18/05/2024 - Edição 540

Especial

AGRO E OGRO

Fundamental para a economia do país, setor precisa brecar fatia predatória e reacionária

Publicado em 16/06/2023 2:43 - UOL, Kennedy Alencar e Leonardo Sakamoto (UOL), RBA, Daniela Penha, Naira Hofmeister, Hyury Potter e Diego Junqueira (Repórter Brasil) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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O presidente Lula (PT) afirmou ontem (15) que o problema do agronegócio com governos petistas é ideológico, mas que sua preocupação é com o crescimento da capacidade produtiva do Brasil. Segundo ele, o governo do PT é o que mais disponibilizou recursos para o agronegócio na história.

“Tenho noção do que nós fizemos e que o problema deles com a gente é ideológico. O que está em jogo é recuperar e aumentar a capacidade produtiva do país sem desmatamento ou queimada na Amazônia”, reforçou. Ele também diz que o governo vai fazer um “bom Plano Safra” para que a agricultura continue produzindo cada vez mais, aumentando as exportações.

“Quando Lula parte para uma posição de confronto, acaba reativando uma briga política que não lhe traz ganho. O melhor para Lula é obter aliados dentro desse setor. Faltou um ajuste no discurso do presidente. Lula está perdendo oportunidades de pacificar o país. Ele precisa modular melhor e não demonizar o agronegócio. Ele não ganha nada com isso”, analisou o jornalista Kennedy Alencar, do UOL

Kennedy considerou que Lula desperdiçou a chance de distinguir as diversas modalidades de agronegócio. Para o colunista, o presidente dificulta seu relacionamento com um dos principais motores da economia nacional ao generalizá-lo e, por isso, precisa ser mais cuidadoso quando se referir a um tema tão sensível.

“Há um agronegócio muito predatório, reacionário, identificado com o bolsonarismo. Há também um setor do agro que já entendeu que respeitar o meio ambiente traz mais valor agregado aos produtos que exportam. Como presidente, Lula tem que ter um comportamento mais cauteloso ao se referir ao setor como um todo e não pode generalizá-lo. Ele perdeu uma oportunidade de fazer uma distinção”, afirmou o jornalista.

Agronegócio e Ogronegócio

O PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil registrou crescimento de 1,9% no primeiro trimestre de 2023, na comparação com o último trimestre de 2022, informou o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no início do mês. O resultado foi puxado principalmente pelo crescimento da agropecuária, que subiu 21,6% no período —o melhor resultado em 26 anos, desde o quarto trimestre de 1996. A soja, principal cultivo, deve ter aumento expressivo na produção anual, estimada em 24,7%.

“Estamos com previsão de safra recorde de soja, que representa aproximadamente 70% da lavoura no trimestre, com crescimento de mais de 24% de produção. A safra da soja é concentrada no primeiro semestre do ano. Ao compararmos o quarto trimestre de um ano ruim com um primeiro trimestre bom, observamos esse crescimento expressivo da Agropecuária”, disse Rebeca Palis, coordenadora de Contas Nacionais do IBGE.

Este resultado mostra a pujança do agro e sua importância para a economia do país. Há, no entanto, um setor da agropecuária fortemente ligado a práticas condenáveis do ponto de vista ambiental e, também, da relação com os povos originários.

Cobiça da soja por terras indígenas ignora pressão internacional

O lobby da soja é uma das principais forças operando em Brasília a favor do chamado “marco temporal” para terras indígenas – tese aprovada na semana passada pela Câmara dos Deputados e que parou no Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 7 após o ministro André Mendonça pedir vistas do processo. Dezenas de entidades do setor agropecuária integram o processo na Corte e atuam localmente para impedir que novas áreas sejam reconhecidas como indígenas, principalmente no Pará e Mato Grosso. Mas o apetite dos sojeiros pelos territórios tradicionais pode ter um reflexo negativo para os negócios no exterior, segundo especialistas.

No oeste do Pará, os sojeiros tentam impedir a criação da terra indígena Planalto Santareno, área reivindicada por povos Munduruku desde 2008, mas cujo processo de identificação se arrasta desde 2018. A região é tomada por fornecedores da gigante norte-americana Cargill, que construiu um porto graneleiro em Santarém em 2003, o que intensificou os casos de grilagem e a disputa de terras para a produção do grão, afetando as comunidades locais.

Municípios da região Tapajós, no sudoeste do Pará, como Belterra, viraram alvo de sojeiros após a construção do porto graneleiro da Cargill em Santarém. Foto: Christian Braga/ClimaInfo/Agosto de 2022

“O agronegócio mata a nossa fome de viver”, afirma Josenildo Munduruku, cacique da aldeia Açaizal, no Planalto Santareno. Ele critica o uso de maquinário pesado e agrotóxicos na monocultura. “As máquinas fazem muito barulho até de noite, e não conseguimos produzir como antes porque o veneno é muito forte e prejudica as nossas terras”, diz.

A Justiça Federal determinou em 2018 que a Funai iniciasse os estudos para a demarcação do território, mas o processo não andou durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Procurada, a Cargill respondeu que “não compra grãos produzidos em Terras Indígenas homologadas” (nota na íntegra).

No estado que mais produz soja no país, o Mato Grosso, os indígenas também encontram dificuldades para demarcar suas terras em razão da pressão econômica da soja e de outras commodities, como milho, algodão e carne. Para os ruralistas locais, o marco temporal virou a tábua de salvação, já que a tese determina que uma área só pode ser considerada indígena se os indígenas ocupassem o local na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Isso inviabilizaria o retorno de vários povos expulsos nas décadas de 1960 e 1970 de seus territórios.

Na época, o avanço de seringueiros, a abertura de estradas e a invasão de sulistas, estimulada pelo governo militar, obrigou alguns povos a se deslocarem para outras áreas, como o Parque Indígena do Xingu (PIX), regularizado em 1961. As etnias, porém, sempre reivindicaram o retorno a suas terras originárias, onde afirmam estar enterrados seus antepassados.

É o caso do povo Ikpeng, que vive atualmente no parque do Xingu, mas pleiteia a Terra Indígena Roro-Walu, uma área de aproximadamente 270 mil hectares no município de Paranatinga (MT), às margens do rio Jatobá. Os estudos da Funai para identificação do território estão paralisados por decisão judicial a pedido do sindicato dos produtores rurais de Paranatinga.

Na mesma região, o pedido de ampliação da Terra Indígena Bakairi (já regularizada) foi travado pela gestão anterior da Funai, apesar de decisão judicial obrigando novos estudos.

Nos dois casos, o marco temporal limitaria o direito dos indígenas a suas terras. Por isso, associações de sojeiros defendem a tese com tanto afinco. “O município [de Paranatinga] tem o potencial para se tornar um dos maiores municípios produtores de soja sem derrubar uma árvore, aproveitando áreas de pastagens. Porém, com a revisão do marco temporal, todo esse potencial pode ser perdido. Como ficam agricultores, trabalhadores, e até a população urbana?”, diz o vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja/MT), Lucas Costa Beber, em comunicado publicado pela organização na semana passada.

Mais ao norte de Mato Grosso, em Brasnorte, o pedido de ampliação da TI Menkü também enfrenta pressão dos sojeiros. A identificação do novo limite da terra, que havia sido aprovada pela Funai, foi anulada pelo governo anterior em novembro passado, um ato inédito nas demarcações de terras. Neste ano, fazendas de soja foram certificadas dentro da área reivindicada pelo povo Myky, segundo revelou a Agência Pública.

O relatório “Os Invasores”, lançado pelo De Olho nos Ruralistas em abril deste ano, identificou 1.692 propriedades rurais sobrepostas a 213 terras indígenas homologadas ou em processo de homologação pela Funai.

Em Santa Catarina, o povo Guarani Mbya luta há mais de 14 anos para o reconhecimento da terra Morro Alto, em São Francisco do Sul. Já identificada, o principal empecilho para a homologação do território é o “Projeto São Francisco 135”, que se sobrepõe a uma parte da TI. Até 2022, o imóvel pertenceu à Bunge Alimentos S.A., subsidiária da gigante estadunidense do agronegócio, segundo o De Olho nos Ruralistas.

Apesar da venda em 2022, o imóvel continua registrado em nome da multinacional. Em nota, a empresa informou que “não é parte em nenhum processo administrativo onde se discute a demarcação como área indígena e, pelas informações públicas disponíveis, essa demarcação não aconteceu, não havendo, portanto, qualquer ilegalidade por parte da empresa”.

Lobby organizado

A Aprosoja é quem organiza o lobby do setor. A entidade é a mais atuante das 136 que apresentaram pedidos para participar da ação do marco temporal no STF, segundo levantamento da organização Terra de Direitos.

“As empresas não aparecem diretamente. Enquanto essas associações pressionam congresso, governo e judiciário, as multinacionais fazem ‘greenwashing’”, explica Pedro Martins, do Terra de Direitos, indicando que as companhias utilizam estratégias de marketing para se apresentarem como sustentáveis, embora apoiem a articulação dessas entidades. Procurada, a Aprosoja não respondeu à Repórter Brasil.

“O agro hoje é mais organizado que as bancadas da bala e da indústria”, diz Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental, organização não governamental que acompanha a ação do marco temporal.

O lobby em Brasília conta também com o Instituto Pensar Agropecuária, que é financiado pelas gigantes globais da soja e ligado à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida como “bancada ruralista”. A entidade produziu uma cartilha para orientar deputados sobre a defesa do marco temporal, segundo o The Intercept Brasil.

Em nota, a FPA diz “não ser contrária aos direitos indígenas”, e que “é a favor do marco temporal para garantir a segurança jurídica de quem compra uma propriedade privada” (veja todos os posicionamentos completos).

Para quem trabalha na ponta da resistência contra a pressão de sojeiros em terras indígenas, a articulação fica ainda mais evidente. “Eles atacam os povos indígenas em três esferas. No local, ameaçando as comunidades; no legislativo, em projetos de leis como o PL 490 [que institui o marco temporal]; e também no Judiciário, tentando influenciar o julgamento no STF”, diz Dinamam Tuxá, advogado e coordenador-executivo da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas (Apib) no Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.

Plantações de soja pressionam terras indígenas e unidades de conservação em Itaituba, no sudoeste do Pará. Foto: Christian Braga/ClimaInfo/Agosto de 2022

Visão arcaica

Os olhos do mundo estão atentos ao que acontece em Brasília. A eurodeputada do partido Verde da Alemanha, Anna Cavazzini, que também é vice-presidente para relações do Parlamento Europeu com o Brasil, enviou uma carta ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), pedindo para que contenha legislações questionáveis e garanta “os direitos ambientais e indígenas”.

“O avanço do agro sobre terras indígenas espanta investimentos, pois há uma demanda internacional por preservação da floresta e esses territórios são as áreas mais preservadas. O que essa parcela do Congresso e de empresários têm é uma visão arcaica de desenvolvimento, que é predatória ao meio ambiente”, diz Batista, do ISA.

A FPA respondeu não acreditar em sanções internacionais, no caso de aprovação do marco temporal. Para a entidade, o agronegócio deverá ter prejuízo de R$ 520 bilhões, caso o marco temporal não seja aprovado. A entidade também nega que a agropecuária seja um “vetor relevante de desmatamento”, contrariando evidências científicas. A agropecuária foi responsável por 97% do desmatamento de floresta nativa no país entre 2019 e 2021, segundo estudo publicado pela organização Mapbiomas.

Para a advogada do ISA, o andamento da ação do marco temporal no STF, em julgamento desde 2017, é uma peça importante para frear o avanço dos sojeiros sobre terras tradicionais que deveriam ser preservadas.

“O que a sociedade espera é que o STF mantenha a pauta e julgue o caso, pois enquanto se espera por isso, os direitos dos povos indígenas estão sendo atacados com um Congresso querendo produzir leis notoriamente inconstitucionais”, afirma a advogada.

Entenda o julgamento do Marco Temporal

A ação do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral, popularmente conhecida como marco temporal, discute se 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, deve ser adotada como marco temporal para definição da ocupação tradicional da terra por indígenas.

O caso foi originado em uma disputa entre governo de Santa Catarina e os povos xokleng, kaingang e guarani. O governo estadual reivindica parte da Terra Indígena Ibirama Laklãnõ. Mesmo com a declaração de ocupação tradicional indígena pela Funai, o Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) chegou a determinar a reintegração de posse aos órgãos catarinenses.

Um dos principais argumentos dos povos xokleng é que eles sofreram perseguições na região, por isso tiveram que migrar de seus territórios tradicionais. Esse também é um dos pontos debatidos no STF, pois muitos povos defendem que a perseguição é um dos fatores que fizeram outros povos serem removidos das próprias terras. O governo catarinense diz que a área pretendida era pública e pertence a produtores rurais desde o final do século 19.

Governo vai punir fraudes e fiscalizar ruralistas para conter desmatamento

O governo de Lula anunciou que vai punir fraudes e intensificar a fiscalização sobre ruralistas para conter o desmatamento. As medidas incluem o cancelamento de todos os registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR) de propriedades que estiverem sobrepostas a terras públicas e fazem parte do novo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), lançado nesta segunda-feira (5), dia internacional do Meio Ambiente. A meta é zerar o desmatamento até 2030.

O CAR é um instrumento criado pelo Código Florestal, em 2012, pelo qual os proprietários rurais registram, por autodeclaração, a extensão e a localização de suas terras. Já a análise do cadastro é responsabilidade de órgãos ambientais estaduais. No entanto, problemas orçamentários, por exemplo, impedem essa análise. E os grileiros, por sua vez, se aproveitam disso e fazem do protocolo do CAR uma espécie de documento de regularidade da propriedade.

Segundo um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), entre 2018 e 2020, a área dentro de terras indígenas, parques e estações ecológicas com registros irregulares no Cadastro Ambiental Rural aumentou 56%. E os governos estaduais tinham analisado apenas 3% dos cadastros ambientais. Isso dá uma ideia do avanço da grilagem, uma vez que criminosos desmatam florestas e vendem a terceiros.

Entre as quase 200 ações do plano apresentado pelo governo, estão ainda aquelas voltadas ao fortalecimento da fiscalização, destruída no governo de Jair Bolsonaro (PL).

A partir deste ano ainda, estão previstos:

– a criação de centros de inteligência estaduais na Amazônia Legal para auxiliar nas ações de prevenção e controle dos desmatamentos e queimadas;

– instauração de 3.500 processos administrativos por ano para apuração de infrações administrativas contra a flora na Amazônia;

– estruturação de 10 bases estratégicas para atuação multiagências no combate aos crimes e infrações ambientais na Amazônia e

– para 2024, a criação de uma base aerostática na Amazônia.

Com relação ao fortalecimento do patrimônio florestal, o plano prevê medidas no âmbito fundiário e a incorporação ao patrimônio de 100% das terras devolutas. E ainda:

– Criação de 3 milhões de hectares de unidades de conservação até 2027

– Criação ou fortalecimento, até 2027, de conselhos consultivos de 80% das unidades de conservação;

– Consolidar limites de 40% das UCs federais até 2027.

O novo PPCDAm está estruturado em quatro eixos temáticos: atividades produtivas sustentáveis; monitoramento e controle ambiental; ordenamento fundiário e territorial; e instrumentos normativos econômicos voltados à redução do desmatamento e à efetivação das ações abrangidas pelos demais eixos.

“Plano carece também de dinheiro e esforço político”

“De forma geral, o plano engloba várias perspectivas, vários desafios desse cenário novo, desafiador e difícil, que a gente tem de combate ao desmatamento na Amazônia. […] Ele é um guia, um guia importante que, se for seguido, nos leva ao caminho de acabar, ou ficar muito próximo de acabar, com o desmatamento até o final dessa década e, com isso, diminuir bastante a emissão de gás de efeito estufa no Brasil”, disse Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima ao O Eco.

Segundo ele, para ser efetivado o PPCDAm depende de uma série de questões que estão fora da previsão do plano. Uma delas é a questão orçamentária. “A gente tem dinheiro no Fundo do Amazônia, hoje tem dinheiro no Fundo Clima, tem dinheiro do orçamento. Mas nós vamos precisar de muito mais dinheiro para colocar esse plano para funcionar dessa forma. Inclusive não só dinheiro ambiental, mas também dinheiro e esforço político de outras áreas”, disse.

Um esforço político, como explicou, que passa pela articulação do Executivo com o Congresso. Mas lembrou: atualmente, a maioria dos deputados federais e senadores faz oposição ao governo e tem imposto grandes derrotas a ele, como foi o caso da MP 1154, que reestruturou ministérios, ou o PL 490, que fixou a tese do Marco Temporal.

“Se o governo hoje faz um plano de combate ao desmatamento, o Congresso tem um plano de aceleração do desmatamento no Brasil. É um pacote de medidas, como PL 490, que coloca em risco as terras indígenas, o projeto de lei de grilagem de terras que está no Senado, as alterações no Código Florestal que toda hora bancada ruralista tenta impor, como foi o caso agora da Mata Atlântica, né? Então o governo ele vai precisar também [atuar] em outros campos, além desse financeiro econômico”.

Esta é a quinta fase do Plano, executado inicialmente a partir de 2004, durante os governos de Lula e Dilma Rousseff. O plano é considerado o mais efetivo de combate à destruição da floresta amazônica, já que durante sua vigência de 2004 a 2012 reduziu em 83% o desmatamento.

No período de 2013 a 2018, o desmatamento foi mantido abaixo de 8 mil quilômetros quadrados. No entanto, o plano foi revogado em 2019, logo no início do governo de Jair Bolsonaro. Veio então o desmonte dos órgãos ambientais e com ele a escala do desmatamento, que chegou a 13 mil quilômetros quadrados em 2021.

Projeto ‘Boi na Linha’, para conter desmatamento, será aplicado a todos os biomas brasileiros

A adesão da Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes) a um protocolo de monitoramento socioambiental para a cadeia da carne, anunciada nesta segunda-feira (05), tem potencial de uniformizar boas práticas entre frigoríficos brasileiros e ajudar no combate ao desmatamento e outros crimes não só na Amazônia, mas em todo o país. A entidade agora é parte do projeto Boi na Linha, desenvolvido pelo Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola) em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) que desenhou um passo a passo para empresas do setor verificarem a origem do gado abatido e reduzirem o risco de compras ilegais.

Até agora, o Boi na Linha trabalhava para que seu protocolo fosse aplicado a todas as empresas signatárias do TAC da Carne (Termos de Ajustamento de Conduta que o MPF assina individualmente com frigoríficos, em estados da Amazônia Legal) e do Compromisso Público da Pecuária (CPP).

Ambos pactos preveem uma série de técnicas de verificação de fazendas de gado na Amazônia antes das compras de frigoríficos, de modo a assegurar que animais criados em áreas desmatadas ilegalmente, griladas ou com a utilização de trabalho análogo à escravidão não entrem nos abatedouros. Apesar do objetivo comum, havia critérios distintos entre os compromissos e as desigualdades no monitoramento persistem, mesmo entre as empresas signatárias – algo que pode ser corrigido com o ingresso da Abiec no grupo, já que a entidade passará a exigir que suas 39 empresas associadas adotem um protocolo comum, desenvolvido pelo Boi na Linha, como medida de verificação de suas compras.

Abiec vai exigir que suas 39 empresas associadas adotem critérios de monitoramento comuns para evitar compra de gado irregular. Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Entre os frigoríficos integrantes da Abiec com unidades na Amazônia, há desde plantas que assinam os compromissos e realizam auditorias para comprovar sua aplicação, outras que são signatárias dos pactos mas não são auditadas e ainda aquelas que sequer firmaram algum dos compromissos públicos estabelecidos pela indústria. O portal do Boi na Linha permite a consulta da situação de cada empresa com unidades na região.

“A entrada da Abiec é um avanço. Não adianta você ter uma empresa com critérios de compra forte, recusando comprar de áreas com desmatamento ilegal, trabalho escravo, e, ao lado, ter outra empresa comprando. Além de uma violação à legislação brasileira, é uma concorrência desleal de mercado”, observa o Procurador Federal Daniel Azeredo, que atua no programa “Boi na Linha” desde sua implementação, em 2019.

Além disso, com a adesão da associação ao Boi na Linha, o protocolo – que até então era aplicado apenas na região da Amazônia – será estendido a todos os biomas do Brasil. A Abiec tem 21 associados com unidades no Cerrado, por exemplo, além de 16 empresas com frigoríficos na Amazônia e outras unidades espalhadas pelo resto do país, segundo o levantamento do Imaflora.

“É um grande passo para diferenciar o produtor que faz direito, que cumpre a lei, daquele que não cumpre. É bom para o pecuarista, para o consumidor, para todos”, celebra Marina Piatto, diretora-executiva do Imaflora, ONG que também integra, junto com a Repórter Brasil, a Aliança pelos Direitos Humanos em Cadeias Produtivas.

Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Abiec, projeta a criação de um banco de dados comum de fornecedores – facilitando o monitoramento da cadeia produtiva – e a realização de mapas de risco da pecuária no país. Mas não há prazos e metas estabelecidos até agora.

A expansão do programa, no entanto, está longe de garantir o fim do desmatamento e de outros crimes socioambientais na cadeia produtiva da pecuária. O Boi na Linha inclui medidas para monitorar os fornecedores indiretos dos frigoríficos e para inibir a “lavagem de gado” – ou seja, as fraudes documentais que permitem a venda de animais de origem desconhecida. No entanto, a iniciativa  não se aplica aos fornecedores indiretos, atualmente o principal gargalo de rastreabilidade no setor.

Um olho no consumidor, outro no investimento

O novo passo da Abiec foi dado mirando as exigências do consumidor e também dos investidores – dois públicos que tem demonstrado preocupação crescente com a origem da matéria-prima da carne brasileira, já que 90% do desmatamento na Amazônia foi feito para dar lugar ao pasto, segundo estimativa do Imazon, organização que monitora a cadeia da pecuária.

A Abiec representa as indústrias responsáveis por quase toda a carne brasileira negociada em mercados internacionais – em 2022, foram 12,97 bilhões de dólares em exportações de carne bovina, equivalente a 2,26 milhões de toneladas, de acordo com dados do Ministério da Economia compilados pela Abiec.

Nova legislação aprovada na União Europeia impede importações do bloco de carne proveniente de áreas desmatadas e pode afetar negócios com o Brasil. Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil

A União Europeia aprovou recentemente uma lei que proíbe a venda, dentro do bloco, de produtos oriundos de áreas desmatadas na Amazônia, o que pode trazer impacto aos negócios, já que sequer os maiores frigoríficos do país conseguem garantir a origem regular de toda a carne que produzem.

Mas há preocupação também com o crédito bancário, que começa a sofrer restrições. “A transparência no monitoramento é necessária não só para vender mais, mas também como critério para receber investimentos. Queremos nos posicionar no mercado com essa régua”, afirma Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Abiec.

Nesta semana, a Febraban anunciou que os bancos brasileiros irão checar se frigoríficos compraram gado de áreas desmatadas ou usaram trabalho escravo na Amazônia Legal antes de concederem empréstimos. Em 2021, o BNDES se antecipou a esse movimento e endureceu o monitoramento sobre este setor depois que a Repórter Brasil revelou que o banco financiava frigoríficos com alto índice de irregularidades de suas compras, contrariando a política interna do banco.

Mas a  nova regulação da Febraban não determina restrição de crédito a fazendeiros desmatadores, por exemplo, o que é motivo de crítica da Abiec. “A indústria ainda está penando para monitorar o fornecedor indireto e é provável que ele tenha um relacionamento com o banco. Então, os bancos também precisam ajudar a fazer esse controle. Esse dinheiro circula no sistema financeiro”, cobra Fernando Sampaio, da Abiec.

Boi na Linha inspirou Febraban

Procurada pela reportagem, a Febraban informou que o programa “Boi na Linha” foi uma das referências para as novas políticas de monitoramento aos frigoríficos anunciadas nesta semana.

Apesar dessa inspiração, o procurador do MPF Daniel Azeredo assinala que o anúncio da entidade bancária falhou em explicar melhor os critérios do protocolo de verificação que será cobrado dos bancos associados. “É preciso saber em detalhe de qual método de rastreabilidade estamos falando. Não adianta só papel. É preciso contar com a tecnologia, que você não tem como fraudar”, pondera.

Em nota enviada por e-mail, a Febraban defende que “o novo protocolo da Autorregulação Bancária, direcionado às operações de crédito com clientes frigoríficos e matadouros de abate bovino, é uma iniciativa complementar a uma série de iniciativas para a gestão dos riscos de desmatamento nas operações bancárias”, citando como exemplos normas que já estão instituídas por determinação do Banco Central do Brasil. A íntegra da manifestação pode ser lida aqui.

Mapeamento inclui 158 plantas

Em atuação conjunta com o Ministério Público Federal, o Boi na Linha estabelece condutas de transparência e monitoramento para auxiliar empresas produtoras a cumprirem o TAC da Carne e o CPP.

Desde sua implementação em 2019, o programa mapeou 158 abatedouros e frigoríficos em cinco estados da Amazônia Legal: Acre, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia e Pará. Deste total, 111 unidades (70%) possuem TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) firmado com o MPF, de acordo com dados fornecidos pelo Imaflora O CPP foi assinado em 2009 apenas pelos três maiores frigoríficos do Brasil, JBS, Marfrig e Minerva.

A estimativa do procurador Daniel Azeredo é de que, atualmente, entre 70% e 80% do gado produzido nos estados da Amazônia esteja sob a chancela do TAC.

Acelerando a destruição

Temendo a derrota de Bolsonaro e, com ela, a retomada de punições a quem desmata, houve um salto no ritmo da destruição do meio ambiente. O desmatamento no Brasil cresceu 22,3% em 2022 em relação a 2021, segundo o relatório anual do MapBiomas divulgado no último dia 12. Isso significa que o país perdeu o equivalente a 230 campos de futebol por hora.

Em 2019, primeiro ano da gestão de Jair, foram 1,22 milhão de hectares desmatados, em 2020, 1,65 milhão, em 2021, 1,68 milhão. Já no ano eleitoral de 2022, 2,06 milhões.

E a agropecuária foi responsável por 95% do desmatamento, que se concentrou na Amazônia (58%) e no Cerrado (32,1%).

O desmatamento ilegal não começou e não terminou com Jair Bolsonaro, mas o então presidente o transformou em um símbolo de seu governo a ponto de ser lembrado no exterior como um pária climático global e um carrasco das gerações futuras. Em nome da floresta no chão, atacou a fiscalização, passou pano para criminosos e financiou desmatadores.

Temendo a derrota daquele que os ajudou, madeireiros e garimpeiros ilegais, grileiros de terra e o naco de produtores rurais que agem ao arrepio da lei correram para colocar o máximo de floresta no chão este ano. Sabiam que qualquer outro que assumisse a Presidência da República em 2023 não daria a mesma vida fácil. Precisavam fazer tudo o que pudessem naquele momento em que a situação era totalmente favorável a eles.

A força ostentada por esse grupo no Congresso Nacional (que dificultou a punição a desmatadores com a retirada do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Ministério do Meio Ambiente e aprovou o PL Antiindígena na Câmara dos Deputados) reduz a margem de manobra do Poder Executivo.

Mas a ministra do Meio Ambiente é Marina Silva (e não alguém acusado de ajudar em esquema ilegal de exportação de madeira da Amazônia), o ministro da Justiça é Flávio Dino (e não alguém que dirige uma pasta que exonera superintendente da Polícia Federal por investigar o tal ministro) e o presidente é Lula (e não alguém que ataca fiscais do Ibama e do ICMBio e cientistas do Inpe exatamente por fazerem o seu dever). Então, o contexto mudou

Tanto que os alertas de desmatamento na Amazônia caíram 31% nos cinco primeiros meses de 2023 em comparação a 2022, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

Contando com as anistias que o Congresso Nacional aprova a desmatadores e grileiros de tempos em tempos, o bolsonarismo rural apostou na política de terra arrasada e de fato consumado.

A alta no desmatamento no Brasil nos últimos anos não foi um acidente, mas um projeto. Se o país quisesse realmente ter feito a diferença nessa área saberia por onde ir porque já havia feito em outras administrações. Prova desse projeto foi a proposta do então ministro Ricardo Salles de aproveitar a pandemia, enquanto imprensa e sociedade estão preocupadas com mortos e doentes, para “passar a boiada” contra normas ambientais.

Agora, com o retorno à normalidade democrática, os índices de desmatamento vêm caindo por conta da atuação das instituições públicas. E, sentindo que a vida ficou mais difícil para seus representados se beneficiam da ilegalidade, há deputados e senadores que pressionam para manter o retrocesso.

Fiscais do Ibama que atuam no Cerrado disseram que o comportamento de muitos produtores que atuam ilegalmente continua o mesmo do ano passado. Em sua avaliação, isso não é apenas para peitar o novo governo, mas também testar até onde a gestão petista topa ir na repressão considerando que Lula precisa de governabilidade.

O PT terá sua parcela de culpa socioambiental, como teve com o desastre que foi a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, se não entregar o que prometeu. Mas, por enquanto, o novo governo ainda está revirando os escombros deixados por Bolsonaro, ressuscitando o sistema de proteção ambiental e buscando formas de evitar que uma carreta desgovernada caia no precipício na próxima curva.

Quanto tempo até a próxima proposta de anistia ser aprovada no Congresso para legalizar a política de terra arrasada dos últimos quatro anos?


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