18/05/2024 - Edição 540

Especial

A ESCRAVIDÃO NÃO ACABOU

Casos na produção de vinho no RS mostram que a elite brasileira precisa ser enquadrada

Publicado em 03/03/2023 10:11 - Gabriela Moncau (Brasil de Fato), Jamil Chade, Josias de Souza e Leonardo Sakamoto (UOL), Edison Veiga (DW), DW – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Desde que, no último 22 de fevereiro, veio à tona o caso dos 207 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão na colheita de uva em Bento Gonçalves (RS), desdobramentos e reações tomam o debate público no Brasil. Diferente do que se poderia esperar, o caso – que implica grandes empresas como Aurora, Garibaldi e Salton – não causou um repúdio unânime.

Se essa operação de resgate, bem como outra que, no mesmo mês, tirou de condições similares 139 pessoas de uma plantação de cana-de-açúcar em Acreúna (GO), explicitam o escravismo brasileiro do século 21, falas racistas como a do vereador de Caxias do Sul (RS) Sandro Fantinel (Patriota) revelam a falta de pudor de alguns em defendê-lo.

É nesse contexto que o auditor fiscal do trabalho Maurício Krepsky ressalta a necessidade de aumento de pessoal na Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae/CGFIT/SIT), divisão que ele chefia.

“Não conseguimos combater o trabalho escravo sentados num escritório, com ar condicionado. É necessário que tenhamos auditores fiscais do trabalho em campo para poder verificar in loco as situações”, declara Krepsky. Faz dez anos da última vez que houve concurso, em 2013.

Krepsky conta que cerca de 250 empregadores são flagrados com trabalho escravo a cada ano no país – praticamente um a cada dia útil – e explica as consequências impostas a eles.

Apesar de prevista pela Emenda Constitucional 81, a expropriação de terras de empresários escravistas nunca aconteceu, por depender de uma lei que regulamente esse processo, nunca aprovada no Congresso.

O auditor fiscal do trabalho salienta, ainda, que o perfil das pessoas resgatadas nessas condições permanece quase o mesmo a cada ano: aproximadamente 90% são homens, negros e de baixa escolaridade.

Ministro diz que escravidão no Sul não é caso isolado e plano será revisto

O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, afirmou que a descoberta de trabalhadores em situação análoga à escravidão no Sul do Brasil não é um caso isolado no país e que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva terá de iniciar um processo para examinar como lidar com esse fenômeno.

Em entrevista coletiva concedida em Genebra, o novo chefe da pasta de direitos humanos confirmou que uma reunião de emergência foi convocada por seu ministério para a semana que vem. Um dos objetivos, segundo ele, será o de reavaliar o plano nacional de erradicação do trabalho escravo e considerar se novas medidas terão de ser tomadas.

Silvio Almeida também indicou que vai iniciar uma conversa com o Ministério do Trabalho, Fazenda e Justiça para permitir que a resposta do governo seja ampla.

“Nem de longe isso é um caso isolado no Brasil”, lamentou o ministro. “O Brasil é um país que possui problemas que ainda levam à reprodução da violência contra os trabalhadores”, disse.

O chefe da pasta de Direitos Humanos afirmou que sequer se surpreendeu com as declarações das empresas envolvidas, sugerindo que o que ocorreu é resultado das políticas sociais.

“Reduziram a possibilidade de explorar os trabalhadores. Vejo nisso um recado: a luta contra o trabalho escravo é uma luta que envolve o fortalecimento do sistema de proteção social aos trabalhadores. Precisamos reconstruir o sistema de proteção e fortalecer os sindicatos”, defendeu.

Racismo organiza desigualdades

Para Silvio Almeida, o primeiro ministro de Direitos Humanos negro do Brasil, o racismo é um dos pilares estruturantes do país. “O racismo organiza as desigualdades no Brasil, organiza a violência social e do estado”, completou.

Durante sua viagem para Genebra, o ministro apresentou a nova política de direitos humanos e insistiu que quer a cooperação dos organismos internacionais para poder implementar sua agenda. “Viemos reconectar o Brasil com o sistema de direitos humanos”, afirmou.

Um dos lemas do governo foi o de que “o Brasil voltou”, numa referência ao fim de quatro anos de um isolamento inédito do país do cenário internacional. Mas ele admitiu que essa volta não será apenas de um antigo Brasil.

“Ninguém volta do mesmo jeito. No mesmo tempo. O Brasil voltou. Mas voltou diferente. Conectado com as demandas do tempo presente”, disse. “Voltamos com outro projeto de futuro”, completou.

Um museu de grandes novidades

O Brasil pode redigir a Constituição e as leis que quiser. Por mais liberais e igualitárias que elas sejam, sempre haverá pessoas que arranjarão maneiras de escravizar outras pessoas. Na penúltima irrupção escravocrata exposta nas manchetes, o país ficou sabendo que 207 brasileiros foram explorados como servos por três vinícolas gaúchas.

Há quase três décadas, em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso criou grupos especiais de fiscalização para combater a escravidão no país. Há exatos 20 anos, em março de 2003, Lula potencializou os esforços ao lançar no Planalto o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Nessa época, estimava-se que havia algo como 25 mil brasileiros explorados como escravos nas matas nacionais. Gente vigiada por pistoleiros e acorrentada por dívidas.

No ano passado, mesmo submetidos à má vontade do governo Bolsonaro, os fiscais do trabalho libertaram 2.575 pessoas exploradas como escravos. Atingiu-se, então, a marca constrangedora de 60.251 trabalhadores resgatados desde que Fernando Henrique instituiu os grupos de fiscalização. Vivo, Cazuza olharia para os baianos explorados na senzala do vinho de Bento Gonçalves, na serra do Rio Grande do Sul, e entoaria:

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para

Não para, não para…

Quem escolhe o momento exato costuma economizar muito tempo. Mas o relógio parece correr para trás no Brasil da escravidão. Nesse país, o futuro é um espaço tão impreciso quanto concreto. Nele cabe tudo, pois o futuro não pode ser cobrado ou conferido.

Qualquer um pode, entretanto, interrogar os seus botões: Que fim levou 2000, futuro daquele radioso 1995 em que FHC soltou os fiscais em campo? Onde foi parar 2023, futuro daquele 2003 em que um Lula estalando de novo falava em erradicar a escravidão?

Há muitas dúvidas sobre como será o Brasil daqui a 100 anos, no futuro de todos os passados. Mas é lícito supor que, a menos que ocorra um imenso bang libertador, o país ainda conviverá com a vergonha da escravidão.

O que Aurora e Salton agora têm em comum com empresas como Zara e Odebrecht

O que a Aurora, a Garibaldi e a Salton têm em comum com a Zara, a Animale e a M.Officer, com a MRV, a OAS e a Odebrecht, com a Cutrale, a Citrosuco e a Cosan, com a Nespresso e a Starbucks, com a JBS, a Marfrig e o Minerva? São exemplos de grandes empresas que foram acusadas de envolvimento direto ou indireto com trabalho escravo.

Parte dos 207 resgatados da escravidão em Bento Gonçalves trabalhava para a Fênix, uma prestadora de serviço das três vinícolas, atuando na carga e descarga de uvas. Isso gerou comoção devido à violência com a qual eles eram tratados – o que incluía o uso de armas de choques, spray de pimenta e cassetetes. Contribuiu o fato de o vinho ser visto no Brasil como produto de elite.

Mas o trabalho escravo contemporâneo está mais presente do que muitos imaginam, em cadeias produtivas voltadas ao mercado interno e externo.

Só para citar os exemplos presente no início deste texto, resgates de escravizados ocorreram na linha de fabricação de roupas da Zara em 2011, da Animale em 2017, da M.Officer, em 2013 e 2014.

Obras da MRV foram palcos de resgates em 2021, 2014, 2013 e 2011. Em 2013, trabalhadores das obras de ampliação do Aeroporto Internacional de São Paulo, da OAS, foram resgatados. A Odebrecht respondeu na Justiça do Trabalho por escravizar brasileiros em Angola em contratações até 2014 e fechou um acordo de R$ 30 milhões com o Ministério Público do Trabalho para encerrar a ação.

A produção de laranja para a Cutrale foi alvo de resgate de escravizados em 2013 e para a Citrosuco, em 2013 e 2020. A Cosan foi palco de um resgate de trabalhadores de uma de suas usinas de cana em 2007.

Um produtor de café flagrado com trabalho escravo em 2018 era fornecedor certificado com selo de qualidade tanto da Nespresso quanto da Starbucks.

Todos os dados são do Ministério do Trabalho e Emprego. E os frigoríficos JBS, Marfrig e Minerva receberam e processaram gado que passaram por pecuaristas flagrados por esse crime nos últimos cinco anos.

Os mais de 60 mil resgatados da escravidão desde 1995, quando o governo brasileiro criou o sistema público de combate a esse crime, foram encontrados em dezenas de atividades econômicas. Ou seja, temos “escravizados do vinho”, mas também da madeira, do bife, do couro, do aço, da soja, do algodão, do café, do suco de laranja, do tomate, da pimenta-do-reino, da erva-mate, da batata, da cebola, da farinha de mandioca, do sisal, do ouro, das roupas, dos bordéis, da construção civil. E claro, os escravizados de nossas residências pelo trabalho escravo doméstico. Os dados também são do governo federal.

Após terem seu envolvimento descoberto, parte das empresas tomou ações para melhorar o controle de suas cadeias produtivas, pois a vinculação de seus nomes com a escravidão costuma gerar até queda de ações na Bolsa de Valores.

Como foi o caso da Cosan. Após a sua inclusão na “lista suja”, o Walmart e outras redes varejistas divulgaram que estavam suspendendo a compra de açúcar das marcas União e Da Barra, pertencentes à empresa. E o BNDES decidiu suspender, em caráter preventivo, “todas as operações com a empresa” até que ela saísse da lista. Com isso, as ações tiveram desvalorização de 5,32% na Bolsa de São Paulo no dia 7 de janeiro de 2010.

A justificativa-padrão é a de que não sabiam o que acontecia, como a que foi dada pelas vinícolas do Rio Grande do Sul, o que não é mais aceito sem contestação de investidores, de financiadores e dos mercados interno e externo.

Rompimento de contratos e bloqueio de financiamento

A França, por exemplo, criou uma lei em que corporações instaladas no país podem ser responsabilizadas por lucrar com trabalho escravo mesmo que o crime tenha sido cometido fora. O banco BNP Paribas está sendo denunciado pela Comissão Pastoral da Terra e por organizações francesas por violar a Lei Francesa do Dever de Vigilância devido ao financiamento de desmatadores e de escravagistas no Brasil.

Já nos Estados Unidos, se há indícios de que um produto foi fabricado no exterior com o uso de formas contemporâneas de escravidão, a legislação impede que ele entre no país.

As empresas começaram a se mexer no Brasil após a criação do cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, conhecido como “lista suja”. Desenvolvido em 2003 pelo governo Lula, ele dá transparência aos nomes de quem foi flagrado por esse crime e teve direito à defesa em duas instâncias administrativas. É utilizado pelo setor empresarial para gerenciamento de risco de seus negócios.

Por uma decisão do Conselho Monetário Nacional, de 2010, que proíbe a concessão de crédito rural a quem esteja nela relacionado, bancos públicos e privados precisam checar a lista. O Ministério Público do Trabalho avalia que o bloqueio de financiamento tem falhas e acionou os bancos para que ele seja efetivado. Fundos de investimento nacionais e estrangeiros, como o fundo de pensão norueguês, têm sido bastante diligentes ao usar a lista.

A “lista suja” enfrentou resistência por aqui,apesar de ser considerado pelas Nações Unidas um dos principais instrumentos de combate à escravidão em todo o mundo, porque ela gera pressão real. Associações do agronegócio e do setor imobiliário tentaram derrubar a lista, mas o Supremo Tribunal Federal confirmou a constitucionalidade do cadastro em 2020.

Em 2005, foi lançado o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que chegou a envolver 30% do PIB no combate a esse crime, usando a lista como alicerce.

Confisco de propriedades flagradas com escravizados foi aprovada em 2014

Há outras medidas que ajudam no combate aos lucros do trabalho escravo.

Após o resgate de 207 trabalhadores em Bento Gonçalves, as redes sociais bombaram a ideia de aprovar uma lei para confiscar propriedades onde o crime foi cometido e destiná-las à reforma agrária ou ao uso habitacional urbano. Acontece que essa lei já existe há quase nove anos, fruto de uma das maiores mobilizações sociais desde a redemocratização. Mas sua regulamentação ficou empacada por conta da pressão da bancada ruralista.

O Estado de São Paulo conta com uma lei, aprovada em 2013, e já regulamentada, que prevê o banimento por dez anos de empresas condenadas por trabalho escravo.

Já a capital paulista tem legislação, desde 2016, que prevê multa de até R$ 100 milhões por trabalho escravo e cassação da licença de funcionamento no município. Ainda não há empregadores punidos por ambas as leis.

Empresas costumam responsabilizar terceirizados

No momento em que foram acusadas de envolvimento com trabalho escravo, a maioria das grandes empresas culpou prestadores de serviço.

A Aurora afirmou que se solidarizava com os trabalhadores da empresa terceirizada, que repassava recursos suficientes para remuneração digna e que não havia diferenciação entre as condições dos contratados e dos terceirizados na empresa. A Cooperativa Garibaldi afirmou que desconhecia a situação relatada e que o contrato com a prestadora de serviços foi cancelado.

A Salton afirmou que repudia violações aos direitos humanos, rescindiu contrato com a prestadora de serviços e intensificou a fiscalização de terceirizados e prestadores. Também afirmou que repudia declarações de políticos e associações que imputem responsabilidade sobre as vítimas.

A Zara e a Animale disseram que não tinham conhecimento do que acontecia em seus fornecedores na época dos resgates. A M.Officer negou responsabilidade pela situação encontrada.

A MRV afirmou, na época do último flagrante, que não compactua com irregularidade na contratação de colaboradores e que suspendeu o contrato com a empresa de recrutamento. A OAS disse que as pessoas não eram funcionários da construtora, mas de terceirizados. A Odebrecht apontou que as condições de trabalho na empresa sempre foram fiscalizadas e atestadas positivamente por autoridades angolanas.

A Cutrale afirmou que seus contratos têm cláusulas sobre a necessidade de cumprir a lei e pode interromper relações comerciais. A Citrosuco afirmou que repudia trabalho escravo em seus fornecedores. A Cosan disse que as irregularidades foram cometidas por uma prestadora de serviços.

A Nespresso afirmou que não aceita fazendas que descumpram a lei e suspendeu relação com o produtor após tomar conhecimento do caso. A Starbucks disse que iria investigar o episódio, o que poderia levar à suspensão da relação comercial.

JBS, a Marfrig e o Minerva afirmam utilizar a “lista suja” para bloquear fornecedores, mas não possuem mecanismos eficientes para identificar as vendas realizadas através de laranjas ou intermediários.

Trabalho escravo hoje no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT

Casos notórios de trabalho análogo à escravidão no Brasil

O recente caso envolvendo mais de 200 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, em meio à colheita de uvas que seriam utilizadas por famosas vinícolas, chamou atenção para uma triste realidade que ainda afeta milhares de pessoas no Brasil.

De acordo com dados divulgados no início deste ano pelo Ministério do Trabalho e Emprego, foram resgatados 2.575 trabalhadores explorados em condições de trabalho análogos às de escravo no ano passado, em 462 operações de fiscalização.

Apenas em três estados da federação não foram encontrados casos do tipo ao longo de 2022: Alagoas, Amazonas e Amapá. A maior parte dos casos identificados foi em Minas Gerais, com 1.070 trabalhadores na situação — o estado lidera o ranking desde 2013.

Entre as vítimas em todo o país, a maior parte (92%) eram homens; 51% residiam na região nordeste e outros 58% eram naturais dessa região; 83% deles se autodeclararam negros ou pardos e 15% brancos; e 7% eram analfabetos. Trinta e cinco crianças e adolescentes também foram resgatados.

O cultivo de cana-de-açúcar, tarefas de apoio à agricultura, produção de carvão vegetal e cultivo de alho e café foram as atividades econômicas com maior número de trabalhadores explorados no ano passado.

Os dados indicam um crescimento de 31% no número de pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão em comparação com o ano de 2021, e 127% a mais do que em 2019, o último ano antes da pandemia de covid-19. Aumentou também o número de estrangeiros resgatados sob tais condições no Brasil: 148, frente a 74 (a metade) em 2021.

A seguir, casos de trabalho análogo à escravidão que marcaram a história recente do Brasil.

“Fazenda Volkswagen” na Amazônia

Um dos casos mais notórios de trabalho análogo à escravidão no Brasil foi o ocorrido em uma propriedade rural de mais de 139 mil hectares no Pará, entre os anos 1970 e 1980. Trata-se da Fazenda Vale do Rio Cristalino, mais conhecida como “Fazenda Volkswagen”, porque pertence a uma subsidiária da companhia.

De acordo com levantamento realizado pela Comissão Pastoral da Terra e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e encaminhada ao Ministério Público do Trabalho em 2019, a fazenda chegou a contar com 900 trabalhadores, sendo que dois terços eram explorados em condições análogas à escravidão.

O empreendimento, subsidiado pelo governo militar por meio da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e do Banco da Amazônia S/A (Basa) estava dentro do conceito de ocupação da Floresta Amazônica e conversão de áreas naturais em pastagens.

Conforme a apuração realizada pelos pesquisadores, tarefas como administração, segurança, fiscalização e manejo de gado eram conduzidas pelos 300 empregados em condições normais. Aos demais 600, sem vínculo empregatício, eram destinadas tarefas como roçagem e desmate da floresta. Eles teriam sido submetidos a um regime de vigilância armada, impedimento de sair da fazenda, alojamentos insalubres, falta de acesso a água potável e a alimentação adequada e negativa de acesso a tratamentos médicos.

Produção de fumo no RS e café em MG

Desde 2003, o governo federal mantêm um cadastro popularmente conhecido como “lista suja” do trabalho escravo, que reúne empregadores que usaram mão de obra em condições análogas à escravidão.

Um dos mais recentes a entrar na lista foi a propriedade rural de Torcato Junior Tatim, produtora de fumo em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Ali, em janeiro de 2021, foram resgatados três trabalhadores que moravam em condições precárias e não sabiam ao certo desde quando estavam ali ou quanto recebiam de salário. O fumo produzido na fazenda era comprado pela subsidiária brasileira da multinacional americana Universal Leaf.

Em 2019, se tornou público o caso da Fazenda Cedro II, no Triângulo Mineiro. Ali, auditores fiscais encontraram trabalhadores que eram submetidos a jornadas que chegavam a 17 horas por dia e eram alojados em condições consideradas degradantes. O endereço era o produtor do café da marca Fazenda Cedro.

Produção de roupas e empregadas domésticas

Também há exemplos urbanos de trabalho análogo à escravidão. Em 2019, veio à tona o caso da marca de roupas Animale, que em três endereços da região metropolitana de São Paulo mantinha imigrantes bolivianos confinados em condições precárias, submetidos a jornadas de trabalho de mais de 12 horas por dia e em ambiente sob risco de incêndio.

Foi incluída ainda na chamada “lista suja” a empresa Work Global Brasil, que usa comercialmente o nome fantasia de Global Talent. Em 2018, a firma foi condenada pela Justiça do Trabalho por tráfico de pessoas para exploração de trabalho e omissão em caso de trabalho escravo. De acordo com a decisão judicial, 70 imigrantes filipinas agenciadas pela empresa para trabalhos como babás e domésticas foram submetidas a condições análogas à de escravos. Há relatos de longas jornadas de trabalho de até 16 horas por dia e de mulheres que se alimentaram de ração para cães.

Em 2020, a notícia de uma idosa de 61 anos que foi resgatada em condições de trabalho escravo em uma casa em Alto de Pinheiros, bairro nobre de São Paulo, comoveu o país. Contratada como empregada doméstica, ela estaria sem receber salários desde 2011, não tinha férias nem 13°, e vinha sendo submetida a uma rotina de maus-tratos, agressões, tortura psicológica e violência. Quando os policiais chegaram à residência para cumprir o mandado de busca e apreensão solicitado pelo Ministério Público do Trabalho — que havia acolhido a denúncia —, encontraram a vítima alojada em um depósito no quintal, dormindo em um sofá velho e sem acesso a banheiro.

No ano passado, o Tribunal Superior do Trabalho manteve uma família de São Paulo condenada a pagar indenização de R$ 1 milhão a uma empregada doméstica que foi submetida, ao longo de 29 anos, a condições degradantes de trabalho. A vítima teria sido levada de Curitiba para a capital paulista aos 7 anos, com a promessa de ser integrada à família que lhe daria “um futuro melhor”. Acabou sendo privada de brincar e de estudar e, desde a infância, obrigada a desempenhar tarefas domésticas. Ela dormia em um colchão na área de serviço.

Segundo depoimento da trabalhadora, ela só passou a ter registro como empregada doméstica aos 18 anos, mas de seu salário eram descontados todos os produtos que ela consumia na casa. Ainda de acordo com sua denúncia, ela vivia trancafiada.

O que diz a lei

Conforme o Código Penal, o trabalho análogo à escravidão é caracterizado pela submissão de alguém a trabalho forçado ou a jornadas exaustivas, sujeição a condições degradantes ou restrição do ir e vir em razão da dívida com o empregador, por meio da retenção dos documentos do trabalhador ou cerceamento do uso de meios de transporte, por exemplo. Também é passível de punição quem mantém vigilância ostensiva no local de trabalho.

O crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo prevê uma pena de reclusão de dois a oitos anos e multa. A pena aumenta se o trabalhador explorado for criança ou adolescente, se o crime tiver motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, muitas vezes o trabalho análogo à escravidão também envolve o tráfico de pessoas. São quando aliciadores, “denominados ‘gatos’, geralmente fazem propostas de trabalho para pessoas desenvolverem atividades laborais na agricultura ou pecuária, na construção civil ou em oficinas de costura”, diz texto publicado pelo órgão. “Há casos notórios de imigrantes peruanos, bolivianos e paraguaios aliciados para trabalho análogo ao de escravo em confecções de São Paulo”, exemplifica.

Para o crime de tráfico de pessoas, o Código Penal também prevê pena de reclusão de quatro a oito anos e multa.

Dados do Ministério Público do Trabalho divulgados em julho contabilizam pelo menos 57 mil trabalhadores brasileiros resgatados de condições análogas à escravidão desde 1995.

Bolsonaro defendeu empresas flagradas com trabalho escravo em seu governo

Durante os quatro anos, Jair Bolsonaro (PL) defendeu empresários responsabilizados por trabalho análogo ao de escravo, atacou equipes de fiscalização que resgatavam pessoas e ameaçou revogar a principal lei aprovada nos últimos anos para combater esse crime. Há registros de declarações em 2019, 2020, 2021 e 2022. O então presidente chegou a questionar “quem tem coragem de investir num país como esse daqui?” por conta da legislação de combate à escravidão.

O tema ganhou visibilidade na última semana com os 207 resgatados na cadeia da produção do vinho de empresas como Aurora, Garibaldi e Salton e as com as manifestações racistas, xenófobas e preconceituosas dadas por políticos, como o vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel, e empresários, como o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves.

Em especial, Bolsonaro travou uma cruzada contra a emenda constitucional 81, lei que prevê o confisco de propriedades condenadas por esse crime e sua destinação à reforma agrária e ao uso habitacional urbano. A chamada PEC do Trabalho Escravo, considerada pelas Nações Unidas uma das mais importantes leis de combate à escravidão em todo o mundo, foi promulgada em 2014 após 19 anos de pressão da sociedade civil. E, desde então, espera regulamentação.

Chamando a caracterização por trabalho escravo de “possível erro da função do trabalho”, Bolsonaro questionou em 30 de julho de 2019:

“De acordo com quem vai autuar ou não aquele possível erro da função do trabalho, a pessoa vai responder por trabalho escravo. E aí, se for condenado, dada a confusão que existe na Constituição no meu entender, o elemento perde sua propriedade”, afirmou. “Esse cidadão vai perder a fazenda. Vão ele, netos e bisnetos para a rua, se não for para a cadeia. Quem tem coragem de investir num país como esse daqui?”

Na mesma ocasião, ele repetiu uma justificativa que, segundo a Inspeção do Trabalho, é mentirosa e usada por flagrados pelo crime: de que os fiscais caracterizam escravidão contemporânea através de autuações leves como colchão fino, falta de ventilação e roupa de cama rasgada.

No resgate dos 207 em Bento Gonçalves, os trabalhadores eram vítimas de choques elétricos, spray de pimenta e espancamentos com cassetetes, também eram alvo de vigilância armada em um alojamento que cheirava a urina e a fezes, estavam submetidos a jornadas que iam das 4h às 21h e trabalhavam para quitar dívidas.

Bolsonaro tentou amenizar casos usando justificativa de escravagistas

Em 12 de novembro de 2020, voltou a atacar a emenda 81, dizendo que quando deputado federal, votou contra a proposta. O que era mentira: os registros da Câmara apontam que ele votou a favor no primeiro turno, em 11 de agosto de 2004, e estava ausente no segundo turno em 22 de maio de 2012.

Também aproveitou para confundir a população sobre o tema, afirmando que a fiscalização configurava o crime quando há “alojamento mal ventilado, roupa de cama suja e afastamento não regulamentar entre uma cama e outra”. Queria fazer crer que irregularidades trabalhistas configurariam trabalho análogo ao de escravo, ignorando o pacote de autuações graves, como cerceamento de liberdade, servidão por dívida, falta de banheiros, alojamentos em condições sub-humanas que caracterizam o crime.

Bolsonaro aproveitou o Primeiro de Maio de 2021, Dia dos Trabalhadores, para prometer buscar a revogação da emenda 81.

“Quando o momento se fizer oportuno, melhor, juntamente com a [então ministra da Agricultura] Tereza Cristina, que está do meu lado aqui, nós devemos sim rever a emenda constitucional 81, de 2014. Nós precisamos alterar isso que foi feito em 2014, tornando vulnerável a questão da propriedade privada”, afirmou em um pronunciamento, em vídeo, na 86ª edição da Expozebu, em Uberaba (MG).

E, em 7 de dezembro do mesmo ano, ele aproveitou um evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), para criticar a fiscalização na produção da carnaúba no Ceará e o combate ao trabalho escravo.

Detalhe: naquele momento, a última inspeção a condições de trabalho escravo na carnaúba cearense havia resgatado nove pessoas alojados entre porcos e fezes de animais e humanas. “Não havia condições mínimas de vivência naquele lugar”, afirmou Daniel Arêa Barreto, que coordenou a fiscalização no município de Granja (CE).

Trabalhadores alojados com porcos e fezes de animais e de gente

Os trabalhadores cozinhavam com um fogareiro em meio aos dejetos e lixo acumulado. Não havia energia ou instalações sanitárias. Quando a água disponibilizada acabava, eles tinham que caminhar três quilômetros até um poço.

“Há pouco, um telefonema do interior do Ceará. Um cabra que ligou para alguém lá da Presidência, passou o telefone para mim. ‘Acabei de ser multado aqui, eu estava com meu pessoal colhendo folha de carnaúba, que serve para cera, entre outras coisas. Chegou o MP do Trabalho e largou meia dúzia de multas em cima de mim”, disse Bolsonaro.

“Multou por quê? Porque não tenho banheiro químico. Eu tô a 45ºC a temperatura aqui e obviamente não tenho banheiro químico. O cara vai deixar de colher a folha ali, andar 500 metros, fazer um xixi e voltar? Meteram a caneta no cara. Também uma mesinha feita de forma rústica, com madeira da região, para servir o almoço. Não estava adequada aquela mesa. Também a questão do dormitório, o pessoal dormia em uma barraca. Multa em cima dele.”

Mais uma vez, o presidente tentou aliviar para os lados dos empregadores flagrados, levando a crer que irregularidades trabalhistas mais simples configuraram trabalho análogo ao de escravo e podem levar ao confisco da fazenda – interpretação que não encontra respaldo na lei.

O Ministério do Trabalho informou à coluna que a falta de um banheiro químico ou de uma mesa de refeições adequada não configura esse crime, mas um pacote de infrações gravíssimas sim, como as encontradas em Bento Gonçalves.

Já em outubro de 2022, após sucessivos cortes no orçamento da fiscalização trabalhista, não havia mais verbas garantidas para equipes do Ministério do Trabalho apurarem denúncias de trabalho escravo em locais como Minas Gerais. A falta de recursos afetou principalmente as operações de campo, em especial no âmbito rural.

Com isso, denúncias recebidas já não estavam sendo verificadas pelos servidores. Em um dos casos, cerca de 35 trabalhadores que atuavam na colheita de alho estariam tendo seus direitos violados pelo empregador. O relato “traz elementos que apontam para trabalho escravo”, diz, mas não havia verbas para mobilizar uma equipe até o local e checar as informações.

Bolsonaro não quis assinar compromisso contra a escravidão

Em reuniões ao longo de outubro, a ordem expressa era para que fossem cortados os gastos com diárias de viagens, combustível, manutenção de veículos. “Estão paralisadas todas as operações de inspeção do trabalho que dependem de viagens”, resumiu, na época, um auditor-fiscal em condição de anonimato na época. A informação foi confirmada por outros dois servidores.

Com a denúncia tornada pública, acabaram sendo garantidos. Minas Gerais é um dos estados que mais realizam fiscalizações trabalhistas e vem sendo o recordista em resgates de trabalhadores, segundo dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT).

Nas eleições do ano passado, os candidatos Lula, Ciro Gomes, Simone Tebet, Soraya Thronicke, Vera Lúcia, José Maria Eymael e Léo Péricles aderiram à Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo, afirmando que estabeleciam como prioridade o combate a esse crime, caso fossem eleitos.

O documento é elaborado por 16 entidades que organizam o compromisso desde 2006, entre elas associações de magistrados, de procuradores e de auditores fiscais, confederações de trabalhadores, a Comissão Pastoral da Terra, a Repórter Brasil e a Organização Internacional do Trabalho.

Bolsonaro não quis assinar.


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