04/05/2024 - Edição 540

Especial

ANTISSEMITISMO E ISLAMOFOBIA

É preciso condenar o terrorismo e o colonialismo, sem confundi-los com o preconceito a palestinos e judeus

Publicado em 10/11/2023 9:24 - Victor Barone (Semana On), Marcos Lisboa, Idelber Avelar e Leonardo Sakamoto (UOL), Iuri Pitta (CNN), Gabriel Croquer (G1), Folha de SP, Leo Rodrigues (Agência Brasil) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Há apenas uma forma de cessar a violência que acomete as populações civis de palestinos, em Gaza e na Cisjordânia, e de israelenses, em Israel: o reconhecimento do Estado de Israel por parte da totalidade dos países que o cercam e a criação de um Estado Palestino autônomo e soberano.

Qualquer outro exercício retórico, de uma parte ou de outra, serve apenas para perpetuar a violência na região e, de forma mais aterrorizante, reforçar o antissemitismo e a islamofobia mundo afora.

É preciso que ambos os lados reconheçam a existência do outro, e aceitem uma convivência, senão amistosa, ao menos civilizada.

Nada disso será possível, no entanto, sem reconhecer os erros do passado (e do presente), para que eles não se repitam no futuro.

É preciso olhar a história sem vendas.

Uma tragédia que se perpetua

O ataque do Hamas contra civis israelenses e a reação de Israel bombardeando Gaza são os desdobramentos mais recentes de uma tragédia iniciada há mais de um século.

O recrudescimento do antissemitismo e as perseguições contra judeus, acirradas em toda a Europa no fim do século 19, foram preparando o terreno para o genocídio dos anos 1940.

A Palestina da época era habitada principalmente por árabes e havia sido dominada pelo Império Otomano durante quatro séculos. Havia discriminação, mas havia relativa paz entre os principais grupos. Muçulmanos, judeus e cristãos conviviam havia séculos, compartilhando cidades.

A vitória árabe sobre os bizantinos, no século 7, foi saudada por cristãos, judeus e samaritanos da região. Árabes e judeus lutaram juntos contra as cruzadas cristãs nos séculos 12 e 13.

A soberania otomana (1517-1918) não alterou significativamente o regime fundiário na Palestina histórica, caracterizado por uma relação fluida com a terra que preservava considerável autonomia das aldeias e a coabitação de diferentes religiões.

Yusuf ibn Ayyub, conhecido como Saladino, líder da resistência árabe no século 12, guerreou, ganhou e perdeu batalhas, e negociou acordos para o reestabelecimento da autonomia da região, sendo misericordioso com os derrotados.

Em 1993, acusado de estar celebrando com os israelenses, em Oslo, um tratado que concedia pouco aos palestinos e o instalava na posição de cão de guarda de Israel, o líder Yasser Arafat insistia que ele não celebraria qualquer paz, mas “a paz de Saladino”.

A referência era quase ilegível para os ocidentais, mas os palestinos entendiam bem a amarga ironia da situação de Arafat, bem mais precária que a de Saladino.

A perseguição aos judeus acelerou a migração para a Palestina, que introduziu um regime de propriedade de terras alheio à região. Mesmo assim, passaram-se mais de três décadas de imigração sionista até que se vissem os primeiros registros de preocupação das lideranças palestinas, que só ocorreram na década de 1910.

Durante a Primeira Guerra Mundial, os britânicos fizeram sua promessa ao movimento sionista, a declaração de Balfour, na que afirmavam que o governo de Sua Majestade “vê favoravelmente” o estabelecimento de “um lar nacional” para o povo judeu na Palestina, “ficando claramente entendido que nada será feito” para prejudicar os direitos dos povos não judeus lá existentes.

Simultaneamente, a Grã-Bretanha prometeu aos árabes, em troca do apoio na guerra contra os otomanos, o estabelecimento de um Estado árabe soberano nos territórios em que se falava a língua. Os árabes cumpriram sua palavra. Os britânicos, presos entre duas promessas contraditórias, não.

Após a vitória na guerra, os ingleses, que contaram com o apoio dos árabes, esqueceram o acordo com a população local.

Em 1920, os árabes representavam 80% da população da Palestina, com perto de 10% cristã. Pelo censo de 1931, com a intensa migração na década anterior, os judeus passaram a ser 16,9% dos habitantes da região.

O desastre que resultou na Segunda Guerra Mundial e no genocídio de judeus, em grande parte rejeitados pelos países da Europa, EUA e outros, como o Brasil, insuflou a imigração para a Palestina.

Os territórios ocupados por judeus europeus, contudo, não estavam vazios. Famílias de palestinos moravam lá. Foram expulsas no processo. Muitas, exterminadas.

A história das populações palestinas expulsas de seus vilarejos por meio de explosivos derrubados do alto de elevações, ou atacadas por grupos paramilitares como o Haganah e o Irgun, precursores do Exército de Israel, é pouco conhecida e deve ser contada.

O historiador israelense Ilan Pappé documentou o processo de expulsão de centenas de milhares de palestinos de suas casas, que ocorreu na segunda metade da década de 1940.

Segundo o plano de partilha das Nações Unidas apresentado em novembro de 1947, 818 mil palestinos hospedariam 10 mil judeus no Estado árabe. No Estado judeu, 438 mil palestinos viveriam sob soberania sionista entre 499 mil judeus.

A realidade internacional que emerge com a vitória israelense na guerra de 1948 foi rompida a partir de 1967, quando Israel venceu outra guerra e passou a ocupar militarmente territórios que não são legalmente seus, segundo a própria partilha que lhe deu origem.

Esse ano inaugura uma realidade em que os palestinos vivem em “territórios ocupados”, uma realidade dramática que muitos na Europa e nas Américas não parecem compreender.

A ida para muitos trabalhos precisa de autorização, tornando-os por vezes inviáveis, assim como a circulação de ambulâncias para atender aos necessitados.

O documentário israelense “The Gatekeepers”, de Dror Moreh, serve como introdução à devastação. São entrevistados ex-oficiais do Shin Bet, o serviço de segurança de Israel (semelhante à CIA). Sabemos o nome dos seus líderes, mas não os dos demais membros.

O documentário não celebra os vitoriosos. O tom dos depoimentos é de lamentação, culpada e sofrida, de quem, por fim, ganhou a guerra e semeou opressão.

As cenas de ocupação da Palestina observadas do ponto de vista de quem lá tem amigos e familiares são dolorosas: os ocupados, sentados sob a mira de armas de soldados, cercados em suas moradias, estão muitas vezes separados de seus filhos ou avós. Têm a sua vida picotada por checkpoints e vivem cercados de uma crescente população de colonos armados e acompanhados pelo Exército de ocupação.

Após a vitória de 1973, a primeira-ministra de Israel, Golda Meir, do partido Trabalhista, de esquerda, estava mais consumida por problemas locais do que atenta a resolver os dilemas da ocupação e do povo cerceado. As tentativas de acordo entre os líderes do Shin Bet e os palestinos foram ignoradas.

São 56 anos de territórios ocupados, com estradas segregadas, restrições à mobilidade e à vida, com cidades sitiadas, muros e arames farpados.

Devastadoramente, Israel e seus aliados, nas últimas décadas, optaram pela saída dos vencedores adotada após a Primeira Guerra Mundial: ocupar o território, oprimir os derrotados, por vezes expulsando-os das suas terras, sem possibilidade de retorno.

Outro caminho poderia ser seguido. Após a Segunda Guerra Mundial, os aliados, vencedores, acolheram Alemanha e Itália, semeando a paz. Não foi fácil superar a dor e o ressentimento, mas em poucos anos havia o começo da União Europeia e dos benefícios da vida em comunhão.

Para que isso possa se realizar, é essencial que Israel cesse as agressões à população civil palestina e tome medidas para pôr fim à ocupação. Os reféns, prisioneiros do Hamas, devem ser libertados. Existem demasiadas vítimas em Gaza, em Israel e na Cisjordânia.

O antissemitismo cresce

Casos de antissemitismo no Brasil cresceram mais de dez vezes desde o dia 7 de outubro, segundo relatório da Confederação Israelita do Brasil (Conib).

A entidade relata que no mês passado a organização detectou 467 casos de mensagens em redes sociais ou eventos públicos ofensivos ao povo judeu, ante 44 ocorridos no mesmo período de 2022, um aumento de 961%.

Todas essas postagens ou declarações, na avaliação de advogados ligados à Conib, caracterizam crime de preconceito, um delito inafiançável e imprescritível (não há prazo legal para que os autores sejam punidos pela Justiça).

Em outubro, foram recebidas 15 denúncias por dia, uma média muito superior à registrada um ano atrás, quando não se chegava a dois casos diários.

Por isso, uma série de notícias-crime têm sido apresentadas aos Ministérios Públicos Federal e Estaduais e delegacias especializadas em crimes raciais e de intolerância em todo o Brasil.

Desde figuras públicas até usuários de redes sociais que fazem comentários em postagens têm sido alvo das peças jurídicas.

A advogada Andrea Vainer, diretora da Conib, explica que sempre houve atuação voluntária de profissionais do Direito na detecção de manifestações preconceituosas contra a comunidade judaica e que esses conteúdos não se enquadram em críticas legítimas, por exemplo, a um governo ou à forma como são conduzidas campanhas militares.

São mais de 40 advogados atuando no trabalho de redigir e apresentar as notícias-crime a partir da identificação do que pode ser caracterizado como crime de preconceito.

“Estamos tratando aqui de pessoas que fazem analogia ao nazismo e a Adolf Hitler, ou que atacam de forma preconceituosa e generalizada o povo judeu”, diz a advogada, que aponta um aumento “assustador” desse tipo de manifestação desde o ataque terrorista ocorrido em 7 de outubro e a reação de Israel contra o Hamas.

“Na semana antes do conflito, não registramos nenhuma denúncia, mas logo na primeira semana já houve mais do que o dobro de comentários nas redes e mensagens antissemitas que chegaram ao nosso conhecimento, seja por canais oficiais, seja por meios informais”, diz Andrea.

Além da atuação dos advogados, integrantes da comunidade judaica têm compilado casos de discursos de ódio e intolerância contra judeus para embasar as denúncias jurídicas.

Virna Wulkan é uma das voluntárias que atua no monitoramento de redes sociais e outros conteúdos públicos nesse sentido, inclusive pichações e vandalismo. Como ela, são quase 750 pessoas em todo o país.

“A base legal para as ações é a mesma legislação que pune crimes de racismo e foi endurecida em janeiro deste ano”, explica Virna, em referência ao texto sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

“É importante que as pessoas saibam diferenciar políticas de um Estado ou de um governo de um povo. Há judeus que são críticos às políticas do Estado de Israel, não só não é justo como é criminoso fazer comentários e ataques à comunidade como um todo.”

O crescimento do antissemitismo e de conteúdos ofensivos foi registrado em diversos países do mundo, a exemplo dos casos documentados pela Conib e que podem se tornar ações criminais no Brasil.

O coletivo Judias e Judeus pela Democracia São Paulo elaborou um manifesto em que denuncia “o massacre em curso” na Faixa de Gaza, “os ataques hediondos” do Hamas e pedem um cessar-fogo da guerra entre Israel e o grupo terrorista.

A entidade pede ainda a liberação dos reféns do Hamas, sequestrados durante o ataque no último dia 7, e alerta para o crescimento dos ataques e discursos contra os judeus desde o início do conflito no Oriente Médio.

“Somos judias e judeus brasileiros. Nos juntamos às vozes que se levantam contra o massacre em curso em Gaza, a favor do cessar-fogo, pela libertação imediata e incondicional dos reféns, e denunciam os ataques hediondos do Hamas”, diz o coletivo na nota.

Eles seguem: “Estamos também profundamente afetados com a crescente onda de antissemitismo, que aproveita do trágico momento para ativar antigos estereótipos racistas, aumentando a violência e enfraquecendo as vozes que lutam pela paz”.

O coletivo também se posiciona a favor da criação de dois Estados. “Defendemos veementemente o direito de palestinos e israelenses a terem um território onde possam viver em paz, de forma soberana e sob regimes verdadeiramente democráticos. Nos posicionamos pelo fim das ocupações e dos assentamentos. Repudiamos fundamentalismos, teocracias, regimes autoritários e de terror”, finaliza o texto.

O manifesto foi elaborado coletivamente em uma reunião com mais de 40 integrantes do grupo, entre eles Raquel Rolnik, Lia Vainer Schucman, Fabio Tofic Simantob, Edith Derdyk, Breno Benedykt e Fe Maidel.

No mundo

Uma declaração divulgada no último dia 6 por autoridades internacionais alertou para o aumento do antissemitismo no mundo.

Em Nova York, o Antisemitism Cyber Security Monitoring System havia detectado um aumento de 1200% das postagens preconceituosas contra judeus na primeira semana após o início dos conflitos, percentual próximo do percebido no Brasil.

Escolas judaicas estão fechadas por não poder garantir segurança aos alunos e encontros religiosos só podem acontecer sob proteção de guardas armados, diz o texto assinado por representantes de 22 países e de organizações internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA).

A lista inclui embaixadores e ministros de países como os Estados Unidos, Alemanha, Argentina, Reino Unido, França, Espanha e Itália.

Também assinam David Fernandez Puyana, embaixador e delegado da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência) e Katharina Von Schnurbein, coordenadora da Comissão Europeia para combate ao antissemitismo.

O texto ainda afirma que sinagogas e outros locais judaicos foram atacados no período e que o antissemitismo na internet teve um aumento sem precedentes.

“Em algumas cidades, os judeus estão a ser assediados e abordados nas ruas. Cartazes dos reféns cativos são desfigurados e rasgados”.

“A história nos ensinou que em momentos como este devemos falar e não podemos ser indiferentes”, completam as autoridades no comunicado.

A declaração também pede

– proteção às comunidades judaicas e fiscalização de atos antissemitas em universidades;

– apoio de federações esportivas, outras comunidades religiosas e do setor cultural para o combate ao antissemitismo;

– atuação das redes sociais para frear o discurso de ódio e a desinformação antissemitas plataformas virtuais.

Mas, é preciso cuidado

Assim como o fundamentalismo religioso islâmico se apossou de parte da luta dos palestinos por uma identidade nacional, o sionismo aprisionou parte da identidade judaica sob a égide do colonialismo, e age mundialmente para impedir críticas que, longe de terem caráter antissemita, combatem, isso sim, uma ideologia política baseada na segregação e no racismo.

Resumindo: a crítica ao sionismo não deve ser confundida com antissemitismo.

“E segue o massacre de palestinos a pretexto de exterminar o Hamas”, escreveu no último dia 23 de outubro, em suas redes sociais, o jornalista Ricardo Noblat. A postagem lhe rendeu, nos comentários, diversas acusações de antissemitismo. Não é um episódio isolado.

Acusações desse tipo geraram inclusive um conflito diplomático. No dia 9 de outubro, ao anunciar o cerco à Faixa de Gaza, o ministro da Defesa israelense Yoav Galant afirmou: “Não haverá eletricidade, nem alimentos, nem combustível. Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”. Nas redes sociais, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, criticou a fala e a equiparou aos discursos nazistas. Israel o acusou de antissemitismo e, desde então, as relações entre os dois países estão estremecidas.

Um levantamento realizado pela Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas (FGV) atesta a mobilização dos brasileiros em torno do tema antissemitismo. Foi identificado um aumento significativo da discussão sobre o assunto desde o início do conflito. Na plataforma X (antigo Twitter), entre 7 e 24 de outubro, houve 231 mil menções aos termos antissemitismo e antissemita (inclusive nas grafias anti-semitismo e anti-semita).

“Observamos um aumento constante nesse debate. Antes do início do conflito em 7 de outubro, a média diária de menções sobre antissemitismo ficava entre 200 e 300. Após o ataque do Hamas, ela sobe. Não ficou abaixo de 8 mil nem um dia. As menções sobre antissemitismo entraram no debate público brasileiro e, mesmo com oscilações, se mantêm em um patamar constante”, disse o sociólogo e pesquisador da FGV, Victor Piaia.

Mas o que é antissemitismo? Criticar Israel é antissemitismo? Levantamos estas questões com quatro pesquisadores que estudam o conflito histórico que envolve Israel e Palestina. Há um consenso de que críticas Israel e sobretudo à política do governo israelense não podem ser consideradas manifestações de antissemitismo à priori.

“Críticas ao Estado de Israel e às ações de Israel no território da Palestina como as feitas pelo Gustavo Petro não são antissemitas. Há críticas que contém elementos de antissemitismo. Mas não é o caso da maioria das manifestações que temos observado nos últimos dias. Mesmo a comparação com as práticas nazistas, dizer que a Faixa de Gaza é um campo de concentração ou um gueto, que está se fazendo um massacre, são críticas cabíveis ao Estado de Israel”, diz Bruno Huberman, pesquisador e professor do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Natalia Calfat, cientista política e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), avalia que os principais questionamentos feitos a Israel no presente debate surgem em decorrência do caráter expansionista do sionismo e da política empreendida sob o governo liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Ela observa que críticas aos assentamentos israelenses são ressoadas inclusive por judeus.

“O que existe hoje é uma tentativa de enquadramento de toda crítica ao sionismo enquanto antissemitismo. É uma manobra diversionista que desloca a discussão, deslegitima as críticas e viola os princípios do debate democrático. Isso não significa dizer que não haja antissemitismo nem que não haja críticas a Israel acompanhadas de antissemitismo. Elas certamente existem, mas nem sempre é o caso e é preciso que haja clareza na diferenciação entre antissionismo e antissemitismo”.

A socióloga Sabrina Fernandes, pesquisadora da Universidade de Guadalajara (no México), observa que o antissemitismo aparece no discurso de pessoas que confundem Israel com o povo judeu no geral. Ela avalia que as críticas ao governo e ao Estado de Israel são produzidas a partir de variadas orientações ideológicas e avaliações críticas.

“Isso significa que enquanto uma maioria tem a capacidade de criticar políticas específicas do governo de Netanyahu, ou criticar a política de Estado colonial que vai muito além de um governo ou outro, sem fazer referências negativas ou discriminatórias ao povo judeu, toda vez que Israel recebe exposição negativa, aparecem sim incidentes de falas e ataques antissemitas”, diz ela.

O historiador e antropólogo Michel Gherman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que o antissemitismo surgiu no final do século 19 e se baseia na ideia de que os judeus formam uma corporação, um grupo fechado poderoso, com capacidade para decidir o destino do mundo através de um projeto secreto. “É uma perspectiva conspiracionista que aparece na crise da modernidade. E esse discurso adota a premissa de que o judeu é uma pessoa que não é daqui, ele é de fora. Você vai ter desenvolvimentos dessa perspectiva. Uns vão falar em expulsão, outros em perseguição e em extermínio como no caso dos nazistas”.

Gherman avalia que as críticas a Israel, por mais duras que sejam, não são necessariamente antissemitas. Ainda assim, ele é uma voz divergente entre os pesquisadores ouvidos nesta reportage, pois vê o antissemitismo bastante presente no debate atual.

“Críticas muito duras podem ser até ofensivas, não legítimas, perigosas. Mas pra gente chamar de antissemita, a gente precisa entender se elas acionam essa ideia conspiracionista de que há um projeto corporativo judaico de dominação do mundo. E isso tem aparecido nas redes sociais, vindo inclusive de analistas do conflito que dizem que há um plano de Israel para exterminar o povo palestino e controlar aquela região. Mesmo que eles não falem de judeus e sim de Israel, há uma mesma gramática do antissemitismo. Está presente uma perspectiva de conspiração e de domínio”, avalia.

Ele concorda que as acusações de antissemitismo têm sido usadas de forma indiscriminada, o que acaba deixando o conceito em crise. Mas o pesquisador alerta que o crescimento do antissemitismo no mundo a partir de 2010 tem sido apontado em diferentes estudos. No Brasil, embora não existam tantos casos, também tem sido notado um aumento recente.

Segundo um levantamento do Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil, o avanço das ocorrências coincide com a maior atividade de grupos neonazistas, que se sentiram fortalecidos com discursos adotados durante o governo anterior, liderado por Jair Bolsonaro. Entre 2019 e 2022, foram 55 casos de antissemitismo e 114 de neonazismo. Ao longo desse período, o número de episódios de um ano sempre foi superior ao do ano anterior. A maior parte dos casos (52%) envolveu autores extremistas e bolsonaristas.

Tecnologia europeia

De acordo com Bruno Huberman, o antissemitismo nunca fundamentou uma política de Estado no Brasil e nunca foi uma prática largamente disseminada no país. “O racismo opera em todo o mundo, embora de forma particular em cada território. No Brasil, negros e indígenas são subjugados. Eu, por exemplo, sou judeu. Mas não sou subjugado ou perseguido no Brasil por ser judeu. Aqui, o antissemitismo nunca foi algo estrutural. Na Europa foi estrutural e a gente pode ver até que, em algum sentido, ainda é”.

Huberman observa que o antissemitismo, como as demais formas racismo, serve para subjugar um grupo étnico-racial a partir de algumas identidades particulares. Mas chama a atenção que, originalmente, ele foi direcionado aos judeus em países europeus. “O racismo é uma tecnologia de dominação criada na Europa. A gente não vê, por exemplo, antissemitismo contra os judeus que viviam na África ou na Ásia. Então tem a ver com as formas de dominação e de exploração que os europeus implementaram no mundo e estão relacionadas com acumulação de riqueza e com as situações coloniais”.

Na Europa, os judeus passaram a ser responsabilizados por todos os males da sociedade na primeira metade do século 20. “Na França, eles eram taxados de traidores da nação. Em alguns locais, como na Alemanha, o antissemitismo fundamenta uma política do Estado. E os judeus começaram a ser sistematicamente exterminados”, explica Huberman.

Crítica ao sionismo

O movimento sionista surgiu como uma forma de resolver a questão do antissemitismo através da formação de um Estado-Nação exclusivamente dos judeus. A proposta acaba ganhando força após o fim da Segunda Guerra Mundial.

“Havia divergência entre os judeus. Essa não foi a única proposta para lidar com o antissemitismo. Mas esse projeto sionista avançou através da colonização da Palestina por várias décadas até a criação do Estado de Israel em 1948. Então o Estado de Israel representa esse projeto nacionalista de parcela dos judeus. Quando se critica esse projeto, você não está sendo antissemita”, diz Bruno Huberman.

Sabrina Fernandes observa que, historicamente, o sionismo teve várias vertentes, mas a que domina levou à formação de Israel como um estado étnico-nacional, voltado para um povo específico. “Habitantes não-judeus não gozam das mesmas liberdades e proteções”, afirma. Ela avalia que os palestinos e outros povos que vivem em áreas ocupadas por Israel – como a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e as Colinas do Golã – sofrem práticas discriminatórias. “Ocorre também no próprio território oficial de Israel onde moram palestinos e outros não-judeus que são tratados como cidadãos de segunda categoria”.

De acordo com a socióloga, a propaganda sionista busca apresentar Israel como a única possibilidade de vida segura para os judeus. “Existe uma vasta discussão política e teórica sobre a necessidade de delinear muito bem as diferenças entre antissemitismo e antissionismo e a realidade é que a maioria dos antissionistas, incluindo judeus antissionistas, fazem um esforço para explicar as diferenças. O problema é que o esforço sionista de alegar que são a mesma coisa também é contínuo”, diz.

Gherman não vê as fronteiras entre o antissionismo e o antissemitismo tão definidas. Para ele, eventualmente elas se misturam. “A ideia de antissionismo pode ter a ver com a percepção de que a solução do Estado Nacional judaico na Palestina não foi satisfatória ou produziu, por exemplo, exclusão de parte da população local. Antissionismo também pode ser a ideia de que os judeus não são dignos de um Estado ali no Oriente Médio. Posso discordar disso tudo e discordo em parte, mas nada disso é antissemitismo”, pontua.

“Porém, o antissionismo baseado na ideia de que Israel é uma corporação, que domina o mundo, que degenera a região, que degenera o mundo, que convence o mundo através da propaganda, que tem influência em Hollywood, isso tudo é antissemitismo. Dizer que os judeus inventaram, em conjunto com as potências mundiais, a ideia de nacionalidade judaica para dominar aquela região também mobiliza a gramática antissemita”, acrescenta o historiador.

Para Bruno Huberman, essa visão conspiracionista não é predominante nas críticas que estão sendo feitas. “Obviamente vão ter algumas pessoas que vão confundir o judaísmo com o Estado de Israel e vão dizer, por exemplo, que os israelenses dominam o mundo pelos bastidores. E dessa forma mobiliza formas de racismo tradicionalmente usadas contra os judeus. Mas, muitas vezes, o que se busca com acusações de antissemitismo é misturar essas coisas como uma forma de silenciamento, de bloquear o debate público. E além disso, quando você fala que toda crítica é antissemitismo há o risco de banalizar o tema. Antissemitismo é uma coisa perigosa, assim como a violência praticada por Israel também é perigosa”.

Islamofobia

Se o judeu pode ser alvo de antissemitismo, há consenso entre os pesquisadores que palestinos, por sua vez, têm sido alvos de islamofobia. A prática muitas vezes está presente de forma sutil e implícita, com frases que reforçam estereótipos preconceituosos.

Em novembro passado, o Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos (Gracias), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, publicou o primeiro Relatório de Islamofobia no Brasil.

A pesquisa mostrou que, entre os homens muçulmanos revertidos (O abraçar a fé islâmica é considerado como reversão, ou seja, um retorno à fé primeva), 22,3% relataram dificuldades na relação com a família após a reversão, e 30% em relação aos amigos. Nos relatos de mulheres, os números são ainda maiores: 41,9% encontraram dificuldades na relação com os familiares, e 38% com os amigos.

A violência verbal é apontada como mais frequente tanto pelos homens (82%) quanto pelas mulheres (92%), e a rua é o principal local de incidência de violência: 54,5% entre os homens e 72% entre as mulheres. Os ambientes de trabalho e estudo também são apontados com alta incidência de discriminação: 46,4% dos homens relatam sofrer violências no trabalho e 42,7% na escola ou universidade; enquanto 39,9% das mulheres sofrem violências no trabalho e 31,8% no ambiente de estudo.

Em uma escala de 1 a 5, onde o número 1 significa concordar muito, e o número 5 discordar muito, a maioria dos entrevistados concorda que o Islã é representado negativamente na mídia brasileira (58,7% dos homens e 78,9% das mulheres responderam 1 ou 2, concordando totalmente ou parcialmente com a afirmação).

Outro aspecto observado foi a islamofobia on-line, ou cyberislamofobia, que, no entendimento dos pesquisadores, demonstra que “espaço virtual é uma das novas frentes de ação dos islamofóbicos”. Mais da metade dos entrevistados afirmam já ter sido alvo de preconceito nas redes sociais por serem muçulmanos, com números próximos entre homens (55,5%) e mulheres (54,3%).

O debate em torno da questão, no entanto, não tem ganhado a pauta pública no Brasil. Enquanto houve 231 mil menções ao antissemitismo entre 7 e 24 de outubro, o levantamento realizado pela FGV contabilizou apenas 9,9 mil menções aos termos islamofobia e islamofóbico. Houve um pico de 1,6 mil menções no dia 16 de outubro, dia em que ocorreu o esfaqueamento de uma criança muçulmana em Chicago, nos Estados Unidos.

“As menções à islamofobia, além de serem bem menos numerosas na comparação com as menções ao antissemitismo, não acontecem de forma constante. Você vê alguns picos, mas não atingem a mesma capilaridade”, observa Victor Piaia.

Ele aponta algumas dificuldades para o avanço desse debate no ambiente virtual. “A dinâmica das redes sociais não favorece argumentos matizados. Os argumentos com menos nuances geram maior engajamento e mobilização. Aqueles com mais nuance tendem a perder espaço para um argumento mais acusatório, mais simplificado, mais direto. O argumento da islamofobia requer camadas. E é interessante notar também que críticas a Israel estão sendo realizadas a partir de outros termos: genocídio, extermínio. A crítica poderia se dar a partir do termo islamofobia, mas a gente observa que ela ocorre por outros termos”.

De acordo com Sabrina Fernandes, a islamofobia pode ser notada em discursos que confundem o Islã com grupos fundamentalistas, dentre eles o Hamas. Ela vê um apagamento do que é a relação entre o povo e a religião na Palestina e uma estereotipização que desconsidera que há também cristãos e ateus entre os palestinos, ainda que sejam minoritários.

“O Islã e o Judaísmo podem ser instrumentalizados para projetos políticos extremos e discriminadores. O conflito entre Israel e os palestinos não é entre as religiões. Se trata de um conflito colonial e é por isso que antissionistas precisam ter um compromisso real em combater tanto a islamofobia, quanto o antissemitismo”, afirma.

Segundo Bruno Huberman, a islamofobia tem se manifestado principalmente na ideia de que todos os palestinos são terroristas e de que o Hamas é essencialmente terrorista. No mundo, ele observa que os povos islâmicos têm sido vítimas de políticas discriminatórias e anti-imigratórias. São vistos como violentos e bárbaros. Além disso, são estereotipados, apagando as diferenças culturais entre eles.

“As pessoas não sabem, por exemplo, que iranianos, afegãos e paquistaneses não são árabes. De uma forma geral, o racismo opera reduzindo todos esses povos a uma mesma coisa. Na Europa, a islamofobia é considerada por alguns estudiosos como a forma de perpetuação do antissemitismo europeu. À medida que a população judaica se reduziu no continente por causa do holocausto, esse racismo foi se dirigindo aos muçulmanos, de uma forma muito parecida. Eles são culpados por tudo o que é ruim que acontece nas cidades europeias. São discursos que se assemelham”.

Natalia Calfat pondera ser possível condenar as ações de grupos extremistas, seus princípios e suas táticas sem ser islamofóbico. “O Hamas é criticado por muitos membros inclusive da comunidade muçulmana. Ainda assim, há quem o critique carregando elementos islamofóbicos, o que em nada contribui para o debate e acirra a intransigência religiosa”, avalia.

Violência islamofóbica sai à rua em SP com conflito entre Israel e Hamas

Um exemplo de como a islamofobia eclode diante dos recentes acontecimentos no oriente Médio ocorreu em São Paulo. Uma família muçulmana de refugiados do Afeganistão, que veio escapar dos fundamentalistas do Talibã, foi xingada e agredida por outro tipo de fundamentalismo nas ruas da cidade. O que nos lembra que o Brasil tem antissemitismo, mas também islamofobia.

O caso foi revelado por Flávia Mantovani, na Folha de S.Paulo, e ocorreu no bairro do Bom Retiro – conhecido pela convivência de vários grupos de imigrantes.

Um boletim de ocorrência registrado na semana passada aponta que o agressor estava com as vestes de um judeu ortodoxo e disse a uma afegã, que havia ido pegar os filhos na escola, que ela “era do Hamas e estava matando as crianças do povo dele”. A mulher usava um hijab, lenço tradicional na cabeça.

O seu marido viu a cena e correu para proteger as crianças, quando levou socos e chutes do agressor, que gritava frases com “Hamas”, “muçulmanos” e “terroristas”. O ataque foi testemunhado por outras pessoas, que pararam para ajudar a família.

Para além da imbecilidade geográfica de acreditar que todo muçulmano é árabe (o que não é o caso dos povos do Afeganistão), há outra muito pior, que é a crença de que todo aquele que professa a fé no Islã é terrorista ou simpatizante de atentados.

Essa generalização estúpida tem o mesmo DNA das falácias usadas frequentemente nas redes sociais para justificar o bombardeio e o cerco do Exército israelense sobre Gaza, como se aquele povo fosse cúmplice e não vítima do Hamas.

Claro que o homem em questão não representa a comunidade judaica em São Paulo, cidade que tem longa tradição de paz e convivência entre judeus e muçulmanos.

Mas tem sido difícil passar imune à radicalização que veio com o último capítulo do conflito. Não raro, críticas à retaliação do governo de Tel Aviv vêm sendo encaradas como antissemitismo por algumas pessoas, mesmo quando elas vêm de analistas judeus. Nem preciso dizer que, em meio a essa radicalização, há também quem defenda o Hamas.

O ataque terrorista do grupo, em 7 de outubro, matou mais de 1,4 mil em Israel. E, em resposta, o governo de Tel Aviv comete um crime contra a humanidade, matando quase 11 mil na Faixa de Gaza, por enquanto.

Quem se preocupa com a dignidade humana é capaz de condenar, simultaneamente, o terrorismo do Hamas e os crimes de guerra de Israel.

Da mesma forma, repudiar o ataque à família afegã em São Paulo, que foi agredida por professar a fé “errada”, evitando que o conflito no Oriente Médio respingue por aqui, tal como repudiamos os atos de neonazistas de extrema direita que ameaçam judeus no Brasil.

Tempos de guerra não criam imbecis, apenas tornam o ambiente confortável para que eles se sintam à vontade.


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