02/05/2024 - Edição 540

Judiciário

Tratados de direitos humanos têm ‘lado esquerdo e de bandido’, afirma desembargador

Em e-mail, Rogério Medeiros Garcia de Lima, presidente de comissão de concurso do TJMG, afirma que Corte Interamericana de Direitos Humanos e Agenda 2030 da ONU são ‘modas esquerdistas’

Publicado em 13/10/2022 9:35 - Jeniffer Mendonça – Ponte

Divulgação Foto: reprodução/Facebook

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Um desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) declarou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tem “viés ideológico de esquerda” e que é contra a aplicação de convenções internacionais de direitos humanos no Brasil, embora a Constituição Federal determine o cumprimento de tratados aprovados pelo Congresso Nacional e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomende que os tribunais sigam a jurisprudência da Corte IDH.

A afirmação partiu de Rogério Medeiros Garcia de Lima em um e-mail interno endereçado a magistrados do tribunal que a Ponte teve acesso. Além de desembargador, ele é presidente da Comissão de Concurso para juiz substituto.

No corpo do e-mail, que data de 30 de setembro, ele afirma que respondeu “não” a todas as perguntas de uma pesquisa do CNJ em parceria com a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) sobre a aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Poder Judiciário. “Na única resposta que pediu justificativas, afirmei que Corte Americana e outras Cortes internacionais de direitos humanos têm viés ideológico de esquerda”, escreveu.

“Sou contra controle de convencionalidade e a aplicação dessas decisões políticas internacionais no direito interno”, prosseguiu. “Por aderir a essas modas esquerdistas e à Agenda ONU 2030, o Judiciário brasileiro se tornou ativista e deixou de ser imparcial. Sobretudo nas instâncias superiores. Está desmoralizado. É o que penso. Não sou contra direitos humanos, mas eles não podem ter só o lado esquerdo e o de bandidos. Bom fim de semana!”, diz na mensagem.

Essa pesquisa teve o edital aberto em 2021. Segundo o CNJ, ela ainda está em andamento e os resultados serão divulgados em 2023. A coordenação é do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano da PUC-PR (Nuped), que abriu um formulário em maio deste ano para que magistrados respondam, de forma anônima, a questões relacionadas à aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos e suas percepções. De acordo com juízes de outros tribunais ouvidos pela reportagem, o formulário continuou aberto e foi reenviado por e-mail no mês passado para recolher mais respostas.

No formulário, que a Ponte acessou, há questões como: se o magistrado conhece a Resolução 123/2022 do CNJ, que recomenda “aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”; se conhece o conceito de “controle de convencionalidade” ou já o aplicou em decisões judiciais; se considera que a aplicação da Convenção Americana seria “desnecessária” “frente ao vasto catálogo de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal” e assim por diante. As respostas são de múltipla escolha e ao final a pessoa pode deixar uma consideração por escrito.

Para a presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), a percepção do desembargador é “absurda, ainda mais vindo de uma pessoa que participa de um processo de seleção de novos juízes”. “Magistrados não podem fazer valer sua ideologia, sobrepondo suas crenças e preconceitos ao que diz a lei. Nosso juramento, ao assumirmos o cargo, é de cumprir a Constituição”, criticou à Ponte Cristiana Cordeiro.

O que isso significa na prática

A Convenção, também chamada de Pacto de São José da Costa Rica, é um tratado internacional adotado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1978. O Brasil aderiu à Convenção em 1992, ou seja, se tornou um país signatário. Nela, há um compromisso de garantia de diversos direitos fundamentais e proteção contra discriminações, que vão da liberdade de expressão ao direito à propriedade privada.

O controle de convencionalidade é um mecanismo de vincular o que pregam tratados internacionais às normas internas do país. Um exemplo é uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o Massacre do Carandiru que trata, dentre os pontos, a reparação para as famílias, em que um desembargador usou o documento para conceder, em 2017, a indenização para os filhos de uma das vítimas ao não acolher o argumento de prescrição do crime.

Na Constituição Federal, também é previsto que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” e que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”

Outro exemplo de vinculação é que em casos de graves violações de direitos humanos, a Constituição prevê que “o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”. Esse é o caso de um dos episódios dentro dos Crimes de Maio de 2006, em que o STJ determinou a federalização da Chacina do Parque Bristol em agosto deste ano.

Os tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil ratifica são supralegais. “Eles estão por cima das leis ordinárias e por baixo da Constituição brasileira, ou seja, fazem parte do ordenamento jurídico”, explica Daniel Cerqueira, que é diretor de Programa da Due Process of Law Foundation, ONG com sede em Washington DC, nos Estados Unidos, cujo mandato é buscar fortalecer o Estado de Direito na América Latina, e que foi advogado da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de 2006 a 2010.

Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão judicial do sistema interamericano que julga ações movidas contra os estados-membros. “Desde 1998, o Brasil aceita a competência jurisdicional desse tribunal”, prossegue. “O direito internacional se baseia em grande medida na vergonha pública perante a opinião pública internacional e também a nacional [em casos de condenação da corte ou descumprimento de sentença]”.

No ano passado, o CNJ aprovou recomendar aos tribunais que sigam a jurisprudência da Corte IDH e priorizem julgamentos que envolvem condenações da corte ao estado brasileiro em ações judiciais para reparar as vítimas desses casos. A decisão se tornou a Resolução 123/2022.

Ao ler a mensagem do desembargador, Cerqueira aponta como lamentável vindo de um operador do direito. “Ele claramente tem o conhecimento de que é uma obrigação aplicar o controle de convencionalidade e por razões políticas ideológicas ele basicamente adota um critério antijurídico que vai contra a própria resolução do CNJ”, critica. “Não sei quais são os fundamentos do desembargador, mas claramente baseados em um achismo, em uma opinião totalmente mítica, sem um fundamento real”.

O especialista indica que a ratificação de tratados internacionais não viola a soberania nacional. “Uma vez que esses tratados são ratificados, eles fazem parte do direito interno, inclusive, fazem parte do ordenamento jurídico, seria a mesma coisa dizer que aplicar o Código Civil [legislação que trata de relações jurídicas de ordem privada] vulnera a soberania nacional”, explica.

Além disso, enfatiza que a garantia de direitos humanos não é pauta de esquerda ou de direita, mas de todos, independente de espectro ideológico. “Os direitos humanos não têm posição a favor ou contra ou mais favorável a bandido e menos favorável a uma pessoa segundo o delito que cometeu. A vítima de violência tem o direito infranqueável de que o agressor ou pessoa que comete crime seja investigado e sancionado”, destaca.

Cerqueira também aponta que não faz sentido atrelar a Agenda 2030 da ONU, que é um pacto global de metas e objetivos para o desenvolvimento sustentável, mencionado no e-mail do magistrado, a uma “ideologia de esquerda”. “Essa agenda foi impulsionada, em grande medida, pelo setor privado. Existe um pacto do sistema das Nações Unidas que é multilateral com setor privado, Estados e sociedade civil. Várias companhias, as maiores do mundo, aderem a essa agenda. Então, há um contrassenso ao afirmar, por exemplo, que a Tesla, a Ford ou a Shell são companhias que apoiam uma ideologia de esquerda”, pontua.

O que diz o desembargador

Desde quinta-feira (6/10), a Ponte solicitou entrevista com o desembargador por meio da assessoria do TJMG. No dia seguinte ao e-mail, o magistrado enviou uma mensagem por e-mail dizendo que deixaria de participar do grupo (lista dos e-mails). “Encaminharam a um jornalista uma mensagem supostamente atribuída a mim, atribuindo-me uma injusta pecha de juiz que não respeita o Estado Democrático de Direito. Lamentável”, escreveu.

Em e-mail encaminhado pela assessoria do TJMG à Ponte nesta segunda-feira (11/10), Rogério afirmou que “quando somos empossados nos cargos da magistratura, juramos respeitar ‘a Constituição da República, a Constituição do Estado de Minas Gerais, as leis e o Regimento Interno do Tribunal’.

Outra coisa não tenho feito nesses 33 anos de integral dedicação à Magistratura. Repudio totalmente a insidiosa tentativa de me impingir a pecha de juiz que não respeita o Estado Democrático de Direito e os direitos humanos. Desmentem os caluniadores as inúmeras obras jurídicas, artigos avulsos e decisões judiciais que redigi”.

Ele ainda cita uma decisão favorável sua ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) em 2013 e finaliza: “Lamento profundamente que a cegueira ideológica tenha introduzido a perfídia no seio da outrora harmônica Magistratura do Estado de Minas. Continuo unido à imensa maioria dos magistrados e magistradas de bem”.


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