04/05/2024 - Edição 540

Especial

CIVILIZAÇÃO X BARBÁRIE

Extrema direita e fundamentalistas religiosos comandam guerra no Congresso contra pautas civilizatórias no STF

Publicado em 29/09/2023 1:55 - Victoria Bechara e Valmar Hupsel Filho (Veja), Plinio Teodoro (Fórum), Camila Bomfim (G1), Ricardo Noblat (Metrópoles), Caio Luiz (Congresso em Foco), Josias de Souza e Leonardo Sakamoto (UOL), Sabrina Craide (Abr) – Edição Semana On

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Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) destacou-se por desempenhar o papel de uma espécie de farol civilizatório, assumindo corajosamente a responsabilidade de legislar sobre temas que exigem uma urgente adequação aos novos tempos, a exemplo da histórica decisão favorável à união homoafetiva. Nas últimas semanas, a Corte avançou mais algumas casas nessa missão iluminista. Sob o comando de Rosa Weber, colocou em pauta temas relevantes, mas espinhosos, como a liberação do porte de maconha para uso pessoal e a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Em seu discurso de despedida, na última quarta, 27, ela afirmou a necessidade de um “olhar voltado para um país mais justo, igualitário, fraterno, solidário e sem preconceitos”. Quem assumiu o posto no dia seguinte foi o ministro Luís Roberto Barroso. Conhecido por suas ideias progressistas, ele indica que o STF continuará atuando na mesma direção.

Embora esteja na defesa de avanços importantes, o movimento do Supremo sempre gerou incômodo em alguns setores conservadores da sociedade e o alarido aumentou proporcionalmente nos últimos tempos diante da tentativa de se colocar em debate temas como drogas e aborto. O desconforto desencadeou uma forte reação, liderada por uma parte considerável do Congresso, que tem um perfil conservador, mas também reacionário e fundamentalista religioso. No contra-ataque, os políticos lançaram mão de uma grande ofensiva destinada a tentar barrar essas conquistas. Um dos alvos principais é justamente o STF. Embora um clima de desconforto já viesse se manifestando há algum tempo entre o Legislativo e o Supremo, acusado pelos parlamentares de usurpar prerrogativas do Congresso, a agenda progressista do Judiciário serviu de álibi para o acirramento da tensão.

Em um movimento que dá uma ideia do tom da batalha que será travada daqui em diante, na terça (26) um grupo de deputados e senadores de direita anunciou que iria iniciar uma estratégia de obstrução das votações na Câmara e no Senado como forma de protesto. Na ocasião, a deputada Priscila Costa (PL-CE), que está grávida, exibiu a miniatura de um feto como um símbolo da campanha. Só na última semana, o grupo conseguiu as assinaturas necessárias para propor um plebiscito sobre o aborto e para dar caráter de urgência ao projeto de lei que cria o Estatuto do Nascituro. Também apresentou uma PEC para alterar o artigo 5º da Constituição de modo a incluir o termo “desde a concepção” no trecho que garante a inviolabilidade do direito à vida.

Priscila Costa: a deputada do PL exibe miniatura de feto em ato para anunciar obstrução no Congresso (TV Senado/Reprodução)

A luta contra o aborto figura como a principal bandeira da reação conservadora, mas não é a única frente de batalha. Alguns alvos, aliás, são como os moinhos de vento de Dom Quixote, ou seja, só existem na imaginação dos setores mais retrógrados da sociedade. Na última semana, por exemplo, a Advocacia-Geral da União (AGU) foi acionada para desmentir bolsonaristas que divulgaram que o Planalto iria obrigar escolas a instituir banheiros unissex. Fora desse campo mais delirante, o grupo unido no Congresso se esforça para aprovar um despropositado projeto de lei que acaba com a equiparação da união homoafetiva ao casamento entre homem e mulher, algo que é reconhecido pelo Supremo desde 2011. Também há uma mobilização para anular os efeitos de um julgamento no STF sobre a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal — até agora são cinco votos a favor e dois contrários à flexibilização. “É uma estratégia de sobrevivência política de um campo que depende dessa mobilização para se autopromover”, afirma o deputado e pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), vice-líder do governo.

A mobilização embute uma estratégia política inconfessável: tirar a direita das cordas. Um dos objetivos é mobilizar a base em meio ao derretimento da imagem de sua principal referência, o ex-presidente Jair Bolsonaro, cercado por investigações que vão da venda de joias oficiais a uma conspiração para golpe de Estado — o que arrastou para a lama as Forças Arma­das, outra referência da direita. O frenesi em torno da pauta de costumes ajuda a direita a se descolar do seu líder e a mostrar que tem representatividade para ir em frente, independentemente do futuro político do ex-capitão.

Damares: ela é uma das vozes mais inflamadas contra as mudanças (Edilson Rodrigues/Agência Senado)

A movimentação também permite emparedar o governo Lula ao difundir, com relativo sucesso, que as pautas progressistas têm o incentivo ou, no mínimo, a sua concordância. “A direita está reativando esses temas porque sabe que são eles que dividem os dois lados e jogam o governo em um campo de difícil disputa”, afirma Felipe Nunes, cientista político e diretor da Quaest. O entorno de Lula monitora tudo com preocupação. Qualquer confusão no Congresso teria o potencial de atrapalhar o governo, que precisa aprovar pautas importantes, como a reforma tributária e a MP do programa Desenrola Brasil, que caduca no dia 3. Também estão previstas para este semestre as votações da Lei de Diretrizes Orçamentárias e do Orçamento para 2024.

O sinal amarelo já havia acendido para Lula há algum tempo. Ele veio com a aprovação em julho da resolução 715, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que propõe a descriminalização do aborto e da maconha. A gritaria mais intensa partiu dos evangélicos, que formam a maior frente do Congresso, com 210 deputados e 26 senadores, e que sempre foram próximos a Bolsonaro. Parlamentares influentes do grupo, como o deputado Marco Feliciano e o senador Magno Malta, ambos do PL, fazem campanha pesada para grudar em Lula as pautas que afastam os religiosos. Embora o governo tenha apenas seis cadeiras no CNS, de um total de 48 assentos, tentou-se emplacar a narrativa de que a resolução tinha o dedo do Palácio do Planalto. “Mesmo quando o governo não propõe diretamente essas mudanças, ele pode ser responsabilizado por não se posicionar claramente ou por não tomar medidas para impedir”, diz Malta.

Na firme estratégia de evitar divisões, o governo tenta construir pontes com esse segmento por meio de ministros como Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Geraldo Alckmin (Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços) e Jorge Messias (AGU). Messias, aliás, levou líderes desse grupo a um encontro com a ministra Nísia Trindade (Saúde), no qual ela explicou que a resolução não é iniciativa do Executivo, não tem força de lei nem obriga a sua implantação. Padilha foi direto ao ser questionado em entrevista sobre aborto e casamento gay. “Não tem, de maneira nenhuma, iniciativa por parte do governo para mexer na legislação”, disse.

Marco Feliciano: o deputado e pastor atiça os evangélicos contra Lula (Edilson Rodrigues/Agência Senado)

O campo de batalha para o qual o governo foi levado não é simples. Por um lado, precisa lidar com as pressões de grupos democratas, ligados aos direitos humanos e à esquerda, que alimentam a expectativa de que a volta de Lula ao poder é a oportunidade de levar adiante temas mais liberais nos costumes. Por outro, precisa administrar a sua frágil base no Congresso, em grande parte formada por parlamentares conservadores.

Para o cientista político Vinicius do Valle, do Observatório Evangélico, há um sentimento na direita de que a eleição de Lula criou um clima político para se avançar em pautas desse tipo, ainda que não seja por iniciativa do governo, e que há um “rolo compressor” passando nesse sentido. “Isso contrasta com a posição do governo, que não tem investido em pautas que batem de frente com ideais evangélicos”, avalia.

De fato, o recrudescimento da discussão em torno desses temas ocorre em cima de muito proselitismo religioso e, não raro, de demagogia política. O senador Sergio Moro (União-PR), por exemplo, que foi eleito com bandeiras relacionadas à corrupção, mostrou um súbito interesse pela pauta de costumes ao postar que o “governo Lula impõe banheiro unissex para todas as escolas públicas do país” — o que não é verdade. Outro ex-ministro, o deputado Osmar Terra (MDB-RS), que se notabilizou por espalhar teses negacionistas sobre a Covid-19, decidiu fazer o mesmo em relação à maconha, ao divulgar, entre outras sandices, uma fake news que associa a flexibilização do uso de droga ao fato de uma criança ter morrido em uma creche de Nova York após inalar fentanil do tapete que era utilizado para dormir.

Um país democraticamente maduro como o Brasil precisa ter coragem para enfrentar debates difíceis. Quase um terço da população carcerária está presa por crimes previstos na Lei de Drogas, sendo que 59% dos réus portavam até 150 gramas. Em relação à interrupção da gravidez, a Pesquisa Nacional do Aborto, de 2021, apontou que 10% das mulheres já abortaram e que 40% delas fizeram isso com o uso de medicamentos, assumindo um risco enorme. No Brasil, o aborto só é permitido nos casos de estupro, risco à vida da mãe e anencefalia — exceções que o movimento em andamento defende abolir. A despeito de o Brasil ser uma nação conservadora, situação que se consolidou com a expansão evangélica, é preciso que o princípio de separação entre igreja e Estado balize as reflexões sobre esse e outros temas — e não o fundamentalismo ideológico ou religioso, que só serve para criar cortina de fumaça e obscurecer o debate.

Michelle Bolsonaro: esforço para emplacar aliados nos conselhos tutelares (Zack Stencil/PL/.)

Guerra

Após quatro anos de ataques vindos do poder Executivo sob o comando de Bolsonaro, a trincheira da guerra aberta da extrema-direita contra o Supremo mudou e agora os ataques estão sendo coordenados por aliados do ex-presidente que dominam pautas conservadores e retrógradas no Congresso Nacional.

A guerra anunciada pelo ex-ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho (PL-RN) na terça-feira (26), quando o senador anunciou que parlamentares oposicionistas vão obstruir as votações na casa em protesto contra decisões recentes do Supremo foi levado a cabo na quarta-feira (27) com a aprovação do PL do Marco Temporal e encontrou eco na Câmara dos Deputados.

Além da descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação, os parlamentares citam a possível descriminalização do uso recreativo da maconha, a inconstitucionalidade do marco temporal e contribuição sindical como motivadores para a obstrução.

“Vamos nos posicionar obstruindo a pauta de votação no âmbito do Senado, como uma demonstração da nossa insatisfação pela forma como a relação entre os poderes vem sendo abalada. Nós afirmamos que há uma interferência por parte do Judiciário em ações que são de alvitre, de competência do Legislativo e esses quatro temas importantes exemplificam isso”, disse Marinho.

Na quarta, sob a relatoria de Marcos Rogério (PL-AP), um dos soldados de Bolsonaro na antiga CPI da Covid, o PL 2903/2023, que prevê a adoção do marco temporal como parâmetro para a demarcação de terras indígenas no Brasil, foi colocada em votação à toque de caixa, passou pela Comissão de Constituição e Justiça e foi aprovada em regime de urgência no plenário, com votos de senadores da base do governo, como Renan Calheiros (MDB-AL) e Weverton (PDT-MA).

Investigado por conspiração golpista junto com Bolsonaro, o senador Marcos do Val (Podemos-ES) foi um dos muitos parlamentares que usou a votação do Marco Temporal para disparar contra o STF. “Quem legisla, quem discute sobre qualquer projeto, sobre qualquer lei é aqui, o Congresso. E a população brasileira, independentemente de ideologia ou posicionamento político, vem se preocupando com questões sensíveis, como a preservação da Constituição, da independência dos Poderes e do papel desta Casa diante das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, decisões que impactam a vida em sociedade, a livre iniciativa e as funções deste Parlamento”, vociferou.

Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) minimizou o levante da extrema-direita contra o STF e classificou como “natural” a votação do PL uma semana após a suprema corte definir pela inconstitucionalidade do Marco Temporal por 9 votos a 2 – os dois contrários dos bolsonaristas Kássio Nunes Marques e André Mendonça.

Ecos na Câmara

O levante no Senado encontrou, horas depois, eco na Câmara dos Deputados. Liderados pelo PL, de Bolsonaro, e pelo partido Novo, um grupo de deputados, que lideram 22 bancadas, fizeram um ato de repúdio contra a atuação do Supremo Tribunal Federal e, a exemplo dos colegas, anunciaram a obstrução de votações na maior casa legislativa.

“A obstrução pode ser feita por partido político. O PL está em obstrução, o Novo também. Os demais partidos estão no governo, mas esse movimento é suprapartidário. E vai ter que acontecer uma solução política”, anunciou o líder do PL, Altineu Cortês (PL-RJ).

A guerra dos bolsonaristas contra o judiciário ganhou força e a adesão dos ruralistas com a decisão sobre a inconstitucionalidade do marco temporal.

Coordenador da bancada ruralista, o deputado Pedro Lupion (PP-PR) fez eco ao discurso de Marinho. “Não aceitamos interferência no Poder Legislativo. Ontem não tivemos deliberação, hoje não temos e amanhã não teremos. Isso é uma obstrução. Estamos dando um basta a esse completo e indesejável desmonte do Legislativo”, disse durante o levante na Câmara.

O movimento contra o STF na casa ainda tem como líderes o deputado Alberto Fraga (PL-DF), amigo de longa data de Bolsonaro; e Eros Biondini, que comanda a bancada Católica e um dos mais reacionários na chamada “pauta de costumes”.

“A sociedade brasileira tem acompanhado indignada e estarrecida as movimentações na direção de aprovar o aborto e de aprovar as drogas”, vociferou Biondini.

O levante na Câmara ganhou a adesão de 22 frentes parlamentares, que controlam boa parte das pautas polêmicas da Câmara, entre elas as bancadas BBB: Boi, Bala e Bíblia.

Para o líder da oposição, senador Rogério Marinho (PL-RN), as recentes reações do legislativo são muito mais “uma reafirmação de prerrogativas do que confronto com quem quer que seja”.

De acordo com o líder, a aposentadoria da ministra Rosa Weber, então presidente do STF, acelerou um processo de “invasão de competências” que tem incomodado parlamentares a ponto de provocar uma série de respostas por meio do avanço de projetos. Rosa Weber, que foi substituída pelo ministro Roberto Barroso, empossado na quinta-feira (28), trouxe temas à tona que deveriam ser decididos pelo legislativo, conforme a visão do senador.

Marinho afasta a hipótese de que o Congresso possa sofrer acusações de omissão em relação a temas caros ao Brasil, pois muitos deles já possuíam a legislação devida. Sendo assim, delegar temas que vão organizar a sociedade civil a 11 ministros não seria adequado porque o legislativo existe para representar a população com princípios e leis decididos no Congresso. “A chegada de Barroso pode, inclusive, ser o momento de pacificação do país. É o que esperamos, que cada Poder volte a exercer sua função sem esse choque que não interessa a ninguém.”

Toma lá dá cá

Ao longo das últimas semanas se estabeleceu um jogo de toma lá dá cá entre o Senado e o STF. Praticamente todas as decisões do Supremo que versam sobre temas polêmicos encontram respostas na Casa Revisora.

Contra a maioria formada do STF a favor de uma quantia fixa para diferenciar usuários de maconha de traficantes (24), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no dia 14 que criminaliza o posse ou porte de qualquer droga.

Contra o voto de Rosa Weber para descriminalizar o aborto na sexta (22), Marinho colheu 45 assinaturas de senadores para abrir o processo de realização de um plebiscito nacional para tratar do tema, que agora corre na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça (CCJ) e aguarda plano de trabalho.

Na quarta (27), na contramão da rejeição do STF ao marco temporal, o Senado aprovou um PL sobre o marco temporal de terras indígenas que veio da Câmara, onde tramitou por 17 anos. Segundo o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), o PL será vetado pelo Executivo por se tratar “de um flagrante de inconstitucionalidade que votou um estatuto do índio bem atrasado”.

No entanto, Marinho afirma que o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), deve negociar o tema entre os senadores para que haja um acordo e possíveis mudanças ao texto até um pronunciamento final da presidência da República. “Se o governo deve vetar a essencialidade ou a integralidade do projeto, você não tenha dúvida que o sentimento da casa é derrubar o veto, caso venham assim do governo, mas não será assim, creio eu.”

Marinho acredita que os próximos meses serão “mais tranquilos” porque a PEC antidrogas do Pacheco vai tramitar, assim como o decreto de plebiscito, bem como um projeto que trata da limitação do mandato dos ministros “que estabelece uma relação de maior equilíbrio”. Trata-se da PEC do Voto Monocrático, como o senador definiu. Em setembro de 2019, por 38 votos favoráveis a 15 contrários, o Plenário do Senado rejeitou uma PEC com o mesmo propósito, que impõe limites a pedidos de vista e decisões cautelares na esfera dos tribunais.

Barroso, no entanto, é conhecido por posturas mais progressistas em relação a assuntos críticos, como o aborto e o porte de drogas.

Em entrevista ao Congresso em Foco, o senador Randolfe Rodrigues procurou classificar as respostas do Senado como “iniciativas do parlamento” em vez de uma crise entre STF e Congresso. Conforme a liderança, não há crise quando o Supremo cumpre o papel de controlar aquilo que fere a Constituição e, apesar dos Poderes serem independentes e harmônicos, a independência entre eles existe por meio de “choques”.

Para Randolfe, uma análise histórica das últimas décadas de democracia mostra que é particular de qualquer sistema usar contrapesos e que um poder tentar frear o avanço do outro é normal. O senador afirma que houve de fato uma crise, mas nos últimos quatro anos e no 8 de janeiro.

“O que não pode é ter um chefe de poder pedindo fechamento de outro [poder], ou incentivo à pessoas invadirem e depredarem os Três Poderes. Pode ter divergência, diferença de posição. Isso existe desde que instauramos a democracia nacional. Às vezes, o Congresso acha que é excesso do STF e vice-versa. Crise existia quando Bolsonaro ia para a frente do quartel e dizia que ministros do STF tinham que se curvar a ele. Isso era ofensa aos poderes.

STF ‘iluminista’ pode julgar à revelia do Congresso

Dono de uma personalidade jurídica progressista, Luís Roberto Barroso defende teses e valores que provocam ojeriza na oligarquia política. Alheio à acusação de que o Judiciário tornou-se ativista, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal avalia que a Corte pode, sim, exercer o que chama de papel “iluminista”, “independentemente da vontade do Congresso e mesmo contra a maioria popular, para proteger minorias e avançar a história.”

Como exemplo do iluminismo judicial, Barroso menciona “o julgamento que equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, abrindo caminho para o casamento entre pessoas do mesmo sexo.” A essência do pensamento do ministro foi borrifada nas 271 páginas de “Sem Data Venia”, livro que lançou em 2020, pela editora História Real. Tudo o que se atribuirá a Barroso abaixo, entre aspas, foi extraído de sua obra.

Além das atribuições inspiradas no Iluminismo, Barroso atribui a cortes constitucionais como o Supremo outros dois papeis. Ambos sujeitam os magistrados a incompreensões políticas:

1) “O [papel] contramajoritário, que é o apelido que se dá no Direito constitucional ao fato de que juízes não eleitos podem invalidar decisões do Congresso ou do presidente. Foi o que ocorreu, segundo Barroso, quando “o Supremo considerou inconstitucionais os dispositivos legais que impediam a publicação de biografias não autorizadas.”

2) “O representativo, que é o papel que as Cortes exercem quando atendem a demandas sociais que tinham amparo na Constituição, mas não foram satisfeitas a tempo e à hora pelo Congresso Nacional.” Por exemplo: “A decisão que derrubou, por inconstitucional, o modelo mafioso de financiamento eleitoral que vigorava no Brasil.”

Barroso anota que, “como regra geral, decisões políticas devem ser tomadas por quem tem voto. Nessa linha, se o Congresso tiver atuado, editando uma lei, a postura do Judiciário deve ser de contenção, de deferência para com o Parlamento”.

O ministro realça, entretanto, que, “nas situações em que o Congresso deveria ter atuado, mas não quis ou não conseguiu, por falta de consenso mínimo, o quadro se modifica.” Sobretudo se estiver em jogo “um direito fundamental que dependa, para ser exercido em plenitude, de uma providência legislativa” sonegada pelo Congresso.

Refletindo sobre o princípio da separação de Poderes, Barroso avalia que, num “modelo idealizado”, os “juízes não criam o direito, mas se limitam a aplicar a Constituição e as leis, que são obras de agentes políticos eleitos para esse fim.” Mas o ministro pondera: “Para muitas situações da vida, inexiste uma clara e prévia decisão política do constituinte ou do legislador definindo a solução a ser adotada.”

Quando não há uma fórmula legislativa para a resolução de determinado problema, escreve Barroso, “é o próprio juiz que tem que elaborá-la, o que o torna coparticipante do processo de criação do direito. Nesse caso, a linha divisória entre política e direito deixa de ser nítida, porque essa função criativa do juiz sempre terá uma natureza política.”

Para Barroso, julgamentos que envolvem “direitos fundamentais —como liberdade de expressão, liberdade religiosa, proteção de minorias—, ou defesa da democracia —impedir o prolongamento de um modelo de financiamento eleitoral que gerou sucessivos escândalos de corrupção— podem legitimar um comportamento mais ativista” do Supremo.

Barroso lamenta algo que foi festejado por oligarcas da política e do empresariado: a decisão do Supremo que reverteu a regra que permitia a prisão de corruptos condenados em segunda instância. Sem essa regra, avalia o ministro, processos criminais se eternizam até a prescrição, “dando salvo-conduto aos ladrões de casaca.”

Barroso defende a descriminalização do aborto: “Tratar a interrupção da gestação como crime, nas primeiras semanas de gravidez, afeta, sobretudo, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares.” É defensor do casamento homoafetivo: “O que vale na vida são os nossos afetos. Impedir uma pessoa de colocar o seu amor e a sua sexualidade onde mora o seu desejo é privá-la de uma dimensão essencial de sua existência.”

O ministro defende a liberação das drogas: “Há décadas se pratica no Brasil o mesmo tipo de política de enfrentamento contra as drogas. Polícia, armamentos, mortes e muitas prisões. Não é preciso ser expert no assunto para reconhecer o óbvio: não tem dado certo.”

Novo dono da pauta do Supremo, o sucessor de Rosa Weber provoca reações que talvez o forcem a retardar a conclusão de julgamentos que gostaria de apressar. Entre eles o que trata da descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez e o que impede a prisão de consumidores de maconha.

Barroso assume o Supremo sob uma atmosfera de curto-circuito

Barroso assume a presidência do Supremo contra um pano de fundo marcado pela desavença com o Congresso. Deve-se o acirramento ao destemor da ministra Rosa Weber. Antes de pendurar a toga, ela levou à vitrine fios desemcapados que os antecessores escondiam.

Majoritário no Congresso, o conservadorismo reagiu contra a derrubada do marco temporal para a demarcação de terras indígenas e a perspectiva de descriminalização do aborto e do consumo de maconha. Embora Lula se finja de morto, a eletrificação do ambiente começa a travar a agenda legislativa do governo.

Para restaurar o marco temporal que o Supremo julgou inconstitucional, a bancada do Boi se associou à turma da Bala e da Bíblia, dispondo-se despejar votos numa proposta do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, que agrava a proibição do porte de drogas. Ou em projetos que endureçam a legislação antiaborto.

Condestável do centrão, o presidente da Câmara, Arthur Lira, surfa a onda de insatisfação conservadora para impor a Lula a ameaça de bloqueio de propostas que aumentam a receita da Fazenda. Algo vital para o êxito do projeto econômico gerido pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda). Lira exige que Lula cumpra o “acordo” que prevê que a Caixa Econômica lhe será entregue de “porteira fechada”.

Ao soltar os demônios que se escondiam nos fundões de supremas gavetas, Rosa Weber trouxe à tona divergências que haviam sido engolfadas pelo tsunami do 8 de janeiro. Fez isso num instante em que ganharam o noticiário as primeiras condenações dos executores do quebra-quebra e a delação de Mauro Cid, que encosta a tentativa de golpe em fardados da cúpula militar.

Nessa atmosfera de curto-circuito, a democracia brasileira é submetida a um teste de funcionalidade por um Supremo de viés majoritariamente progressista, um Congresso de perfil conservador e um Planalto chefiado por presidente de esquerda. Brasília vive o momento mais tenso desde o 8 de janeiro. E os democratas já não podem invocar as crises fabricadas por Bolsonaro como álibi para suas debilidades.

Pacheco ‘fala para dentro’

Parlamentares e ministros do Supremo ouvidos pela jornalista Camila Bomfim, da Globonews, avaliam que a postura do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco é um ato político e voltado “para dentro” – ou seja, para as relações entre os senadores.

Reservadamente, a avaliação é de que Pacheco quis contemplar integrantes da bancada ruralista e parlamentares bolsonaristas na questão do Marco Temporal. Mais, até, do que estabelecer um clima de guerra com o STF – apesar de o tom de reação e insatisfação ter ficado claro.

Primeiro, porque a proposta tem tudo para ser judicializada caso seja sancionada ou promulgada, e isso poderia suspender a entrada em vigor das regras. Ou seja: a decisão do STF seguiria valendo.

Além disso, ao atender ruralistas e bolsonaristas, a movimentação de Pacheco passa um recado de defesa institucional. Há o entendimento que o Senado pode fazer outras mudanças futuras, que não estão no projeto aprovado ontem, porque há número suficiente para isso.

“A leitura dos movimentos do Pacheco tem um elemento político. Esse discurso é menos para nós e mais para os senadores”, disse um ministro do STF à jornalista.

A avaliação é de que o STF tomou uma decisão ponderada ao barrar o Marco Temporal. Já Pacheco estaria agindo “politicamente” – no sentido mais amplo da palavra, com gestos internos – e também expressando insatisfações passadas.

Senadores dizem que a Câmara, representada pelo presidente Arthur Lira (PP-AL), tem perfil de pressão e tenta tirar o protagonismo do Senado ao mandar propostas com prazo curto de análise em temas mais gerais. E que, ao botar o marco temporal em votação, Pacheco quis retomar o protagonismo dos senadores.

Parlamentares avaliam que essa nova postura de Pacheco começou já no debate sobre as drogas, no início do mês. O presidente do Senado criticou o julgamento do STF sobre a descriminalização do porte de maconha e chegou a apresentar um projeto em sentido contrário.

Rodrigo Pacheco argumentou que, a depender da decisão final da Corte, o “tráfico de pequenas porções de droga” poderá deixar de ser crime. Pacheco também vê “invasão de competência” do Judiciário e avalia que é “papel do Congresso” discutir a descriminalização.

Inabilidade de Pacheco em mobilizar base preocupa governo

O presidente Lula está decidido que vai vetar o Marco Temporal. O placar de 43×21 surpreendeu o Planalto, que esperava uma disputa mais apertada. Rodrigo Pacheco quis deixar claro que a pressa na votação não era “revanche” contra o STF. Mas na visão do governo, houve inabilidade do presidente do Senado em articular a derrubada do texto. Inabilidade ou falta de ânsia, analisou uma pessoa do Palácio do Planalto.

O Senado era, até então, a parte do Congresso em que Lula confiava que poderia passar –ou deixar de passar– qualquer matéria de seu desejo. Agora, as atenções se voltam à casa, em meio a discussão da minirreforma eleitoral, que também interessa ao PT.

Ao contrário de Pacheco, Arthur Lira mostra uma consonância maior com Lula atualmente. Em Nova Iorque, durante a agenda da ONU, houve quem dissesse que o presidente da Câmara parecia um ministro. Lira, inclusive, rachou a oposição ao barrar a obstrução de pauta na Câmara, ontem (28).

Cheiro de golpe

Com a assinatura de 175 deputados federais, foi protocolada na quinta-feira (28), na Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 50/2023, chamada de PEC do equilíbrio entre os poderes. A proposta, apresentada pelo deputado federal Domingos Sávio (PL-MG), altera o artigo 49 da Constituição Federal para permitir que o Congresso Nacional possa derrubar, por maioria qualificada, decisões do STF que extrapolem os limites constitucionais.

O parlamentar diz que a ideia da PEC é garantir a independência entre os poderes para que haja equilíbrio. Segundo ele, o STF tem tomado com frequência “atitudes de usurpar o poder do legislativo e extrapolar os seus limites constitucionais”.

“Todo dia vem uma decisão do STF contrariando o que a lei diz. Esse ativismo político do STF está acabando com a democracia brasileira”, diz Sávio, citando, por exemplo, a decisão do Supremo que derrubou a tese do marco temporal das terras indígenas, além dos julgamentos sobre a descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação e sobre o porte de drogas para consumo próprio.

“O Brasil já tem uma lei que diz em que situação pode haver o aborto, mas o STF quer inovar, quer ir além, quer ele próprio legislar. Também quer legislar liberando a droga no Brasil, mas já tem lei dizendo que é crime”, diz o deputado. “O direito de propriedade está sendo rasgado pelo STF”, complementa, em referência ao marco temporal.

A PEC deve ser discutida e votada em dois turnos em uma das casas do Congresso. Para ser aprovada, deve ter três quintos dos votos dos deputados (308) e dos senadores (49). Não há previsão de quando a proposta poderá chegar ao plenário.

Wilson Dias – Abr

A proposta soa como uma tentativa de golpe, afirmou nesta sexta-feira (29) o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, em entrevista à CartaCapital no YouTube.

Para Kakay, “cheira a golpe” a ideia de concentrar ainda mais poderes, incluindo o de rever decisões do Supremo, nas mãos do Congresso, em especial “no momento em que estamos tentando sair de um período dramático de um fascismo estabelecido por quatro anos”.

A PEC de Sávio não é um ato isolado de enfrentamento aberto do Congresso contra o Supremo. No dia em que a Corte finalizou o julgamento que declarou inconstitucional o Marco Temporal para demarcar terras indígenas, o Senado aprovou um projeto de lei a instituir a tese ruralista.

Na avaliação de Kakay, o Congresso demonstrou “omissão em enfrentar grandes temas” e, por isso, partidos e entidades decidem acionar o STF. O ideal, de acordo com o criminalista, seria que o Parlamento de fato legislasse sobre esses assuntos.

“Sendo provocado, o STF tem a missão constitucional de se manifestar”, diz Kakay, favorável à descriminalização da maconha e do aborto. “No caso das drogas e do aborto, o mais improtante é que a sociedade tivesse maturidade para discutir isso no Congresso.”

Legalização do aborto volta ao debate público com julgamento no STF

A descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez, que começou a ser julgada virtualmente pelo Supremo na madrugada do dia 22 de setembro, é tema polêmico tanto entre grupos mais conservadores que se opõem à legalização, como os evangélicos, quanto entre movimentos de esquerda e mais progressistas.

A x-presidente do STF, ministra Rosa Weber, é relatora do processo e registrou, na sexta-feira (22), o voto a favor de que a prática não seja considerada crime. O ministro Luís Roberto Barroso, que assumiu o STF ontem (28) pediu que o julgamento fosse suspenso e levado ao plenário físico. A nova data ainda não foi marcada.

Na América Latina, diversos países já legalizaram o procedimento. Em 2012, enquanto o Brasil ainda decidia se o aborto de anencéfalos era crime ou não – o STF decidiu que não -, o Uruguai já legalizava a prática, independentemente da situação da gestante e da concepção. Em 2020, 2021 e 2022, a Argentina, o México e a Colômbia, respectivamente, se juntaram ao Uruguai.

A descriminalização é uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que defende que seja um direito de todas, sem limite de idade gestacional, e que se opte preferencialmente pelo aborto medicamentoso, com misoprostol e mifepristona, proibido no Brasil.

Na região metropolitana de São Paulo, a pauta ganhou destaque neste mês. A Câmara Municipal de Santo André promulgou a Lei nº 10.702, proibindo que qualquer órgão da administração local, direta ou indireta ou autarquia “incentive ou promova a prática do aborto”. O Artigo 128 do Decreto-lei nº 2.848 diz que não se pune o médico que executa o procedimento para salvar a gestante e em caso de estupro da mulher. A Lei nº 10.702 foi uma proposta do vereador Márcio Colombo (PSDB). No Brasil, o aborto é considerado legal em casos de gestação decorrente de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal.

Julgamento moral 

Para a médica ginecologista e obstetra Helena Paro, a postura de profissionais mais conservadores quanto ao direito ao aborto em qualquer circunstância é um elemento que gera negligência em consultórios e hospitais, estendendo-se até mesmo às pacientes que estão respaldadas pela lei. A médica trabalha há cerca de seis anos com aborto legal e afirma que a atividade devolveu a ela “o sentido da vida”, pois se sente bem ao ajudar jovens. Helena citou uma paciente atendida há poucos dias que engravidou após ser vítima de estupro. Ela conta que, se a jovem mantivesse a gestação que não queria e nem programou para ter, reduziria a quase zero as chances de realizar o sonho de cursar arquitetura.

“O sofrimento maior é o do estigma e o de morrer na clandestinidade”, resume a profissional, que é professora de Medicina e integrante do Nuavidas, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais.

Helena afirma que grupos contrários à descriminalização pressionam quem é a favor e, no seu caso, apresentam questionamentos a órgãos públicos. “A gente tem um Estado laico, mas também uma cruz nas paredes dos salões das sedes dos Poderes”, afirma, fazendo referência ao símbolo colocado nesses locais e à interferência do cristianismo na tomada de decisões e na proposição de leis. A ginecologista argumenta que “o aborto que mata é o clandestino”.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto 2021, estima-se que 5 milhões de mulheres tenham feito aborto em todo o país. A proporção é de que uma em cada sete já fez o procedimento até os 40 anos de idade, sendo que 81% delas têm religião, o que sugere que, mesmo com suas crenças, consideram ser mais urgente resolver a gravidez por não desejarem dar à luz a uma criança que não querem naquele momento. O estudo indica que muitas das mulheres têm religião de linha conservadora e, mesmo assim, fazem o aborto, ainda que não compartilhem a decisão com outras pessoas. Para movimentos a favor da legalização, a atitude revela hipocrisia.

Perigos e barreiras

Os movimentos feminista e mulherista chamam a atenção para o fato de que o aborto clandestino coloca as mulheres em situação de maior vulnerabilidade e, por essa razão, defendem que se trata de uma questão de saúde pública. Essa associação pode ser observada por meio de outro dado da pesquisa nacional: 43% delas precisam ser hospitalizadas após o procedimento.

O risco do aborto feito de modo improvisado, sem a proteção legal e, portanto, sem assistência adequada de profissionais de saúde, pode levar à morte e, nesse cenário, a maioria é negra. De acordo com o mais recente levantamento oficial do país, 64% das mulheres que perderam a vida após tentar fazer um aborto não especificado – termo mais usado para os abortos clandestinos – tinham esse perfil, tendo como base o intervalo de 2012 a 2021. De 2012 a 2019, mais de 192 mil mulheres foram internadas após abortos não especificados ou após a tentativa dar errado.

A advogada Letícia Vella, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, avalia que, se a mentalidade do país fosse outra, o acesso seria mais fácil até para quem tem, atualmente, direito a fazer um aborto. “As barreiras são inúmeras”, observa.

Ela citou, entre essas barreiras: poucos serviços que oferecem consultas para que se chegue à possibilidade de realização do procedimento; objeção de consciência por parte dos profissionais; limite de idade gestacional; autorização judicial, quando não é necessária; e desconfiança na palavra das mulheres. Citou ainda tentativas de verificar a compatibilidade da idade gestacional com a época da violência (estupro) e a desconsideração de doenças crônicas.

Relato

A designer Ísis* tinha 39 anos e saía há um mês com seu companheiro, apesar de o conhecer há anos, quando descobriu a gravidez indesejada. O relacionamento era tão recente quanto o emprego que conseguira. Pela lei que vigora hoje no Brasil, Ísis não poderia realizar um aborto. Ela chegou a tomar a pílula do dia seguinte para evitar a gravidez, mas não funcionou.

A ajuda chegou por meio de pessoas de sua confiança, em sua maioria mulheres que indicaram contatos para a compra de substâncias abortivas. Ísis também consultou um médico para saber como deveria tomar o medicamento, que adquiriu com dinheiro guardado na poupança, e para conhecer os riscos. Ela contou com o apoio do companheiro, que teve receio de que ela morresse ou ficasse com sequelas após o procedimento.

“Também conheço uma moça que, mesmo tendo dinheiro, quase não conseguiu abortar. Ela estava grávida de gêmeos. Só soube quando foi verificar no exame transvaginal”, conta Ísis, acrescentando que o aborto de um dos fetos não foi feito com sucesso e que ela precisou recorrer a doses de mifepristona, que obteve por meio de um coletivo feminista.

“Eu não estava preocupada em morrer, estava preocupada em parir sem ter planejado. Eu tinha pouquíssimo tempo no emprego. Imagina a confusão”, afirma.

*O nome da entrevistada foi trocado para preservar sua identidade.

Lula premiará ruralistas se vetar só o marco temporal no ‘PL do Genocídio’

Lula sinalizou que deve vetar o chamado PL do Marco Temporal, aprovado pelo Senado na quarta (27). A questão é se o veto será integral ou parcial. Porque, ironicamente, o marco é a parte natimorta do projeto de lei. O risco real está no resto. Sim, o problema do “PL do Genocídio”, como é chamado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), hoje não é o marco.

Como o STF já declarou inconstitucional a tese de que indígenas só podem reivindicar terras em que estavam em outubro de 1988, esse trecho da nova lei não sobrevive a um questionamento à corte. Um veto de Lula, neste caso, serve apenas para poupar tempo e recursos públicos antecipando o inevitável. Não à toa, o senador Randolfe Rodrigues já avisou que a tese não sobrevive à canetada do presidente da República.

Aliás, se o Congresso quiser insistir, sua melhor chance é coloca-la na Constituição, o que vai gastar energia por demandar 60% dos votos da Câmara e do Senado. E, ainda assim, o Supremo pode julgar que a PEC nasceu desrespeitando princípios constitucionais básicos e derrubá-la.

Se vetar o natimorto marco temporal e deixar passar os outros pontos do PL 2903/2023, o presidente da República vai estar fazendo média com a bancada ruralista. Pois esses pontos formam um pacote que é verdadeiro coração pulsante do projeto.

E que pontos são esses?

Permitir contato com indígenas isolados colocando sua vida em risco com doenças; proibir a ampliação de terras já demarcadas, evitando corrigir erros do passado; retomar territórios caso um grupo de indígenas deixe de “parecer” indígena na opinião de um governante de plantão; dispensar consulta prévia aos indígenas para instalar bases militares, rodovias, ferrovias e hidrovias e hidrelétricas; autorizar o cultivo de transgênicos em territórios indígenas; facilitar que o poder público instale redes de comunicação e linhas de transmissão de energia elétrica em terras indígenas mesmo sem a concordância dos povos que vivem lá, entre outros.

Depois de 570 cadáveres de crianças Yanomami e da violência contra os guaranis e dos kaiowás, entre tantos outros, fruto da relativização de seus direitos em nome de um pretenso progresso que se acentuou nos últimos quatro anos, a aprovação desse pacotão é visto como insulto por lideranças indígenas.

Amuado pelo STF cumprir sua função de analisar a constitucionalidade, o Congresso manda recados através da vida de povos tradicionais. O Senado até abriu mão de sua função de casa revisora, evitando emendar o texto para que a proposta não voltasse à Câmara. Recados que, se não vetados integralmente por Lula, trarão lucro para alguns e morte para outros.


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