04/05/2024 - Edição 540

Especial

BOLSOGATE

O estado policial que Bolsonaro montou para sepultar a democracia

Publicado em 26/01/2024 9:09 - Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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A operação da Polícia Federal contra o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), vem se desenhando como a ponta do iceberg da máquina de espionagem de Jair Bolsonaro entre 2019 e 2022. Pelas informações até o momento, podemos dizer que esse é um dos maiores escândalos desde o fim da ditadura militar. Tão grave quanto o escândalo de Watergate, que levou a renúncia do presidente Richard Nixon em 1974.

Utilizando um software israelense que consegue monitorar deslocamento de pessoas utilizando o celular, o governo Bolsonaro espionou Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, ministros do Supremo Tribunal Federal, segundo a Polícia Federal, como trouxe Natália Portinari, no UOL. O objetivo era buscar elementos para respaldar a mentira contada pelo bolsonarismo de que ambos têm relação com o PCC.

Mas também o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia – que disse ao UOL que desconfiou que estava sendo monitorado por conta das informações que vazavam sobre onde ele estava e com quem.

Mais de 30 mil pessoas foram alvos de monitoramento ilegal por parte do governo Jair Bolsonaro. Entre elas, estariam governadores, parlamentares, jornalistas, advogados e até pessoas do entorno dos filhos do ex-presidente. Sim, o software espião também era usado como babá eletrônica.

Bolsonaro, que já havia instalado o Gabinete do Ódio nas dependências do Palácio do Planalto a fim de atacar adversários e jornalistas, ao que tudo indica criou também uma estrutura muito pior, que atropelava garantias constitucionais e liberdades individuais, esvaziando a privacidade e fazendo arapongagem na vida pessoal e profissional de milhares de brasileiros.

Isso mostra o comportamento de um governante de estado autoritário, que vigia a tudo e a todos para garantir a sua perpetuação no poder.

Essa constatação não é exatamente surpreendente. Quando ele ainda era candidato à Presidência da República, em 2018, os que tinham apreço pela democracia avisaram que ele dobraria as instituições do Estado brasileiro às suas próprias necessidades.

Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, isso ficou explícito. “Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”, disse ele.

Bolsonaro queria Alexandre Ramagem como diretor da PF. O então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro acabou pedindo demissão ao bater de frente com ele por conta disso.

Ele falava sério quando disse “não estamos aqui pra brincadeira”. Ao longo de seu mandato, enfraqueceu ou sequestrou instituições públicas do Poder Executivo voltadas ao monitoramento e controle.

As informações que começam a surgir agora da investigação da Polícia Federal sobre a Abin são apenas o começo. É necessário aprofundar as investigação não apenas para outras formas de espionagem pela Abin (o First Mile não era o único programa espião disponível no mercado que chamou a atenção do governo passado), mas também por outras instituições que podem ter sido usadas pelo bolsonarismo, como a Receita Federal.

Diante de tudo isso, Alexandre Ramagem é, sem dúvida, o mais bem informado pré-candidato à Prefeitura do Rio. A tal ponto que pode perder apoio para a empreitada.

Cerco de Moraes inflama bloco leal a Bolsonaro no Congresso

A batida da Polícia Federal em endereços do deputado Alexandre Ramagem eletrificou a banda bolsonarista no Congresso. Correligionários de Bolsonaro na Câmara e no Senado haviam se reunido na véspera para traçar uma resposta legislativa à operação de busca e apreensão deflagrada na semana passada contra outro deputado, o líder da oposição Carlos Jordy. A investida contra Ramagem converteu a eletrificação do ambiente político em curto-circuito.

Os parlamentares enxergaram nos mandados judiciais expedidos pelo Supremo Tribunal Federal um cerco do ministro Alexandre de Moraes ao braço parlamentar do bolsonarismo. Tacharam os despachos de Moraes de “perseguição política”. Avaliaram que o ministro se equipa para alcançar dois propósitos não declarados.

Num, Moraes utilizaria os deputados como degrau para alcançar a jugular do próprio Bolsonaro, preparando a cena para pendurar no pescoço do mito sentenças criminais nos casos do 8 de janeiro e no inquérito sobre a montagem de um aparato de espionagem clandestina de adversários na Abin.

Noutro movimento, Moraes dinamitaria o plano do PL de usar Bolsonaro como cabo eleitoral de luxo nas eleições municipais de 2024. Jordy é pré-candidato à prefeitura de Niterói. Ramagem cogita disputar a poltrona de prefeito do Rio de Janeiro. As teorias conspiratórias do bolsonarismo, por mequetrefes, não ficam em pé.

A alegada utilização do poder supremo para abater a candidatura de Jordy em Niterói seria equiparável à utilização de um míssil para eliminar uma mosca. Quanto a Ramagem, o inquérito sobre a bisbilhotagem ilegal da Abin na época em que o deputado chefiava a agência de inteligência (sic) foi aberto em outubro do ano passado. O lançamento da pré-candidatura do investigado como adversário do prefeito carioca Eduardo Paes, favorito à reeleição, ocorreu num instante em que o ex-chefe da Abin já perambulava pela conjuntura como um fio desencapado.

De resto, são abundantes as evidências de que Moraes agiu porque o aparato bolsonarista forneceu material. As batidas policiais foram endossadas por pareceres de Paulo Gonet, um personagem acomodado na poltrona de procurador-geral da República com o tônico providencial dos votos da banda bolsonarista do Senado.

Ao contrário do que alega a milícia parlamentar de Bolsonaro, Moraes e Gonet agiram para atenuar o derretimento político de Ramagem. A Polícia Federal havia solicitado o afastamento do ex-diretor-geral da Abin do exercício do mandato de deputado. Instado por Moraes a se manifestar, Gonet puxou o freio de mão.

Em ofício enviado ao Supremo, Gonet anotou: “Se os fatos atribuídos ao deputado Ramagem são de seriedade evidente, não se avultam, neste momento, acontecimentos graves e contemporâneos que ponham em risco as investigações respectivas, justificadores da providência de afastamento das funções parlamentares. Isso leva o Ministério Público a opinar em sentido contrário à adoção da providência aventada.”

Moraes deu ouvidos ao procurador-geral. Sem desmerecer a posição da Polícia Federal, condicionou a suspensão do mandato de Ramagem ao comportamento do deputado durante os desdobramentos do inquérito.

“Em que pese a gravidade das condutas do investigado, Alexandre Ramagem, bem analisada pela Polícia Federal, nesse momento da investigação não se vislumbra a atual necessidade e adequação de afastamento de suas funções”, escreveu Moraes. “Essa hipótese (de afastamento) poderá ser reanalisada se o investigado voltar a utilizar suas funções para interferir na produção probatória ou no curso das investigações”.

Os indícios de que Ramagem estruturou um esquema de espionagem ilegal na Abin de Bolsonaro saltam das páginas do processo como pulgas do dorso de um vira-lata. Segundo os relatórios da PF, a bisbilhotagem feita por meio do rastreamento do sinal de celular incluiu o próprio Moraes e o ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo. O objetivo era vincular os magistrados à facção criminosa do PCC.

Bisbilhotaram-se também os ex-deputados Rodrigo Maia a Joice Hasselman, desafetos notórios de Bolsonaro. Utilizou-se um drone para vigiar a residência do então governador petista do Ceará, Camilo Santana, hoje ministro da Educação de Lula. Segundo a PF, a Abin paralela foi acionada também para esboçar um perfil da promotora do Ministério Público do Rio de Janeiro responsável pelo caso Marielle Franco e a investigação do escândalo da “rachadinha” do senador Flávio Bolsonaro.

Alheio às evidências, o braço parlamentar de Bolsonaro pressiona Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, presidentes do Senado e da Câmara, a reagirem contra Alexandre de Moraes. Alegam que o ministro desrespeitou o Congresso ao enviar a PF aos gabinetes de Jordy e Ramagem na Câmara.

Até a noite de quarta-feira, a pressão ocorria nos bastidores. Nesta quinta, o movimento ganhou os refletores. Presidente do PL, Valdemar Costa Neto chegou a chamar Pacheco de “frouxo”. O chefe do Senado não se deu por achado. Com a velocidade de um raio, Pacheco respondeu a Valdemar por escrito. Realçou na resposta os propósitos monetários do dono do PL.

Pacheco bateu abaixo da linha da cintura: “Difícil manter algum tipo de diálogo com quem faz da política um exercício único para ampliar e obter ganhos com o fundo eleitoral e não é capaz de organizar minimamente a oposição para aprovar sequer a limitação de decisões monocráticas do STF. E ainda defende publicamente impeachment de ministro do Supremo para iludir seus adeptos, mas, nos bastidores, passa pano quando trata do tem

O bolsonarismo decidiu agir por conta própria. Planeja desencavar projetos anti-Supremo que tramitam no Congresso. Sem a adesão de Arthur Lira, que engavetou a emenda constitucional aprovada no Senado para inibir as decisões solitárias de ministros do Supremo, a investida do bolsonarismo tem fôlego curto.

Ainda assim, os aliados de Bolsonaro não abre mão do barulho. Cogitam potencializar o bumbo com uma obstrução legislativa às propostas de interesse do governo Lula. O ambiente no Congresso, que já era ruim, tornou-se radioativo.

Histórico de Bolsonaro sugere que centrão e aliados também foram espionados

Entre os milhares de espionados pelo serviço de arapongagem de Jair Bolsonaro estão magistrados, governadores, jornalistas, advogados, promotores, empresários e… parlamentares. O que vai acontecer quando deputados e senadores do centrão, que, de fato, mandam na coisa toda, descobrirem que não foram apenas rivais do ex-presidente os espionados?

Os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, o então governador Camilo Santana, o então presidente da Câmara Rodrigo Maia, os então deputados Joice Hasselman e David Miranda, o ex-deputado Jean Wyllys, o jornalista Glenn Greenwald, a promotora Simone Sibilio (que esteve à frente das investigações do assassinato de Marielle Franco), o diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística Carlos Dahmer, o então chefe de fiscalização do Ibama Hugo Loss estão entre os nomes que tiveram seus movimentos rastreados.

Mas isso é apenas a ponta do iceberg, com gente vista como adversária pela gestão passada. Se você acredita que a paranoia bolsonarista se limitou a rivais é porque estava dormindo durante as quatro temporadas dessa série de realismo fantástico que fomos obrigados a viver.

Jair passou seu governo sendo tutelado pelo Congresso Nacional, que impediu um impeachment, mas ficou com parte significativa do orçamento nacional e do poder. O sentimento sobre isso pode ser resumido no “foda-se” do então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Heleno, em um áudio captado em fevereiro de 2020 – período em que o software espião estava ativo.

“Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se”, disse ele na presença do então ministro da Economia, Paulo Guedes. Detalhe: a Abin está sob o guarda-chuva do GSI.

A questão não é se, mas quem do centrão foi espionado para ter subsídios ou garantias em negociações. O presidente da Câmara, Arthur Lira? Líderes de comissões? Presidentes de partidos? O que foi pego? Reuniões que não estavam na agenda? Encontros com doadores de campanha? Presença de nobres cristãos em locais de luxúria?

Após a operação que atingiu Ramagem, na quinta (25), a base bolsonarista, pressentindo cheiro de queimado, resolveu dobrar a aposta e exige uma reação institucional da Câmara e do Senado contra o STF.

Por outro lado, deputados governistas sabem do potencial explosivo da lista de espionados e querem que o Congresso peça para ela ser liberada pela Justiça. E o grupo Prerrogativas, de advogados e juristas, enviou uma petição ao STF pedindo a publicização dos nomes dos que foram alvos de espionagem ilegal.

Espionagem de políticos opositores pelo bolsonarismo já era a certeza antes mesmos das denúncias sobre o uso do software israelense First Mile virem a público no ano passado. Mas o que vai acontecer quando deputados, senadores e outros políticos de partidos do centrão descobrirem que foram vigiados pela gestão passada?

Pior: quando alguns bolsonaristas descobrirem que foram vigiados? Para um presidente que abandonou uma série de aliados na beira da estrada em nome da própria sobrevivência, isso não seria estranho.

Acordos eleitorais para outubro tendem a ser mantidos em nome do pragmatismo, mas ficará a desconfiança – até porque aliados de Bolsonaro podem ter baixado e levado as informações para casa a fim de serem usadas no futuro. E a desconfiança é péssima coisa para construir 2026.

Ao final, para que o escândalo seja contido, sacrifícios podem ser exigidos. E não será apenas o fim da candidatura de Alexandre Ramagem à Prefeitura do Rio de Janeiro.

O estado policial que Bolsonaro montou para sepultar a democracia

Mesmo sem provas, acuse os outros do que o acusam, ensinou o finado astrólogo e autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, o guru da família Bolsonaro.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) aprendeu a lição e, ontem, nas redes sociais, escreveu a propósito do escândalo de espionagem, outro marco do governo do seu pai: “Mais um capítulo da ditadura do Judiciário. Cabe ao Senado brecar esta perseguição e preservar as liberdades”.

O certo seria ele ter escrito de maneira neutra: “Mais um capítulo da ditadura que quiseram implantar no Brasil. Agora, cabe à Justiça punir os eventuais culpados”.

Seria pedir demais a Eduardo que apontasse o dedo para seu pai ou para seu colega de Câmara Alexandre Ramagem, que dirigiu a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e é o pivô do escândalo.

De resto, Carlos, o vereador, e Flávio, senador, seus irmãos, além de Jair Renan, irmão de criação, estão envolvidos no maior caso de espionagem da história do país desde o fim da ditadura militar de 64.

Foi Carlos o pai da ideia de montar uma Abin paralela para bisbilhotar a vida dos adversários da família Bolsonaro, segundo contou o ex-ministro Gustavo Bebianno, da Secretaria do Governo, no programa Roda Viva.

Como Bebianno, que já morreu, recusou a ideia e aconselhou Bolsonaro a não a adotar para não correr o risco de responder a um processo de impeachment, acabou demitido.

A Abin paralela produziu falsas provas para livrar Flávio de ser condenado no caso da rachadinha e ajudou Jair Renan a escapar da acusação de ter feito tráfico de influência dentro do governo.

No mais, Ramagem tornou-se um fiel serviçal da notória família de gângsteres desde que o patriarca foi esfaqueado em Juiz de Fora, em setembro de 2018. Por isso, deve ser defendido a qualquer preço, pelo menos por enquanto.

Imagine se Ramagem, que Bolsonaro quis nomear diretor-geral da Polícia Federal, mas não conseguiu, resolvesse delatar como fez o coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordem do ex-presidente…

Os Bolsonaro saíram em socorro de Mauro Cid até saberem que ele havia delatado, e em socorro do ex-ministro da Justiça Anderson Torres até saberem que ele guardava uma minuta do golpe.

É assim que agem: ao primeiro sinal de que alguém muito próximo da família contraria seus desejos ou pode causar-lhe embaraços, eles abandonam a pessoa para não se contaminar. Contaminados já estão.

O roubo de joias presenteadas ao Estado brasileiro por estados estrangeiros é bobagem se comparado com o escândalo da espionagem que veio à tona. É bobagem o certificado falso de vacina em nome de Bolsonaro.

À primeira vista, chega mesmo a ser bobagem o motivo pelo qual Bolsonaro ficou inelegível por oito anos – abuso de poder político e econômico ao reunir-se com embaixadores no Palácio do Planalto para atacar o sistema eleitoral.

Acumulam-se evidências e provas de que ele quis dar um golpe mais de uma vez, e por isso deverá ser condenado um dia. E, agora, que exorbitou do poder para montar um estado policial clandestino.

A Abin paralela fazia parte do estado policial – suspeita-se que tenha espionado cerca de 30 mil pessoas, entre parlamentares, governadores, ministros do Supremo Tribunal Federal, advogados e jornalistas.

Delegados da Polícia Federal também fizeram parte, assim como a Polícia Rodoviária Federal, acionada para dificultar a votação de eleitores de Lula onde ele derrotara Bolsonaro com folga no primeiro turno da eleição de 2022.

Bolsonaro não chegou ao poder para brincar, e uma vez lá, não queria sair. Foi o que ele sugeriu na reunião ministerial de 22 de abril de 202o que culminou com a queda de Sergio Moro, então ministro da Justiça: “Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”.

Sobrevivemos a um estado policial cuja dimensão ainda estamos longe de conhecer. Mas quem o concebeu e patrocinou para sepultar a democracia não deve sobreviver. Seu lugar é na cadeia. Sem comiseração. Sem anistia.


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