04/05/2024 - Edição 540

Especial

CARNAVAL GOLPISTA

Investigação da PF traz elo que faltava entre cúpula bolsonarista e tentativa de golpe

Publicado em 09/02/2024 9:58 - Natália Portinari, Leonardo Sakamoto, Josias de Souza e Rafael Neves (UOL), UOL, Lucas Neiva e Gabriella Soares (Congresso em Foco) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A Polícia Federal (PF) considera que, com as provas que levaram à operação de quinta-feira (8), foi confirmada a participação de Jair Bolsonaro no comando da tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022, e a investigação está perto de ser encerrada.

Para investigadores, as provas expostas na operação confirmam os depoimentos da delação de seu ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, e colocam o ex-presidente no topo da cadeia de comando da trama golpista.

Quando o inquérito for finalizado, a Polícia Federal irá encaminhar os indiciamentos dos investigados para a Procuradoria-Geral da República (PGR). A PF irá indiciar todos os suspeitos sobre os quais, em seu juízo, há provas suficientes de que tenham cometido crime.

A PGR irá avaliar a investigação e, se for o caso, encaminhar as denúncias ao ministro relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Caso ele receba as denúncias, os denunciados na acusação de tentativa de golpe se tornarão réus em uma ação penal.

Os crimes investigados são a tentativa de abolir o Estado democrático de direito e de golpe de Estado, com pena máxima de oito e doze anos, respectivamente, além de associação criminosa, cuja pena é de até três anos.

Os réus do 8 de janeiro foram condenados pelo STF pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático e de golpe de Estado, com penas que variam entre 14 e 17 anos.

Reuniões planejando golpe

Os depoimentos e provas documentais colhidos pela PF situam o ex-presidente Jair Bolsonaro em diversas conversas em que se planejava um golpe, como foram os encontros com seu então assessor, Filipe Martins, em 19 de novembro e 7 de dezembro, entre outras datas.

As provas consideradas mais fortes são as que apontam que Bolsonaro recebeu e propôs alterações em uma minuta de decreto golpista, inclusive mantendo no texto uma determinação de que o ministro do STF Alexandre de Moraes fosse preso para viabilizar o golpe.

“Os elementos fornecidos pelo acordo de colaboração demonstram que FILIPE MARTINS levou ao então Presidente JAIR BOLSONARO, no mês de novembro de 2022, um documento que detalhava diversos ”considerandos” (fundamentos dos atos a serem implementados) quanto a supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e ao final decretava a prisão de diversas autoridades”, diz o relatório da Polícia Federal citado na decisão de Alexandre de Moraes.

Em reunião de 7 de dezembro de 2022, Bolsonaro apresentou a minuta de decreto golpista aos comandantes das Forças Armadas e ao ministro da Defesa, em reunião convocada por ele próprio.

As provas colhidas pela PF indicam que, antes da eleição, o ex-presidente pressionou seus ministros a repetirem publicamente que o sistema eleitoral brasileiro estava fraudado para beneficiar Lula. Depois, o núcleo próximo do ex-presidente atuou para convencer as Forças Armadas a dar um golpe de Estado, segundo a PF.

Delação de Mauro Cid

Mauro Cid contou em sua delação premiada, que Bolsonaro recebeu uma minuta de golpe preparada pelo então assessor internacional Filipe Martins, logo após perder as eleições para Lula.

Na ocasião, Cid também revelou aos investigadores que Bolsonaro consultou os comandantes das Forças Armadas sobre plano de golpe de Estado. A trama teve apoio do comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, e encontrou resistência dos comandantes da Aeronáutica e do Exército.

As diligências da Polícia Federal conseguiram confirmar os fatos relatados por Cid e encontrar mais detalhes sobre a participação de Jair Bolsonaro, segundo aponta a representação da Polícia Federal citada pela decisão do ministro Alexandre de Moraes nesta quinta-feira.

Apesar de caminhar para seu fim, o inquérito sobre a tentativa de golpe ainda depende da análise sobre as buscas e apreensões feitas nesta quinta-feira, nas quais podem surgir novas provas. Na sede do PL, foi encontrado um documento que parece ser o rascunho de um discurso que anunciaria o decreto de um estado de sítio no país, por exemplo.

Investigação traz elo que faltava para ligar cúpula de Bolsonaro a golpismo

A investigação da Polícia Federal traz o elo que faltava para ligar os manifestantes bolsonaristas que pediam intervenção militar, inclusive em frente a quartéis do Exército, com o comando desses atos. As provas colhidas pela PF desmentem o discurso adotado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados de que os atos golpistas sempre foram manifestações espontâneas, fruto de “liberdade de expressão”.

Em nota, advogados do ex-presidente declararam “indignação” e “inconformismo” com as medidas cautelares deflagradas hoje. Eles classificaram a apreensão do passaporte de Bolsonaro como “absolutamente desnecessária” e alegaram que o ex-presidente não compactuou “com qualquer movimento que visasse a desconstrução do Estado Democrático de Direito ou as instituições que o pavimentam”.

O QUE ACONTECEU

Operação Tempus Veritatis. A ação autorizada pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes para cumprir 33 mandados de busca e apreensão revelou os movimentos de integrantes do governo e do Exército para impedir que o presidente Lula assumisse o cargo depois de sua vitória, em outubro do ano passado.

Financiamento de manifestações. A investigação revela a atuação da cúpula de Bolsonaro, inclusive na articulação de manifestações que dariam um suposto caráter popular a uma possível investida contra a democracia.

R$ 100 mil para custear atos. Em um trecho da decisão liberada por Moraes, por exemplo, há detalhes de um diálogo entre o então ajudante de ordens Mauro Cid e o major de Exército Rafael Martins, no dia 14 de novembro de 2022. A conversa foi para atender um pedido de R$ 100 mil para pagar transporte e estadia de manifestantes e “trazer pessoas do Rio”, possivelmente, do Rio de Janeiro para Brasília.

Detalhes da investigação desmentem narrativa de Bolsonaro. O ex-presidente sempre tratou como atos democráticos, ou “manifestações espontâneas”, as manifestações a seu favor que pediam, por exemplo, intervenção militar.

Das invasões do 8 de janeiro ao comando golpista. As manifestações golpistas aconteceram em vários momentos do governo Bolsonaro, com pedidos de intervenção militar. O ápice desses atos foi no dia 8 de janeiro, com a invasão de milhares de manifestantes à Esplanada dos Três Poderes. Na ocasião, foram presas 1.395 pessoas entre os dias 8 e 9.

Investigação apontou militares e aliados de Bolsonaro no planejamento do golpe. A PF apurou que ao menos quatro generais de quatro estrelas atuavam com o então presidente Bolsonaro para contestar o resultado das eleições de outubro de 2022, com o mesmo argumento adotado por manifestantes que invadiram Brasília.

Minuta de golpe e prisão de ministros. Foram descobertas cópias de minutas de golpe e um plano para prender o ministro Alexandre de Moraes, e até o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.

Delação de Mauro Cid trouxe detalhes das ações golpistas. A PF chegou aos mandantes por meio da delação premiada do ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, homologada em setembro do ano passado. Cid foi preso em maio de 2023, numa ação que mirava inclusão de dados falsos sobre vacinação no sistema do Ministério da Saúde. O celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro foi apreendido. Nele, havia informações que foram reveladas nesta quinta.

Suposta fraude das urnas eletrônicas. A decisão de Moraes liga os pontos entre os passos do ex-presidente para justificar um eventual golpe. Em julho de 2021, por exemplo, Bolsonaro fez uma transmissão para seus seguidores, acompanhado do então ministro da Justiça Anderson Torres, com a finalidade de mostrar indícios de ocorrência de fraudes e manipulação de votos em eleições brasileiras, decorrentes de supostas vulnerabilidade do sistema eleitoral.

Atuação das milícias digitais. A Polícia Federal aponta a atuação de milícias digitais no segundo turno das eleições presidenciais de 2022 para “reverberar por multicanais a ideia de que as eleições presidenciais foram fraudadas, estimulando seus seguidores a ‘resistirem’ na frente de quartéis e instalações das Forças Armadas”. O objetivo, segundo a investigação, “era criar o ambiente propício para o golpe de Estado”.

Núcleo de desinformação. O argumento das urnas fraudadas sempre esteve presente no discurso dos apoiadores de Bolsonaro. As investigações desta quinta apontam para uma provável conexão entre um núcleo de inteligência, formado pelo ex-presidente e seus aliados, que distribuía a informação para os seguidores bolsonaristas através de um núcleo de desinformação. Entre os integrantes do núcleo, estariam Mauro Cid, o ex-ministro Anderson Torres, e até Fernando Cerimedo, um assessor do atual presidente argentino, Javier Milei.

Influenciadores e o incentivo a ir para a frente dos quartéis. A PF diz que um núcleo de desinformação teria atuado para produzir e amplificar notícias falsas, inclusive sobre supostos “estudos” que atestariam a falta de lisura das eleições presidenciais de 2022, além de “supostos registros de votos após o horário oficial, inconsistências no código-fonte, com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis.” Influenciadores ajudavam a incentivar os ataques “a partir da difusão em múltiplos canais”.

PF tem vídeo de Bolsonaro com ministros discutindo ‘dinâmica golpista’. O vídeo, em um computador de Mauro Cid apreendido pela PF, exibe reunião realizada em julho de 2022. “Daqui pra frente, quero que todo ministro fale o que eu vou falar aqui, e vou mostrar. Se o ministro não quiser falar, ele vai vir falar para mim por que que ele não quer falar. Se apresentar onde eu estou errado, eu topo. Agora, se não tiver argumento pra me ti… demover do que eu vou mostrar, não vou querer papo com esse ministro. Tá no lugar errado. Se tá achando que eu vou ter 70% dos votos e vou ganhar como ganhei em 2018, e vou provar, o cara tá no lugar errado”, disse o então presidente.

Fronteira entre a burrice e a autoconfiança é muito tênue no Bolsoverso

“Senhores, todos vão se foder. Eu quero deixar bem claro isso. Eu quero que cada um pense no que pode fazer previamente porque todos vão se foder.” A declaração de caráter profético foi feita pelo então ministro da Justiça, Anderson Torres, em uma reunião de caráter golpista em 5 de julho de 2022.

O objetivo era cobrar engajamento para a difusão de mentiras sobre o sistema eleitoral e, ao mesmo tempo, buscar formas de utilizar a estrutura do Estado brasileiro a fim de se manterem no poder.

A reunião foi gravada e o vídeo encontrado na casa do ex-faz-tudo de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Sim, uma reunião golpista foi gravada. O que mostra que a fronteira entre a burrice e a autoconfiança é muito tênue no Bolsoverso, o universo paralelo da extrema direita. Ou tinha alguém, desde sempre, registrando tudo como garantia.

A profecia se cumpriu. Torres veio a ser preso após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2022, quando já estava à frente da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Ficou quatro meses atrás das grades. A conivência e a falta de organização da Polícia Militar do DF diante dos golpistas foi fundamental para a destruição da Praça dos Três Poderes. E enquanto o pau comia aqui, ele estava convenientemente de “férias” nos Estados Unidos.

Os melhores momentos do encontro – que juntou, além de Torres, o então presidente Jair Bolsonaro e os generais Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Braga Netto (ex da Casa Civil), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Mário Fernandes (número 2 da Secretaria-Geral da Presidência) – estão descritos na decisão do ministro Alexandre de Moraes. Ele autorizou, nesta sexta (8), operação da Polícia Federal que investiga uma organização criminosa que tentou um golpe de Estado.

“Nós vamos esperar chegar 23, 24, para se foder?”, questionou Bolsonaro, deixando claro que não precisaria “botar tropa na rua, tacar fogo, metralhar” se as mentiras sobre a Justiça Eleitoral fossem devidamente espalhadas.

“Daqui pra frente quero que todo ministro fale o que eu vou falar aqui, e vou mostrar. Se o ministro não quiser falar, ele vai vim falar para mim porque que ele não quer falar. Se apresentar onde eu estou errado, eu topo. Agora, se não tiver argumento pra me demover do que eu vou mostrar, não vou querer papo com esse ministro. Tá no lugar errado”, disse. Jair ainda avisou que faria a fatídica reunião com os embaixadores, na qual atacou o sistema eleitoral e por conta da qual foi tornado inelegível no ano seguinte.

Torres fez um discurso forte na reunião golpista com os generais.

“Tem muitos aqui que eu não sei nem se tem estrutura para ouvir o que a gente tá falando aqui, com todo o respeito a todos. Mas eu queria começar por uma frase que o presidente colocou aqui, que eu acho muito verdadeira. O exemplo da Bolívia é o grande exemplo para todos nós. Senhores, todos vão se foder!”, avisou.

Por que Bolívia? Durante anos, o fantasma do destino da ex-presidente do país vizinho, Jeanine Añes, condenada por um golpe de Estado em 2019, rondou os pesadelos de Jair.

Em junho de 2021, quando ela já estava presa, ele tratou do assunto com seus seguidores: “O que aconteceu na Bolívia? Voltou a turma do Evo Morales e, mais ainda, a presidente que estava lá no mandato tampão [Jeanine Añez] está presa, acusada de atos antidemocráticos. Estão sentindo alguma semelhança com o Brasil?”, disse.

Em abril de 2022, a ex-presidente da Bolívia já havia aparecido em um discurso de Jair no Palácio do Planalto: “Tenham certeza eu jamais serei uma Jeanine, jamais, porque primeiro eu acredito em Deus e depois acredito em cada um de vocês que estão aqui. A nossa liberdade não tem preço, digo mais, como sempre tenho dito: ela é mais importante que a nossa própria vida, porque um homem, uma mulher sem liberdade não tem vida”.

Percebam que não era a liberdade dos brasileiros que estava em jogo para ele, mas a dele. E pediu ajuda aos seus aliados presentes: “acredito em cada um de vocês que estão aqui”.

E, em junho de 2022, durante visita a Orlando, nos Estados Unidos Bolsonaro se compranou novamente à Jeanine Añes. Ela estava presa naquele momento e, ironicamente, sendo julgada junto com ex-chefes militares. “A turma dela perdeu, voltou a turma do Evo Morales. O que aconteceu um ano atrás? Ela foi presa preventivamente. E agora foi confirmado dez anos de cadeia para ela”, disse.

E foi além: “Qual a acusação? Atos antidemocráticos. Alguém faz alguma correlação com Alexandre de Moraes e os inquéritos por atos antidemocráticos? Ou seja, é uma ameaça para mim quando deixar o governo?”

Bolsonaro não tinha planos para deixar o poder mesmo se perdesse, pois sabia que a única coisa que adiava seu encontro com a Justiça por crimes que cometeu (700 mil mortes na pandemia, denúncias de corrupção em pastas como Saúde e Educação, desvios em cartões corporativos da Presidência da República, subtração de joias pertencentes ao poder público…) era a imunidade do cargo.

Para permanecer no poder, dobrou a aposta, foi para o tudo ou nada e tentou junto com seus assessores e aliados levar a cabo um golpe de Estado. Quase deu certo, mas não deu. Ele culpa uma conspiração contra ele, mas o que essa reunião mostra é que quem conspirou contra si mesmo foi ele.

“Nós vamos esperar chegar 23, 24, para se foder?”, questionou Bolsonaro. Sim, ao que tudo indica, 2024 é o ano.

Autópsia do golpe documentou Bolsonaro com a mão na massa

A investigação sobre o golpe tramado por Bolsonaro contra a democracia mudou de patamar. Até aqui, havia as condenações dos bagrinhos do 8 de janeiro e os vazamentos devastadores sobre a delação de Mauro Cid, mantida em segredo. A divulgação dos dados que fundamentaram a megaoperação deflagrada nesta quinta-feira pela Polícia Federal trouxe à luz a autópsia da tentativa de virada de mesa.

Bolsonaro e seus cúmplices civis e militares foram pilhados com a mão na massa. Documentou-se em vídeo, áudio e troca de mensagens a anatomia de um golpe em execução. O Apocalipse de Bolsonaro foi debatido em pelo menos duas reuniões. Em ambas, Bolsonaro e seus aliados paisanos e fardados estiveram na cena do crime.

Numa reunião, antes da eleição presidencial, organizou-se a difusão de informações falsas sobre o sistema eleitoral. O encontro foi filmado. Uma das cenas mais indecorosas foi o strip-tease moral do general Augusto Heleno. Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, de cujo organograma pende a Abin, Heleno sugeriu rasgar a Constituição antes da apuração dos votos.

“Não vai ter revisão do VAR”, disse Heleno. “Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições.” A conversa vadia do general incluiu a sugestão de infiltrar espiões nos comitês de campanha de adversários. Bolsonaro atalhou a prosa, sugerindo que a bisbilhotagem fosse discutida posteriormente, numa conversa a dois.

Noutra reunião, depois da proclamação da derrota de Bolsonaro, o capitão discutiu com a cúpula militar e os áulicos paisanos a minuta de decreto golpista. As digitais de Bolsonaro constam da edição do texto. Ele encomendou o enxugamento da versão que previa a prisão do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, e de um par de togas: Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes.

O texto final, aprovado por Bolsonaro, previa a anulação da vitória de Lula, a prisão de Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, e a intervenção militar. Tratado pelo codinome de “professora”, Moraes foi monitorado ilegalmente. Chegou-se ao escárnio de marcar data para a detenção de Xandão.

A investigação sinaliza que o golpe falhou por falta de adesão de dois comandantes militares: o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnor, da Aeronáutica, e, sobretudo, o general Freire Gomes, do Exército. O comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, aderiu à ilegalidade.

Deu-se algo inusitado: o general Braga Netto, vice de Bolsonaro, xingou os colegas legalistas. Chamou Freire Gomes de “cagão”. Como se fosse pouco, incitou a hostilidade de oficiais golpistas do segundo escalão contra os colegas que resistiram à trama anticonstitucional. A indignidade de Braga Netto também está documentada nos autos do inquérito. Numa mensagem, encomendou a “implosão” de Freire Gomes. Noutra, orientou: “Elogia o Garnier e fode o Baptista Júnior.”

No final de dezembro de 2022, antes de fugir para Orlando, paraíso do rato Mickey Mouse, Bolsonaro surgiu numa live para dizer “como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas!”. A alturas tantas, declarou: “Tem gente chateada comigo, dizendo que deveria ter feito alguma coisa, qualquer coisa. Mas, para você conseguir fazer alguma coisa, mesmo nas quatro linhas, você tem que ter apoio”.

As investigações escancararam que a “coisa” pretendida por Bolsonaro era o golpe que o perpetuaria no poder. A Polícia Federal colocou o ex-presidente e seus cúmplices na rota da cadeia. A lei tipifica como crime a “tentativa de golpe de Estado” e a “tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito”.

Bolsonaro não fez outra coisa senão tentar converter o Brasil numa autocracia de bananas. Por ordem de Alexandre de Moraes, o passaporte de Bolsonaro foi apreendido. Hoje, a pose de vítima do capitão virou uma fantasia de Carnaval à espera da sentença criminal.

Apreensão de discurso golpista adorna o Waterloo de Bolsonaro

A Polícia Federal apalpou na batida de busca e apreensão que realizou na sede do Partido Liberal, em Brasília, um presente inesperado. Os agentes recolheram na sala reservada a Bolsonaro um documento com aparência de discurso. Contém o anúncio de um estado de sítio e de um decreto instituindo uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem, a GLO. A peça deu ao provável dono a aparência de uma espécie de Napoleão suicida, que oferece aos investigadores as pistas que levarão ao seu Waterloo criminal.

O estado de sítio é um remédio constitucional reservado a situações excepcionais. Entre elas uma “comoção grave de repercussão nacional”. Permite a adoção de medidas extremas. Coisas como suspensão da liberdade de reunião, restrições à liberdade de imprensa e requisição de bens. A GLO autoriza o uso das Forças Armadas para conter perturbações da ordem pública. Só um Napoleão de hospício, protagonista de múltiplos inquéritos na Suprema Corte, presentearia a PF com um documento desse teor.

Um dos elementos que fundamentaram a decisão de Alexandre de Moraes de enviar a PF às ruas nesta quarta-feira foi um vídeo inusitado. Nele, há imagens de uma reunião em que Bolsonaro traçou com cúmplices civis e militares a estratégia de difusão de mentiras sobre o sistema eleitoral. É nessa peça que soam as propostas vadias do general Augusto Heleno de “virar a mesa antes da eleição” e infiltrar espiões da Abin nas campanhas rivais. É como se Bolsonaro tivesse planejado com esmero sua própria imolação.

Noutra reunião esquadrinhada pela PF, adotando o mesmo comportamento de um Napoleão se descoroando, Bolsonaro imprimiu as digitais num decreto golpista. Encomendou a edição do texto. Aprovou-o na sequência. Fez tudo isso na frente do faz-tudo Mauro Cid, hoje convertido em delator. Nesse contexto, a declaração recolhida na sede do PL reforça o caráter didático do golpismo. Ficou entendido que o discurso seria lido na sequência do golpe.

Diz o texto: “Afinal, diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o estado de sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem.”

Na prática, embora faça pose de vítima de perseguição, Bolsonaro tornou-se um imperador autossuficiente. Ele mesmo conspira, ele mesmo documenta a trama, ele mesmo produz o rastro que leva os investigadores às provas. Ao meter-se no hospício do golpismo, o capitão virou um duque de Wellington de si mesmo. Alexandre de Moraes e a Polícia Federal apenas surfam na onda de evidências que invade o inquérito.

Juristas não veem abuso em ação contra Bolsonaro: ‘Foi fundamentado’

Advogados consultados pelo UOL avaliam que não houve excessos aparentes na operação da Polícia Federal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados. Na avaliação dos juristas, a decisão do STF foi bem fundamentada. Eles dizem que as condutas foram bem individualizadas, ou seja, as evidências que existem contra o grupo estão claras, e as medidas autorizadas contra cada alvo da operação são adequadas, de forma geral.

As prisões foram decretadas com base no risco de danos às investigações. A pedido da PF, Moraes mandou prender três ex-assessores militares do Planalto — os coronéis Marcelo Câmara e Bernardo Romão Correa Neto e o major Rafael Martins de Oliveira — e Filipe Martins, ex-assessor para assuntos internacionais de Bolsonaro.

“Aparentemente, existem indícios de autoria e materialidade de crimes de tentativa de golpe e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. No caso do ex-presidente [Bolsonaro], a retenção do passaporte é uma medida menos gravosa que a prisão, e me parece adequada para esse momento da investigação”, disse Antônio Pedro Melchior, Diretor do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

“As buscas e apreensões têm sempre um caráter invasivo. O magistrado deve fazer uma ponderação entre a necessidade das medidas e o impacto delas na vida pessoal dos investigados. Mas, nesse caso, me parece que o ministro [Moraes] individualizou bem os elementos de prova e tomou as decisões com a cautela devida”, opinou Henrique Attuch, especialista em Direito e Processo Penal do escritório Wilton Gomes Advogados.

“É uma medida enérgica, sim, mas ela faz parte de uma investigação que já está em curso há mais de um ano contra pessoas que tentaram uma coisa extremamente grave, que é um crime de golpe de Estado. É evidente que isso é uma investigação, e ninguém pode ser considerado culpado ainda, mas as medidas de hoje fazem parte dessa apuração”, reforçou Renato Ribeiro de Almeida, doutor em Direito pela USP e membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político).

Vítima de supostos crimes, Moraes deveria julgá-los?

Existe no meio jurídico uma discussão sobre a posição de Alexandre de Moraes no caso. Assim como em outros inquéritos que já correram no STF, há elementos que colocam o ministro como vítima dos crimes investigados, o que o impediria de julgá-los.

Antônio Melchior, do IBCCrim, vê com preocupação a “possível confusão” entre as figuras de juiz e de vítima de Moraes. Ele pondera, no entanto, que a situação decorrente do dia 8 de janeiro é inédita, e não existe uma posição fechada sobre o tema.

Para Renato Ribeiro de Almeida, da Abradep, a possível condição de vítima de Moraes não atrapalha as investigações. Ele avalia que as ameaças golpistas eram dirigidas ao ministro devido ao cargo que ele ocupa, não no nível pessoal.

“Parte significativa das decisões do Moraes costuma ser confirmada pelo plenário do STF, o que aumenta sua legitimidade. Mas preocupa uma possível confusão entre o que seria o espaço preservado à figura do juiz e à da vítima. A situação é inédita, porque todos os ministros do STF são potencialmente vítimas da organização criminosa, de forma que talvez não seja possível organizar o julgamento sem que essas pessoas estejam presentes”, diz Melchior.

“O ministro, na condição de presidente do TSE e integrante do STF, era uma das figuras que, ao se tentar um golpe de Estado, seria naturalmente atingida. Mas isso se daria pela posição institucional do cargo que ele ocupa. Qualquer autoridade na posição dele estaria sujeita a isso”, afirmou Renato Ribeiro.

Minuta do golpe aproxima Bolsonaro da prisão, avaliam juristas

As complicações jurídicas para o ex-presidente Jair Bolsonaro podem se agravar de forma séria quando houver a conclusão do inquérito decorrente da Operação Tempus Veritatis.

De acordo com Miguel Reale Jr, ex-ministro da Justiça e membro da comissão que revisou a parte geral do atual Código Penal, a reação de Bolsonaro o coloca como coautor de uma tentativa de golpe de Estado. “Ele se demonstra, efetivamente, como administrador. Ele é ali um incentivador e um organizador de um golpe”, aponta o jurista.

A advogada criminalista e mestra em direito penal pela PUC-SP Jacqueline Valles é categórica ao dizer que a conduta citada no inquérito inclui Bolsonaro entre os envolvidos na tentativa de golpe de Estado. “Havia ali um crime em andamento, e há uma participação concreta [do presidente] analisando a minuta, revendo os autos, verificando se estava tudo conforme sua vontade. Isso se soma a todos os atos praticados por aqueles que cometeram crimes contra as instituições democráticas”, ressaltou.

Os dois criminalistas consideram os ataques de 8 de janeiro de 2023 como o momento em que se efetivou o crime, restando descobrir se Bolsonaro e seus aliados próximos atuaram como mandantes diretos ou como incitadores de uma massa que, a despeito de agir por iniciativa própria, teria sido motivada por eles. Os dois casos resultam em condenação. “Aquela minuta é parte do que chamamos de ato preparatório para o crime”, acrescenta Jacqueline.

Miguel Reale Jr chama atenção para a forma com que Bolsonaro teria tratado do assunto, conforme consta do trecho citado na decisão que autorizou a última leva de ações da PF. “Ele chega a dizer aos ministros ‘vocês dependem de mim e eu dependo de vocês, nós vamos agir, não vamos ficar parados’ em um diálogo transcrito pelo Mauro Cid [antigo ajudante de ordens]. Ele se demonstra como um organizador do bando criminoso”. Na reunião em questão, Bolsonaro reforçou aos seus auxiliares a tese de que teria vencido as eleições.

O fato de a minuta não ter resultado em um decreto publicado em diário oficial, para o ex-ministro, não corrobora em favor de Jair Bolsonaro. “O fato delituoso está no 8 de janeiro. A minuta demonstra a participação ativa dele nesse processo. Ele não desconhecia que a trama estava montada, e que tudo estava preparado, inclusive com coronéis nas Forças Especiais do Exército para um golpe”.

O advogado Pierpaolo Bottini, professor-livre do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da USP, se soma aos demais na tese de que não há muita margem para o ex-presidente escapar de uma condenação nesse caso.

“Se realmente ficar comprovado que o presidente discutiu um decreto que executa um golpe de Estado, que ele participou dessa discussão, que participou de debates com ministros e mesmo oficiais das Forças Armadas ao redor de uma minuta de golpe de Estado, isso é muito grave, e é previsto no Código Penal. Se for confirmado, vai ficar claro que os atos de 8 de janeiro não eram uma mera baderna, mas uma das facetas de algo maior”, avalia Bottini.

Sem prisão preventiva

Se por um lado, há consenso de que as chances de Bolsonaro sofrer uma condenação caso se confirme as suspeitas levantadas pela PF, do outro, os juristas consultados consideram pouco provável que, no curto prazo, possa ser emitido um mandado de prisão preventiva, tal como aconteceu com outros investigados desde os atos de 8 de janeiro, como Anderson Torres ou o próprio presidente do PL, Valdemar Costa Neto, após a descoberta de que este portava uma arma ilegalmente (O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, foi preso na manhã de ontem por porte ilegal de armas. Ele foi um dos alvos da operação da PF. Sua prisão não estava decretada, mas o flagrante de porte ilegal permitiu a prisão)

“Eu não acredito que essa minuta, em si, faça com que a prisão ocorra antes da sentença. A prisão necessariamente vai ocorrer, mas acredito que apenas após a condenação”, antecipou Jacqueline Valles.

“A prisão preventiva, para que aconteça, não basta que o crime investigado seja grave. É preciso de uma demonstração de que, no momento atual, essa pessoa ou está atrapalhando as investigações ou tem a possibilidade de se evadir do país. Nesse momento, o ministro se satisfez com a apreensão do passaporte”, explicou Pierpaolo Bottini.

Apesar de considerar pequena a chance de uma restrição de liberdade de Bolsonaro em curto prazo, Jacqueline Valles aponta para a tendência de piora na situação do antigo chefe de governo diante da Justiça. “Quanto mais a PF investiga, mais ela consegue saber o quanto ele estava inserido de forma atuante nesses crimes. Isso fortalece a denúncia quando chegar ao Ministério Público”.

LEIA MAIS

Exército teria abraçado golpe de Bolsonaro se Trump ainda fosse presidente?

“Militares precisam ser responsabilizados”, diz cientista político.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *