02/05/2024 - Edição 540

Especial

RETROCESSO

Senado aprova racismo e chacina em votação da PEC das Drogas

Publicado em 19/04/2024 9:50 - Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Camila Boehm (Agência Brasil), Tiago Angelo (Conjur) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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O Senado aprovou, na terça (16), em duas votações na mesma noite, a proposta de emenda constitucional que criminaliza a posse de qualquer quantidade de droga e mantém na cabeça do policial e do juiz, e não na lei, o critério para separar consumidor de vendedor — decisão que, não raro, é guiada pelo racismo. Afinal, no pantone social brasileiro, branco rico é usuário, preto pobre, traficante.

Certamente houve entre os 53 senadores que votaram a favor da matéria em primeiro turno e os 52, no segundo, quem celebrasse o feito com um bom copo de álcool ou fumando seu tabaco — drogas legalizadas que causam mais mal à sociedade do que a maconha. Mas coerência não é matéria-prima para a fabricação de leis.

O avanço da PEC das Drogas ocorre no momento em que o Supremo Tribunal Federal analisa uma ação que traz critérios para separar o usuário do traficante. O próprio presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso, conversou com o Senado para apontar a importância dessa separação. Em meio às rusgas entre o STF e o Congresso, o diálogo virou fumaça.

Esse tipo de proposta vai na contramão do que é feito em países “atrasados”, como Estados Unidos, Alemanha, Espanha e Portugal. Se a Câmara dos Deputados aprovar esse retrocesso, e deve aprovar, teremos dificuldade de reduzir o morticínio em comunidades pobres dominadas pelo tráfico e pelo racismo que trata um jovem negro com um beque como alguém a ser punido, um jovem branco com uma trouxa de droga como alguém a ser ajudado e um influenciador fitness pego na produção de toneladas de drogas como um grande injustiçado.

Hoje a lei não define uma quantidade de droga que separa o traficante do usuário. Com isso, a polícia e a Justiça passaram a enquadrar semoventes com pequena quantidade de maconha como bandidos, mandando muitos para a cadeia — quer dizer, para a escola do crime dirigida pelas narcomilícias. Com isso, o STF foi acionado. Foi o bastante para a grita daqueles que acham que a corte só pode julgar a constitucionalidade daquilo que lhes convêm.

A PEC até prevê a separação no tratamento de traficantes e de usuários (mas como vai fazer isso, ignorando o debate em curso no STF, não sei) e prevê penas alternativas, além de mandar usuários para tratamento. Dá arrepios imaginar a interpretação criativa de alguns juízes a partir disso.

No intuito de combater o crime, estamos matando milhares de pessoas todos os anos — muitas delas moradoras de áreas pobres. Ou seja, gente considerada dispensável. E, ao mesmo tempo, vamos mantendo a indústria do medo em curso e promovendo o controle de determinadas classes sociais através da justificativa de conter a violência que grassa em seu território. As mutações teratogênicas de policiais, as milícias, aprenderam com o tráfico que o controle desses locais dá muito dinheiro. Tudo isso é muito mais danoso à sociedade do que a liberação controlada e regulamentada de drogas.

Se o poder público brasileiro quisesse resolver a bomba-relógio da força das organizações criminosas e do sistema carcerário falido, descriminalizaria e legalizaria paulatinamente uma série de drogas, começando pela maconha. Isso quebraria as pernas do tráfico, reduzindo o número de jovens que hoje são enviados aos presídios para aprender a roubar e a matar e desidrataria o poder econômico das facções criminosas.

No final das contas, uma parte do Senado quis emparedar o STF, sob a justificativa de usurpação de função legislativa. Outra quis jogar ração ao seu rebanho. Há ainda o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Davi Alcolumbre, que estava de olho nos votos da direita em sua campanha para voltar ao comando da casa. E o presidente, Rodrigo Pacheco, que busca agradar o eleitorado conservador visando a disputa ao governo de Minas Gerais em 2026. Uma parcela de senadores do centrão quer os mesmos mimos concedidos pelo governo Lula aos deputados federais. Muitos ficaram com medo de votar contra e aparecer mal junto à população, que compra fácil esse populismo criminal. E há, claro, os que de boa vontade acreditaram que a política vai proteger vidas. Mas esses deviam ter alargado o debate em muitas audiências públicas para ouvir como os mais pobres se estrepam com isso. O trâmite, contudo, durou menos de um mês.

Como senador não toma enquadro de blitz, todos dormiram tranquilos à noite. Quem não vai dormir bem é o mundo real.

Para desfeitear STF, Senado fornece mão de obra ao PCC

A vida ensina, mas quem não presta atenção aprende pouco. Num instante em que ministério público, polícia e órgãos de controle se unem para desbaratar em São Paulo CNPJs que lavam dinheiro do crime organizado, o Senado se autoconverte em fornecedor de mão de obra para o PCC e seus congêneres.

Os senadores aprovaram emenda constitucional que favorece a superlotação de presídios operados pelas facções como centros de formação da criminalidade. Empurrou-se para dentro da Constituição artigo que criminaliza a posse de drogas “independentemente de quantidade”.

O texto distingue o traficante do usuário. Para quem trafica, cadeia. Para quem consome, penas alternativas à prisão e tratamento contra a dependência. A diferenciação já constava de uma lei aprovada em 2006. O problema é que os senadores reincidiram na covardia que acometeu os legisladores há 18 anos.

A emenda não contém critério objetivo para separar traficante de usuário. Na prática, cabe ao policial da esquina decidir entre a cana e o tratamento de saúde, conforme “as circunstâncias fáticas de cada caso.” Há no Supremo um placar parcial de 5 votos a 3 para definir que usuário não pode ser preso. No mesmo julgamento, já se formou maioria pela definição de uma quantidade de maconha que diferencie usuário de traficante. Mas o parâmetro ainda não foi estabelecido.

Ao constitucionalizar a polêmica, os senadores travam o Supremo sem resolver o problema. Em Ipanema ou nos Jardins, todos são usuários. No morro carioca ou na periferia paulistana, jovem preto e pobre com um cigarro de maconha vai para o xilindró como traficante.

Com a criminalização de usuários de drogas e a proibição de saidinhas, o Congresso mantém o fluxo de mão de obra para a indústria de crimes que opera dentro das cadeias. Simultaneamente, o PCC infiltra-se na política, alicia agentes públicos e belisca contratados milionários com o Estado. É como se o Legislativo firmasse uma PPP, parceria público-privada com a criminalidade.

PEC das Drogas é inconstitucional e deve agravar cenário de violência

Especialistas apontam que a PEC, além de inconstitucional, deve agravar o cenário atual de violência, encarceramento e desigualdade social. A avaliação é que descriminalizar as drogas e promover uma regulamentação seria uma solução mais eficiente.

“É a demonstração de que o Senado Federal deu as costas para a Constituição e abraçou essa política de drogas racista, genocida, super encarceradora e que fortalece facções criminosas”, avalia o advogado Cristiano Maronna, diretor do Justa, centro de pesquisa que atua no campo da economia política da justiça.

Para o especialista, a descriminalização e a regulamentação seriam mais eficientes do que a alteração aprovada no Senado. “É essa a direção em que países com democracias de alta densidade estão seguindo. Já o Brasil está no rumo seguido pelas autocracias e ditaduras”, disse o advogado, que é mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP).

A PEC, que agora será avaliada pela Câmara dos Deputados, foi articulada após o STF voltar a pautar o julgamento da descriminalização do porte da maconha para uso pessoal, determinando a diferenciação entre usuário e traficante. Um pedido de vista do ministro Dias Toffolli suspendeu o julgamento em março. A matéria está em 5 votos a 3 para a descriminalização somente do porte de maconha para uso pessoal.

Cristiano Maronna defende que o Supremo, ao votar o tema, está exercendo uma função típica de corte constitucional, que é declarar inconstitucional uma norma jurídica. “Além disso, o Supremo também exerce uma função contramajoritária ao impedir a ditadura da maioria política, quando a maioria política está alinhada para violar direitos fundamentais”, acrescentou.

Proibição

O advogado Erik Torquato, membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, avalia que a proibição é ineficaz. Segundo ele, a criminalização gera um efeito colateral muito maior do que as próprias substâncias em circulação na sociedade. O especialista defende que a regulamentação é o caminho mais eficiente e racional. “As substâncias que mais causam danos sociais nas famílias e na sociedade, prejuízo ao atendimento público de saúde, não são criminalizadas. E uma política pública eficiente de controle de substância, que é o controle do tabagismo, passou longe da criminalização”, disse.

Membro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) e integrante da Rede Reforma, a advogada Cecilia Galicio destaca que não há no mundo precedentes de criminalização constitucional do uso de substâncias.

“Acredito e torço por uma mobilização social não só capaz de reconhecer a indignidade da criminalização, como também em ações que discutam o movimento global de lidar com a questão do uso de substâncias sob a ótica dos direitos humanos, afinal, o tráfico de drogas é internacional, e não há solução local possível sem compreendermos esse fenômeno como um todo”, disse.

A conselheira do Conad ainda ressalta que a PEC trata de um tema que o STF já sinaliza como inconstitucional. “Com a iminência da decisão do STF, a princípio, dependendo do andamento do julgamento e da votação final na Câmara, viveremos um período de vacância, no qual podemos estar tanto sob a égide de uma lei mais justa, que seria a descriminalização, para rapidamente voltarmos à regência de uma lei injusta e retrógrada como pretende o Senado”.

STF

Erik Torquato afirmou que a PEC das drogas é inconstitucional e uma afronta ao artigo 5º da Constituição, uma cláusula pétrea de proteção de direitos e garantias fundamentais, que se dedica a proteger os cidadãos contra arbítrios do Estado. Ele explica que o artigo só poderia ser alterado para expandir tais proteções e garantias, jamais para restringi-las. Isso porque a Constituição não permite a diminuição e o retrocesso de direitos.

“Essa alteração que está sendo proposta [pelo Senado] insere no artigo 5º a restrição a um direito, a uma garantia fundamental, ele viola frontalmente o direito à intimidade, à vida privada, à dignidade, previsto na Constituição. Então o Supremo poderá ser chamado a se manifestar sobre isso, e ele pode se manifestar já dentro do recurso extraordinário [sobre descriminalização de drogas]”, disse.

Em 2015, quando o julgamento começou, os ministros começaram a analisar a possibilidade de descriminalização do porte de qualquer tipo de droga para uso pessoal. No entanto, após os votos proferidos, a Corte caminha para restringir a decisão somente para a maconha. A legislação atual, além de prever penas, ainda que atenuadas, para quem for pego portando drogas para consumo próprio, não define a quantidade que difere o traficante do usuário.

Conforme os votos proferidos no STF até o momento, há maioria para fixar uma quantidade de maconha para caracterizar uso pessoal, e não tráfico de drogas, que deve ficar entre 25 e 60 gramas ou seis plantas fêmeas de Cannabis. A quantidade será definida quando o julgamento for finalizado. No caso concreto que motivou o julgamento no STF, a defesa de um condenado pede que o porte de maconha para uso próprio deixe de ser considerado crime. O acusado foi detido com três gramas de maconha.

Violência policial

Para o especialista da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, uma vez incluída a criminalização dos usuários na Constituição, haverá um aumento da repressão. “Sem sombra de dúvida, com a promulgação dessa emenda constitucional que criminaliza os usuários, aqueles que atuam na repressão ao varejo e ao consumo se sentirão ainda mais legitimados para implementar a política que já é implementada de combate às drogas”, disse Torquato.

Além disso, ele aponta que a PEC das Drogas representa a garantia do comércio de substâncias ilícitas centralizado no crime organizado. “É a constitucionalização do monopólio do tráfico de drogas na mão do crime organizado. Ou seja, é um desserviço à sociedade o que o Congresso Nacional está prestes a fazer.”

O advogado ressalta que o desdobramento mais natural da PEC é o acirramento de uma disputa de narrativa, no âmbito da criminalização de usuários e da perseguição violenta ao varejo de tais substâncias, o que tem o potencial de impactar uma população já vulnerável, residente em áreas de pouca assistência social, de baixo desenvolvimento humano, como as periferias das grandes cidades e o interior dos estados.

“[Locais] onde o Poder Público se mostra muito deficiente na garantia dos direitos e garantias fundamentais – saneamento básico, educação, segurança – e onde os grupos armados têm uma presença mais efetiva, que é também onde o combate violento ao comércio dessas substâncias ocorre. Certamente, os jovens pretos periféricos que moram nessas zonas de baixo desenvolvimento humano, nas periferias, nas favelas, eles se tornarão ainda mais vulneráveis a uma política de repressão que é violenta, estigmatizante e criminalizante”, alerta.

Cristiano Maronna enfatiza que o voto do ministro do STF Alexandre Moraes, neste caso da descriminalização, escancarou o modo disfuncional como a lei de drogas é aplicada atualmente, já que a mesma quantidade para um jovem negro periférico caracteriza tráfico e para pessoas brancas em bairros nobres caracteriza uso pessoal.

“O ministro faz um verdadeiro libelo contra o sistema de justiça – polícia, Ministério Público e judiciário – ao reconhecer que, depois que a lei de drogas entrou em vigor, usuários negros, pobres, periféricos e com baixa instrução passaram a ser tratados como traficantes em comparação com pessoas brancas flagradas com a mesma quantidade de drogas. Para o Senado Federal, essa situação não é um problema, isso não sensibilizou os senadores”, disse.

Agência Brasil

Saúde

Em relação a pessoas que fazem uso abusivo de drogas, Maronna aponta que a PEC fala em tratamento e avalia que isso se configura “um risco de massificação das comunidades terapêuticas, de implementação de medidas higienistas, como a internação forçada, que tem um índice baixíssimo de eficácia”.

Erik Torquato reforça que o tratamento de pessoas que fazem uso abusivo de substâncias jamais poderia estar previsto numa norma de cunho criminal. “Tratar pessoas que são doentes dentro de uma norma penal é um contrassenso, é criminalizar a condição de saúde da pessoa. É dizer que uma pessoa está doente porque ela é criminosa, ou é criminosa por estar doente”, disse.

Segundo ele, a criminalização dessas pessoas, promove, na verdade, seu afastamento dos equipamentos de saúde, cuidado e atenção. “Nós estamos afastando essas pessoas de uma atenção humanizada, de uma política pública humanizada. É inadmissível tratar aquilo que é assunto de saúde pública numa norma criminalizante.”

Diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Marina Dias aponta que a lei de drogas aprovada em 2006, embora tenha problemas, muda o olhar em relação ao usuário, passando a ter uma perspectiva mais humanista e integrativa, além de despenalizar.

“Quando se traz a criminalização de novo, novamente afasta esse cidadão da política de saúde pública. Tem aí um recado de que aquilo que ele faz é crime. E joga-se para debaixo do tapete um problema que é super importante de ser enfrentado a partir de uma perspectiva de saúde, a partir de uma perspectiva de educação, de conscientização”, avalia.

Ela reafirma a inconstitucionalidade da proposta de emenda à Constituição sobre as drogas, já que restringe as garantias fundamentais e individuais.

“São vários passos atrás, é um retrocesso tremendo e não existe nenhum precedente em outro país democrático de levar para a Constituição Federal a criminalização de qualquer droga”, finaliza.

Para ministros, PEC não afeta julgamento do Supremo sobre drogas

Ministros do Supremo afirmaram que o julgamento do recurso extraordinário que trata da descriminalização do porte de maconha pode seguir normalmente mesmo com a aprovação da proposta de emenda à Constituição que trata do tema.

Na avaliação de ministros, o julgamento do STF pode seguir mesmo com eventual aprovação da PEC, já que o texto em tramitação no Congresso não altera o trecho da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) em discussão na Corte.

A opinião é que o caso não fica prejudicado, já que a PEC não estabelece quantidade para diferenciar tráfico e porte de maconha, nem traz grandes alterações em relação ao que já está em vigor na Lei de Drogas, mas só incluiria na Constituição parte do que é previsto na norma de 2006.

A Lei de Drogas, assim como a PEC, prevê uma distinção entre traficante e usuário, mas não estabelece critérios objetivos para fazer a diferenciação, cabendo ao juiz decidir se uma determinada quantidade de droga configura uso pessoal ou tráfico.

Tanto pelo texto em vigor quanto pela PEC, é crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para consumo pessoal. A prática, no entanto, não pode ser punida com prisão, e sim com penas alternativas.

Na lei de 2006, o tráfico leva à pena de até 15 anos de prisão. A PEC aprovada no Senado também não altera nada nesse ponto.

No caso julgado pelo Supremo (RE 635.659), os ministros discutem um critério objetivo para diferenciar usuários e traficantes. A análise se restringe à maconha.

Até o momento o posicionamento com maior quantidade de votos entende que devem ser presumidos como usuários aqueles que guardam, adquirem, têm em depósito, transportam ou trazem consigo até 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas.

O julgamento foi paralisado em 6 de março por pedido de vista feito pelo ministro Dias Toffoli.


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