04/05/2024 - Edição 540

Especial

SANGUE NO CAMPO

Em corte internacional, Brasil pede 'desculpas' e reconhece violações

Publicado em 16/02/2024 10:35 - Jamil Chade (UOL), Paula Bianchi (Repórter Brasil) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Na semana passada, o Brasil foi levado ao banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos, acusado em dois casos de assassinatos de trabalhadores rurais. Em San José da Costa Rica, a corte regional se reúne para julgar as denúncias que, segundo observadores internacionais, revelam a violência no país pelo acesso à terra. Mas, num gesto histórico, o estado brasileiro optou por reconhecer as violações e pedir desculpas às vítimas. Para entidades de direitos humanos, o gesto é importante. Mas não basta.

O tribunal examina o caso do assassinato do trabalhador rural Manoel Luiz da Silva, morto há 27 anos. Ele foi baleado em 19 de maio de 1997, em São Miguel de Taipu, na Paraíba, quando passava por uma estrada, ao lado de outros três trabalhadores rurais. Os acusados foram os seguranças particulares do proprietário da Fazenda Engenho Itaipu, Alcides Vieira de Azevedo.

A vítima era do MST e tinha 40 anos. Manoel deixou a esposa, Edileuza Adelino de Lima, grávida de dois meses, e um filho de quatro anos, Manoel Adelino.

A investigação, porém, foi marcada por falhas e demora. Segundo as entidades que denunciam o caso, isso “viola o direito à integridade psíquica e moral dos familiares da vítima, além dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, conforme determina a Convenção Americana sobre Direitos Humanos”.

Ao tomar a palavra nesta quinta-feira, o estado brasileiro tomou uma decisão rara na participação do país nos tribunais internacionais.

As autoridades nacionais reconheceram que o estado violou direitos e garantias na condução do processo penal relativo à morte de trabalhador rural na Paraíba. Em nome do Estado brasileiro, representantes da AGU (Advocacia-Geral da União) pediram desculpas aos familiares da vítima durante audiência.

“O Estado brasileiro reconheceu a violação às garantias judiciais e à proteção judicial da vítima e seus familiares, visto que, embora o caso tenha ocorrido em 1997, o julgamento final dos dois acusados pelo assassinato somente se deu em novembro de 2013, tempo incompatível com uma duração razoável do processo”, afirmam.

A AGU também admitiu ter ocorrido desrespeito à integridade física, psíquica e moral dos familiares de Manoel, pois a “falha no bom andamento” da ação penal no Poder Judiciário resultou em “grave sofrimento” nos 16 anos de tramitação da ação, segundo a Advocacia-Geral da União.

“O Estado brasileiro, assim, reafirma sua plena disposição em honrar os compromissos assumidos internacionalmente quanto à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, afirmou a representante da AGU, a advogada da União Taiz Marrão, da Procuradoria Nacional de Assuntos Internacionais.

Na declaração, o Estado brasileiro também reconhece sua responsabilidade internacional por ofensa ao artigo 5.1 do Pacto de San José, segundo o qual toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

“De fato, a perda de um ente querido, somada à espera alargada por uma resposta estatal, constitui inelutável violação da integridade psíquica e moral dos familiares do senhor Manoel Luiz da Silva”, constatam.

“Em razão disso, considerando-se a natureza jurídica própria de que se revestem as medidas de reparação por violações dos Estados ao Direito Internacional, o Estado brasileiro manifesta publicamente seu pedido de desculpas aos familiares do senhor Manoel Luiz da Silva”, declarou a representante.

Segundo a versão do estado, em 19 de maio de 1997, Manoel e outros trabalhadores acampados na fazenda “Amarelo”, no Estado da Paraíba, dirigiram-se a uma mercearia com o objetivo de comprar querosene. No entanto, ao retornarem ao acampamento utilizando um caminho que cortava a fazenda “Engenho Itaipu”, no município de São Miguel de Taipu (PB), os trabalhadores foram agredidos por empregados fortemente armados da propriedade, tendo sido deflagrado tiro de espingarda calibre 12 que vitimou fatalmente Manoel.

A mesma Corte julga a denúncia por omissão e falta de responsabilização do Estado no caso do desaparecimento forçado, em 2002, de Almir Muniz da Silva, trabalhador rural e defensor dos direitos dos trabalhadores rurais.

Ambos ocorreram no estado da Paraíba e foram denunciados pela Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra da Paraíba e a Dignitatis, além da Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Almir Muniz, no caso do defensor de direitos humanos.

Os agricultores do São Francisco se dividem em turnos de duas horas que vão das 22h até o sol raiar para vigiar o acampamento (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

Só o primeiro passo

Para as entidades que representam as vítimas, o reconhecimento de violações pelo Estado Brasileiro é “importante, mas somente um primeiro passo”.

Em nota, a Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 e a Dignitatis “saúdam a decisão do Estado Brasileiro de, enfim, reconhecer parcialmente sua responsabilidade internacional pela investigação ineficaz e pela demora excessiva do processo penal que apurou a morte” do trabalhador rural.

Mas as entidades “lamentam que sua formalização tenha ocorrido apenas diante de uma Corte Internacional, e que não tenha sido acompanhada de uma delimitação precisa sobre os efeitos e limites do reconhecimento”.

“As organizações questionam a decisão do Estado brasileiro de reconhecer as violações apenas na audiência na Corte Interamericana, quando poderia tê-lo feito antes, impedindo que se abrisse um espaço de diálogo real com as vítimas e suas representantes quanto aos limites desse reconhecimento, bem como sobre as medidas de não repetição”, dizem. “Isso evitaria, por exemplo, a continuação das violações decorrentes do próprio depoimento de uma das vítimas, gerando mais constrangimentos desnecessários”, explicam.

As organizações apresentaram mais de vinte indicações de medidas de reparação e de não repetição para dar conta das lacunas estruturais que levaram aos fatos. “No entanto, o reconhecimento do Estado foi silente com relação a quais dessas medidas concretas serão implementadas”, constatam.

As entidades ainda cobram do estado que se sobre as demais violações apontadas: direito à verdade e sua relação com a violência aos trabalhadores e trabalhadoras rurais; impactos na vida familiar durante as décadas que se passaram desde os fatos; e a necessidade de empreender modificações legislativa.

Os ruralistas espalham conflitos no campo

No acampamento São Francisco, em Vitória de Santo Antão (PE), ninguém dorme a noite inteira. É assim também em outros acampamentos do MST na região, que viram uma escalada de violência nos últimos meses. Apenas em novembro, três agricultores do movimento foram assassinados.

A violência contra esses trabalhadores sempre existiu, mas o clima de insegurança se agravou no governo Lula (PT), em razão da expectativa pela retomada da reforma agrária. Assim avaliam trabalhadores sem-terra e missionários locais ouvidos pela Repórter Brasil.

“Ainda são promessas [do governo], mas isso provoca os proprietários de terra. Eles começam a ameaçar mais para ver se o povo recua”, diz a irmã Tânia Maria de Sousa, há 30 anos na Comissão Pastoral da Terra (CPT).

A entidade registrou 973 casos de conflitos no campo no primeiro semestre de 2023 – aumento de 8% em comparação com o mesmo período de 2022. A maior parte dos casos (791) envolveu disputas pela propriedade da terra.

“Nós vivemos seis anos de governos em que não foi pautada a reforma agrária. Ao mesmo tempo, a violência continuou, como apontam os números”, afirma a missionária.

No caso do São Francisco, a situação se agravou com o assassinato de Josimar da Silva Pereira, em 5 de novembro. Ele se dirigia para o acampamento para regar uma plantação de arroz comunitária quando foi morto a tiros.

O São Francisco é um dos acampamentos do MST mais antigos de Pernambuco. Os agricultores aguardam há 29 anos pela desapropriação da área, já vistoriada e considerada improdutiva pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Apesar de as investigações ainda estarem em andamento, os agricultores acreditam que o assassinato tem relação com a luta pela terra. A morte ocorreu um dia depois de um incêndio criminoso em uma plantação de cana-de-açúcar vizinha, e na véspera de uma visita de representantes do Incra.

Ao menos três lideranças do São Francisco relatam ameaças e aguardam a entrada no programa estadual de proteção a defensores de direitos humanos.

“Acho que ninguém dorme aqui. Se aconteceu com o Josimar, que era uma pessoa que estava na luta com a gente, mas não era diretamente ligado à coordenação, pode acontecer com qualquer um de nós”, diz Denise Alves dos Santos, uma das coordenadoras do acampamento.

As vigílias na madrugada se intensificaram após a morte de Josimar. Os agricultores se dividem em turnos de duas horas que vão das 22h até o sol raiar. Além dos facões e enxadas utilizados na lavoura, os agricultores contam com câmeras instaladas pelo governo do estado, depois dos primeiros relatos de ameaças.

Denise Santos diz que é comum ver drones sobrevoando o local e que, em mais de uma oportunidade, apareceram desconhecidos perguntando sobre o paradeiro de lideranças e seus familiares. Não há crianças no acampamento. Por segurança, todos preferem manter os filhos vivendo com familiares na cidade.

A cana que cerca o São Francisco pertence à Usina JB, uma das poucas empresas sucroalcooleiras que ainda resistem na região da Mata Sul de Pernambuco. A empresa briga na Justiça pela retirada dos agricultores do local, parte de uma área comprada pela JB há alguns anos. Em nota enviada à Repórter Brasil, a JB nega que o local seja improdutivo, como afirmam os trabalhadores e a vistoria do Incra.

Em quase três décadas de acampamento, os agricultores já passaram por 16 despejos – situação em que a Justiça determina a reintegração de posse, a remoção dos moradores e a destruição de casas e plantações.

“[A usina] alega que a gente invadiu no ano passado, mas tem gente aqui há 29 anos. É só você olhar o tamanho dos pés de frutas, das mangueiras, das bananeiras, do que foi feito nessa terra”, diz Andreia da Silva Germano, membro da coordenação e moradora do acampamento desde 2017.

Questionada pela reportagem, a JB respondeu que tem “total interesse na solução dos conflitos” e que já colocou áreas da empresa em outros municípios à disposição do Incra. A empresa também diz ser vítima de intimidações, não o contrário. “Houve uma tentativa de incendiar um de nossos ônibus, o que colocou em risco a vida do motorista e dos quatro funcionários do grupo que estavam a bordo”, afirmou em nota.

Ainda segundo a usina, os agricultores do acampamento São Francisco “estão em área de proteção ambiental e num imóvel produtivo, não sendo lícita a sua desapropriação”. Leia a resposta na íntegra.

Disputa antiga

A tensão com usineiros não é exclusividade do São Francisco. Na região, há diversas usinas de cana falidas cujos terrenos foram ocupados tanto por ex-funcionários, que ganharam “de boca” o direito à terra, quanto por agricultores do movimento.

A disputa entre os proprietários das terras e os posseiros é antiga. Segundo Plácido Junior, agente da CPT e um dos responsáveis pelo levantamento de conflitos no campo, foi agravada com a paralisação do programa de reforma agrária e o crescimento da pecuária na região.

“A gente percebeu que nesses últimos quatro anos os conflitos têm aumentado em Pernambuco. O represamento da reforma agrária cria uma situação de conflito insustentável. As usinas se transformando em empresas de agropecuária, preferindo colocar bois a gente nas terras, é mais um elemento. Uma hora isso estoura”, explica.

Nos últimos dez anos, a obtenção de terras para a reforma agrária caiu vertiginosamente até chegar a zero em 2021. Em 2023, com o novo governo Lula, a situação não foi diferente, como mostra matéria recente da Repórter Brasil.

Estima-se que 65 mil famílias vivam em acampamentos. Outras 30 mil estão em pré-assentamentos. Nesses locais, os agricultores não têm acesso a créditos nem a outras políticas do programa de reforma agrária.

Em Goiana (PE), cidade na divisa com a Paraíba que concentra 12 acampamentos do MST, o carro de uma liderança sem-terra foi alvejado por diversos tiros, poucos dias antes da visita da reportagem. Agricultores relatam terem sido espancados a mando de proprietários de terras.

“Os nossos amigos foram tratados como bichos. Mandaram bater nos companheiros. O carro [de um dos coordenadores] foi crivado de bala, o vidro quebrado com porrada. Foi um desespero”, conta Josefa Rosa, coordenadora de um dos acampamentos.

No acampamento de Rosa, os agricultores estão reconstruindo as casas no entorno da sede como forma de se proteger. A própria agricultora anda o tempo todo acompanhada por seguranças voluntários.

“Nós resolvemos fazer os barraquinhos mais perto da sede porque a noite é mais traiçoeira. A gente tem que estar alerta todo o tempo, toda hora”, diz.

Lá também foi instituída a vigília durante a madrugada. Qualquer carro desconhecido que passa pelas estradas que cortam o acampamento é considerado suspeito e há até um gongo improvisado com uma placa de metal, acionado em caso de perigo.

Para Bruno Ribeiro, advogado da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco, a atual situação não é novidade. “É difícil dizer ‘a violência aumentou’. A violência sempre foi uma marca.”

A insegurança permanente levou a área a ser a única na região a ser incluída no Plano Emergencial de Pacificação do Campo, lançado no fim do ano pelo governo federal. Ribeiro considera a medida um passo importante, mas insuficiente.

Para ele, as ações de desapropriação de terras deveriam ser a prioridade da reforma agrária. Mas, com o baixo orçamento do Incra, a expectativa é de que o ciclo de violência continue. “Sem dinheiro para desapropriar, a comissão e o Incra não vão fazer nada. Esse conflito só vai piorar.”

Superintendente do Incra no estado, Givaldo Cavalcante Ferreira concorda que a paralisação das compras de terras trouxe “danos irreparáveis”, mas argumenta que o órgão tem poucos recursos financeiros e sofre com a falta de funcionários e de novos concursos para repor os aposentados.

Em resposta à Repórter Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) afirmou que “a reforma agrária e a promoção da paz no campo são prioridades para o governo federal”. Segundo o ministério, em 2023, o MDA e o Incra atuaram na resolução de mais de 200 conflitos agrários, em parceria com o sistema de justiça.

Produção de inhame em acampamento do MST em Goiana (PE). A área foi única na região a ser incluída no Plano Emergencial de Pacificação do Campo (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

Acampamento esvaziado

Sete horas na estrada sertão adentro, a paisagem muda. O que restou da Mata Atlântica dá lugar à Caatinga. Mas a disputa pela terra continua.

Em Princesa Isabel, já na Paraíba, dois agricultores do acampamento Quilombo do Livramento foram assassinados no dia 11 de novembro.

Aldecy Viturino Barros e Ana Paula Costa Silva faziam reparos no telhado da casa da família de Ana quando foram mortos por dois homens que chegaram em uma moto. Barros era o líder do acampamento, que ocupa há 14 anos uma área da União utilizada no passado pelo Instituto Federal da Paraíba. A investigação do caso, a cargo da Polícia Civil, segue em aberto.

O agricultor Joaquim Tavares Pereira, que tem ajudado na organização do acampamento, diz que os assassinatos esvaziaram o local em que viviam 22 famílias. “Depois da morte desses dois companheiros, hoje se tiver 8 famílias é muito. O restante, com medo, começou a ir para a cidade.”

No local, as terras já foram divididas pelos próprios agricultores e cada família construiu uma pequena casa em seu hectare. Eles usam coletivamente a água retirada de um açude para manter a lavoura e aguardam pelo inverno do semiárido, quando aumentam as chuvas, para retomar a plantação.

Para Dilei Schiochet, uma das coordenadoras do MST no estado, matar lideranças é uma forma de desmobilizar o movimento e impedir novas ocupações. “Você mata a liderança para ver se o povo vai embora. É uma tática. Você mata o líder para as pessoas se sentirem ameaçadas, amedrontadas e saírem”, diz.

Ela também menciona a paralisia da reforma agrária como catalisador da violência, e cobra um posicionamento do Incra. “O mais grave é não ter em todo ano de 2023 um planejamento de vistorias de terra”, diz. A vistoria é uma das etapas mais importantes para constituição de um assentamento rural.

“Como há um processo de estagnação da reforma agrária no Brasil, há uma reação. E quando você acumula esses problemas, a tendência de ocorrer tantos assassinatos no campo, quanto aumentar a violência, é mais visível. Falta fazer a reforma agrária no país porque ela ainda é muito tímida”, afirma.


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