) 24 de fev de 2019
a mentira de @marcorubio é desmascarada: este vídeo mostra um manifestante da oposição atirando um coquetel molotov contra o caminhão de auxílio humanitário sobre a ponte Francisco de Paula Santander entre a Venezuela e a Colômbia. pic.twitter.com/4IgTt2u4pJ
— Dan Cohen (@dancohen3000) 24 de fev de 2019
Esses dois últimos tuítes – usando imagens de vídeo para desmascarar as mentiras propagadas por Marco Rubio, a CNN e o governo dos EUA – são de um correspondente da RT America. Por favor, me diga: quem estava agindo como propagandista mentiroso e agente de uma TV estatal e quem estava agindo como jornalista tentando compreender e relatar a verdade?
Então, tudo o que o New York Times reportou com tanto orgulho na noite de domingo é sabido há semanas e já havia sido reportado esmiuçadamente, usando amplas provas, por um grande número de pessoas. Mas como essas pessoas costumam ser céticas em relação às alegações do governo dos EUA e críticas de sua política externa, elas foram ignoradas, ridicularizadas e costumam ser impedidas de aparecer na televisão, enquanto que os mentirosos do governo norte-americano e seus aliados da mídia corporativa, como sempre, ganham espaço para disseminar suas mentiras sem qualquer desafio ou discordância, exatamente como manda o manual das TVs estatais.
De fato, nenhuma das pessoas que questionou a alegação original a respeito dos caminhões incendiados, ou que citou esta prova para argumentar que o governo dos EUA e seu aliado venezuelano Guaidó estavam mentindo jamais foi vista em rede nacional de TV para apresentar sua discordância. Nenhuma delas pode aparecer. Quando sequer foram reconhecidas, foi para serem difamadas como defensores de Maduro – por dizer a verdade –, exatamente como aquelas que tentaram combater a propaganda de 2002 e 2003 foram desacreditadas como sendo pró-Saddam. Apenas Rubio, Bolton, Pompeo e diversos outros representantes dos EUA puderam disseminar suas mentiras sem qualquer desafio.
Isso é especialmente notável desde que o próprio governo russo, aliado de longa data do governo Maduro, publicou a prova mostrando que era uma mentira. Alegações dos governos russo ou venezuelano merecem tanto ceticismo quanto as de qualquer outro governo, mas elas merecem ao menos ser ouvidas. No entanto, a mídia corporativa norte-americana – justamente porque é TV estatal mesmo que adore acusar outras de serem isso – jamais exibe as visões de governos hostis ao governo dos EUA, exceto de maneira superficial e com menosprezo:
#HandsOffVenezuela Imagens do incidente na fronteira entre Venezuela e Colômbia surgiram mostrando a oposição apoiada pelos EUA atirando coquetéis molotov contra os caminhões da @USAID trucks + “ativistas da oposição” preparando preparing dispositivos incendiários abertamente – https://t.co/UIMYNEjAnV. Você acredita:
— na Rússia ou na RSA?? (@EmbassyofRussia) 25 de fev de 2019
É preciso observar que não foi a primeira vez que mentiras absolutas foram disseminadas pelo governo e pela mídia dos EUA para inflamar a mudança de regime contra a Venezuela. Uma fotografia de uma ponte entre a Colômbia e a Venezuela foi transmitida pelo mundo todo como prova de que Maduro estava barrando ajuda humanitária.
Mas a CBC – para seu grande crédito – publicou um longo pedido de desculpas observando que ela também havia caído nessa propaganda ao difundir a foto da ponte para sustentar essa narrativa quando, na verdade, aquela ponte havia sido fechada anos antes devido a tensões entre os dois países. Poucos, se é que houve algum, meios de comunicação norte-americanos que divulgaram aquela mentira elaboraram uma correção ou um pedido de desculpas semelhante.
Igualmente falsa é a popular e amplamente divulgada alegação midiática de que Maduro se recusou a permitir a entrada de qualquer ajuda humanitária na Venezuela. Isso também é uma mentira completa. O governo venezuelano permitiu a entrada de quantidades substanciais de auxílio no país de países que não ameaçaram derrubar o presidente com um golpe externo. Maduro impediu a entrada apenas de caminhões e aeronaves vindas dos países (Estados Unidos, Brasil, Colômbia) que vêm ameaçando a Venezuela. Algo que qualquer país faria.
De fato, tanto a Cruz Vermelha quanto as Nações Unidas expressaram preocupações quanto à “ajuda humanitária” dos EUA sob a argumentação de que seria um pretexto para a mudança de regime e uma politização da ajuda humanitária. Até mesmo a Rádio Pública Nacional (NPR) reconheceu que “o esforço dos EUA de distribuir toneladas de alimentos e medicamentos aos venezuelanos necessitados é mais do que apenas uma missão humanitária. A operação também foi pensada para fomentar a mudança do regime na Venezuela – motivo pelo qual grande parte da comunidade de ajuda internacional não quer nenhum envolvimento com ela”.
Essa preocupação é evidentemente válida, considerando-se o histórico de Elliott Abrams, o enviado que está liderando a política norte-americana na Venezuela, de explorar “ajuda humanitária” como fachada para contrabandear armas e outras ferramentas para derrubar governos latino-americanos de que ele não gosta – outro fato raramente ou nunca mencionado nas reportagens da mídia dos EUA.
Se você quer assistir à “TV estatal” vintage, veja este clipe: um repórter acompanhando os militares dos EUA, despejando acriticamente cada linha dos esforços de mudança de regime do governo americano, omitindo fatos importantes (como os pretextos de ajuda humanitária utilizados anteriormente por Elliott Abrams para contrabandear armas): https://t.co/T6NOiqMWRr
— Glenn Greenwald (@ggreenwald) 14 de fev de 2019
O que temos aqui é uma amostra clássica de fake news – disseminadas no Twitter, por autoridades dos EUA e astros da mídia norte-americana – com a intenção clara e maliciosa de começar uma nova guerra. Mas nenhum defensor ocidental da censura das mídias sociais pedirá que suas contas sejam canceladas ou pedirá que seus posts sejam excluídos. Isso porque fake news e a guerra contra elas é apenas um meio de combater propaganda de adversários dos EUA. Os Estados Unidos e seus aliados mantêm amplos programas para disseminar fake news online, e nenhum desses cruzados antifake news pedem para que eles sejam interrompidos.
E a próxima vez em que forem feitas alegações sobre a Venezuela com o objetivo de alimentar a mudança do regime e guerras, os jornalistas e analistas independentes que estavam absolutamente corretos neste caso – que reconheceram e documentaram as mentiras do governo dos EUA semanas antes do New York Times – mais uma vez serão ignorados ou, na melhor das hipóteses, ridicularizados. Enquanto isso, aqueles que amplificaram e difundiram acriticamente essa mentira perigosa na mídia e na comunidade de política externa serão tratados como as pessoas sérias cujos pronunciamentos são os únicos dignos de se ouvir. Com raras exceções, discordâncias quanto a Venezuela continuarão sendo barradas.
Isso ocorre porque a mídia dos EUA, intencionalmente, não permite dissidência quanto à política externa norte-americana, especialmente quando se tratam de alegações falsas a respeito de adversários dos EUA. É por isso que aqueles que não acreditam na mudança de regime promovida pelos EUA na Venezuela ou dissidentes quanto às ortodoxias predominantes sobre a Rússia, desapareceram amplamente dos principais meios de comunicação, exatamente como aconteceu em 2002 e 2003.
Isso não ocorre porque ordenam que os astros da mídia façam isso. Eles não precisam de ordens. Eles sabem que o trabalho deles é propaganda. Mais precisamente, eles são jingoístas ultrapatrióticos que reverenciam autoridades norte-americanas e, dessa forma, não possuem um único neurônio de pensamento crítico no cérebro. É por isso que têm programas de TV, para começar. Se não fossem assim, não estariam na TV, como Noam Chomsky observou tão perfeitamente a Andrew Marr, da BBC, neste breve clipe de anos atrás (o contexto completo de três minutos, que vale a pena ver, está aqui). Isto conta toda a história deste sórdido caso na Venezuela:
– Certamente você fala pela maioria dos jornalistas, que são treinados e inculcados de que essa é uma cruzada, uma profissão que antagoniza, que enfrenta o poder. Uma visão que serve a si mesma.
– Como o senhor pode saber que estou me autocensurando?
– Eu não estou dizendo que você se autocensura. Com certeza você acredita em tudo o que está falando. O que eu digo é que, se você acreditasse em algo diferente, você não estaria sentado onde está agora.
Tradução: Cássia Zanon
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