04/05/2024 - Edição 540

Especial

A AMAZÔNIA É NOSSA?

Um terço da região é dominada por facções criminosas, nacionais e estrangeiras

Publicado em 01/12/2023 1:42 - Herculano Barreto Filho e Fabíola Perez (UOL), Catarina Duarte (Ponte) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Em guerra por território na Amazônia Legal, as duas principais facções em atuação no país avançam sobre 94% das cidades sob o domínio do crime organizado na região. Mais de 8 milhões de pessoas vivem nessas áreas, indica estudo divulgado hoje pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O estudo “Cartografias da Violência na Amazônia” verificou a presença do PCC (Primeiro Comando da Capital) e do CV (Comando Vermelho) em 168 dos 178 municípios sob o domínio de facções na região. Ou seja: 23% das 772 cidades da Amazônia Legal registram presença desses grupos.

O CV, facção do Rio de Janeiro, está presente em 58 delas — o equivalente a um terço dos municípios sob domínio do crime organizado na mesma área. Já o PCC, organização criminosa paulista, controla 28 municípios.

De acordo com o levantamento, 8,3 milhões de pessoas moram em áreas onde há guerras por território entre facções rivais. É o equivalente a um terço da população da Amazônia Legal — e mais do que a população da cidade do Rio de Janeiro (6,2 milhões).

Ao todo, há 22 diferentes grupos criminosos nos nove estados que compõem a Amazônia Legal — incluindo facções colombianas e venezuelanas. O território compreende Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão.

PCC e CV disputam território em mais de 40 cidades. Apesar de não ser hegemônica, a facção paulista tem maior capilaridade internacional — já chegou a outros países da Amazônia.

“O Comando Vermelho ainda domina a área. Mas a facção paulista está presente em pelo menos cinco dos nove países que compõem a Amazônia”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Mais violência e semelhança com milícia

O estudo indica que o PCC e o CV na Amazônia têm características mais violentas e se assemelham às milícias, explorando até mesmo moradores em conjuntos habitacionais. As facções do Sudeste avançaram na região devido ao contato entre presos cumprindo pena nas unidades dos estados amazônicos.

Um dos motivos do avanço dessas facções para a Amazônia Legal foi a alteração da rota do tráfico após a morte do narcotraficante Jorge Rafaat, assassinado a tiros no Paraguai em junho de 2016. “Esse avanço está relacionado à presença de locais estratégicos ligados à rota do tráfico da tríplice fronteira para o Brasil”, diz Aiala Couto, um dos responsáveis pelo estudo.

“O acordo de paz com as Farcs [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], a crise econômica na Venezuela e a morte do Rafaat são três eventos considerados marcos para alterar a dinâmica do crime organizado no Brasil”, afirma Rodrigo Chagas, membro do FBSP e professor na UFRR.

PCC e CV não atuam nos estados da Amazônia Legal da mesma forma como atuavam nos estados em que nasceram — São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. As facções passaram a ampliar o repertório criminoso para a exploração ilegal da madeira, ouro e grilagem de terra.

O relatório aponta que a taxa de pessoas privadas de liberdade na Amazônia Legal cresceu 67,3% em dez anos, enquanto a média nacional foi de 43,3% de aumento. A passagem de pessoas ligadas às facções pelo sistema prisional dos estados foi determinante para a ampliação da atividade desses grupos.

O PCC e o CV da Amazônia têm outra dinâmica de criminalidade, com mais violência e aposta no enfrentamento para disputar território. Essas facções também têm estrutura de milícia, com controle de mercado, cobrança de taxa a comerciantes e exploração de moradores em conjuntos habitacionais.

Impacto sobre outros crimes

A presença das facções criminosas na Amazônia Legal impacta em outras dinâmicas criminais. “O PCC domina outras modalidades do crime na região, como o garimpo, e são nesses espaços que a disputa ocorre”, afirma Lima, diretor-presidente do fórum.

O estudo apontou ainda que a taxa média de violência letal na Amazônia foi 45% superior à média nacional. “As mortes estão vinculadas a diferentes causas: na região norte do país, há maior presença de jovens, o crime se associa à dinâmica ambiental e às capacidades institucionais do Estado limitadas e focadas em respostas militares.”

A Amazônia Legal é uma região historicamente violenta, mas, desde 2016, o cenário alcança outro patamar. “Com a morte do Rafaat, o Comando Vermelho precisou refazer a logística e expandir a atuação para o Norte”, diz Lima. “Com outras facções menores orbitando na região, com o tráfico de drogas, de animais e de seres humanos, o crime organizado encontra condições para o domínio territorial armado.”

O crime organizado mudou a ocupação do território amazônico nos últimos anos. “A exploração ocorria de fora para dentro, os seringueiros chegavam, extraíam e deixavam a região. O crime organizado ocupa os territórios e se insere nas atividades locais.”

“Não é possível pensar o desenvolvimento da região com uma estrutura insuficiente. Não é possível garantir segurança ambiental se não se pune quem destrói o meio ambiente ou quem assassina lideranças indígenas e locais”, afirma Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum.

‘Guerra silenciosa’

A expansão do PCC pelo território da Amazônia Legal tem produzido uma “guerra silenciosa”, segundo familiares de integrantes da facção. “Tudo é novidade, as relações entre os grupos estão se estabelecendo”, afirma Chagas, membro do fórum e professor da Universidade Federal de Roraima.

Nos últimos sete anos, os grupos locais se reorganizaram para fazer frente à presença das facções do Sudeste. “Grupos como FDN (Família do Norte), no Pará, ou A Maioria, em Roraima, tentaram enfrentar o PCC. Já o CV atua a partir de parcerias locais.”

Há ao menos cinco facções internacionais que entraram no território — dois grupos colombianos formados por ex-guerrilheiros das Farc, duas facções venezuelanas e uma organização boliviana. “Elas têm interagido a partir do mercado do crime. Mas não existem indícios de radicalização político-ideológica.”

A expansão do PCC nesses territórios traz também uma influência simbólica. “Há relatos de crianças em biqueiras [pontos de comércio de drogas] assistindo os depoimentos do Marcola [apontado como líder da facção]. Temos visto pichações em banheiros de escolas”, afirma Chagas. “Esses grupos oferecem uma espécie de carreira no crime.”

“Estamos muito preocupados com os territórios indígenas. Os indígenas têm relatado que grupos de narcotraficantes são mais violentos do que de garimpeiros porque tendem a cooptar os indígenas com metralhadoras e fuzis”, diz Rodrigo Chagas, membro do FBSP e professor da UFRR.

Facções de quatro países vizinhos travam disputa por território

Integrantes de ao menos dez facções de quatro países vizinhos cruzaram a fronteira para travar disputas por território na Amazônia Legal, indica o estudo divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Essas facções estrangeiras estão no Acre, Amazônia, Maranhão e Roraima, indica o levantamento. Os grupos venezuelanos, por exemplo, disputam território com facções brasileiras em Boa Vista, com população de mais de 410 mil moradores.

O estudo aponta que há quatro grupos de ex-guerrilheiros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) concentrados no Amazonas. Eles estão na mira das autoridades colombianas, brasileiras e norte-americanas por suspeita de dominar uma rota pelo rio para negociar com PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho), as duas principais facções brasileiras.

Mensagem vazada aponta que o CV tem a função de “recuperar rotas no Amazonas”. São e-mails do Ministério Público da Colômbia, que indicam que os grupos estrangeiros cruzam a fronteira de barco pelo rio Vaupés e seguem pelo Rio Negro, no Amazonas.

Já o PCC é citado como aliado de narcotraficantes no sul da Colômbia e disputa território com o CV, cita o documento.

Esses dados fazem parte do “Narco Files: a nova ordem do crime”, investigação jornalística transfronteiriça. O projeto foi liderado pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) em parceria com o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP).

O que dizem os pesquisadores

“Diante da dificuldade de levar a droga para os Estados Unidos ou países da Europa, as facções de outros países entraram na Amazônia para negociar com o mercado brasileiro. Esse avanço também está relacionado à presença de locais estratégicos da rota do tráfico. Entre esses grupos, há ex-guerrilheiros colombianos das Farc, peruanos, venezuelanos e bolivianos”, afirma Aiala Couto, pesquisador Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Os ex-guerrilheiros das Farc usam lanchas frequentemente para traficar drogas da Colômbia pelo Rio Negro. Esses grupos também costumam extorquir garimpeiros no Brasil”, reforça Bram Ebus, coordenador de Investigação de Amazon Underworld e consultor do International Crisis Group.

Facções venezuelanas dominam Roraima

O estudo mostra que organizações criminosas venezuelanas atuam, principalmente, em cidades de Roraima. Com presença hegemônica do PCC, o estado tem importância estratégica para o tráfico de drogas por fazer fronteira com a Venezuela e estar próximo da Colômbia.

Pacaraima (norte de RR, na fronteira com a Venezuela) é disputada por PCC, CV e pelo grupo venezuelano Trem de Aragua, segundo o relatório do Fórum. Conforme investigações do promotor de Justiça Felipe Hellu Macedo, outro grupo internacional atua no território, o Sindicato do Crime.

A facção venezuelana Sindicato do Crime tem presença nas dinâmicas criminais da cidade. Segundo o promotor, uma investigação prendeu cinco líderes da facção venezuelana em 2019. As sentenças foram proferidas em 2022. “Nesse processo não havia nenhum brasileiro envolvido”, informou.

Há elementos que sugerem ligação do Sindicato do Crime com o PCC, apesar de não haver registros oficiais nas investigações. Isso porque a presença hegemônica da facção paulista no estado e a ausência de registros de mortes violentas indicariam a inexistência de uma disputa acirrada entre as facções.

Em Pacaraima, o Sindicato do Crime teria participações em crimes patrimoniais e no tráfico de drogas e armas. “Têm ocorrido muitos furtos e roubos, mas não é possível saber se todos têm relação com a atuação das facções criminosas”, diz o promotor Hellu.

A atuação de facções venezuelanas em Pacaraima também está relacionada às rotas de fuga existentes. “É mais fácil de fugirem por rotas lícitas e ilícitas em regiões de fronteira”, afirma o promotor de Justiça.

Violência extrema em Boa Vista

As facções venezuelanas Trem de Aragua, Trem de Guayana e Sindicato do Crime estão presentes em Boa Vista. A informação consta no estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Hellu relata que os “tribunais do crime” (julgamentos realizados pelo PCC) ocorrem “nos mesmos moldes” que a facção paulista organiza os “rituais” em São Paulo. A diferença, segundo ele, é a violência extrema utilizada — nesses rituais, costumam ser arrancadas partes do corpo de pessoas em débito com as facções.

O promotor de Justiça Carlos Alberto Melotto informa que não foi acionado para investigações envolvendo facções venezuelanas em Roraima. “Sabemos que há venezuelanos em situações criminais, fazemos audiências com eles, mas não há elementos que demonstrem a presença de facções venezuelanas no estado até o momento.”

Em agosto de 2020, o Ministério Público de RR denunciou 19 pessoas de origem venezuelana batizadas pelo PCC. As fichas de batismo foram obtidas a partir de anotações encontradas na PAMC (Penitenciária Agrícola de Monte Cristo). A operação foi a primeira a vincular o PCC a venezuelanos no estado, de acordo com o promotor.

Há presença de venezuelanos atuando no comércio de drogas em bairros da capital roraimense. Segundo Melotto, eles se filiam ou são batizados pelo PCC e passam a atuar como “soldados” nas ruas.

Facções peruanas e bolivianas no país

O Clã-Chuquizuta atua em Tabatinga (AM), na fronteira com o país vizinho. O grupo é oriundo de Santa Rosa de Yavari (Peru), na zona da tríplice fronteira. O Comando de Las Fronteras, outra facção peruana, está presente na Colômbia e em Loreto (MA).

A facção Los Quispe-Palamino está na fronteira entre o Peru e o Acre. Também foram identificados grupos próximos aos rios Negro e Solimões, uma das principais rotas usadas pelo tráfico.

A pesquisa também identificou a presença de pequenos grupos bolivianos em Plácido de Castro (AC). O maior deles é o Clã Dourado, na fronteira entre Acre e Rondônia.

Foto: Susipe/Divulgação

Encarceramento em massa na Amazônia legal fortaleceu crime organizado, aponta FBSP

Na Amazônia Legal, o crime cresce quanto mais gente o Estado prende. Essa é uma das conclusões da pesquisa Cartografias da Violência na Amazônia, lançada na quinta-feira (29) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O estudo aponta que a taxa de mortes violentas nos estados que compõem a Amazônia Legal — categoria que corresponde a 52% do território brasileiro, incluindo Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão — superou em 45% a média nacional no ano passado.

Os dados da pesquisa apontam que, enquanto no Brasil a taxa de mortes violentas intencionais a cada 100 mil habitantes foi de 23,3 mortes em 2022, na Amazônia Legal a média foi de 33,8 por 100 mil habitantes. Em cidades tidas como “urbanas” pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de mortes violentas intencionais foi 52% superior à média nacional, atingindo 35,1 mortes para cada 100 mil pessoas.

E não foi por falta de repressão do Estado: o encarceramento em massa aumentou 67,3% na região nos últimos dez anos, enquanto a taxa nacional foi de 43,3% de aumento.

E não é que a violência aconteceu apesar das prisões, mas o contrário. O encarceramento em massa ajudou a fortalecer o crime organizado, a partir da chegada de facções criminosas nascidas no Sudeste. Para a pesquisadora Betina Barros, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a consolidação das facções criminosas na Amazônia Legal está diretamente ligada às dinâmicas de funcionamento do sistema prisional. Ela explica que, ao prender cada vez mais, o Estado fornece mais “soldados” às facções.

“Quando o Estado aumenta a taxa prisional, coloca mais gente para dentro das prisões, em um sistema superlotado, sem as condições mínimas de atendimento, muitas vezes, obrigando os presos a terem que realizar essas alianças para poderem sobreviver dentro do sistema prisional de uma forma um pouco mais digna, ele acaba colocando esses soldados para dentro do sistema”, explica a pesquisadora.

Ao saírem do cárcere, os que lá dentro se aliam aos grupos criminosos seguem ligados aos interesses das facções. “Quando os presos retornam à rua, porque todos vão retornar em algum momento, eles precisam, em alguma medida, pagar o que foi oferecido e vão fazer isso a partir da aliança e da atuação com as facções já no ambiente da rua. É um sistema que funciona para as organizações criminosas, que impacta no aumento da violência e que parece ser algo ainda pouco discutido, ou pelo menos não se vislumbra muito como acabar com esse ciclo vicioso”, fala Betina.

Explosão de encarceramento

O estudo aponta que a população privada de liberdade na Amazônia Legal (incluindo os regimes fechado, semiaberto, aberto e em prisão domiciliar) passou de 54.542 pessoas em 2010 para 98.034 em 2022. Em 2012, a taxa era de 210,9 pessoas privadas de liberdade por 100 mil habitantes na Amazônia. Já no país o valor era de 286,1. No último ano, a média na região chegou a 352,8, enquanto no Brasil subiu para 406,9.

O levantamento mapeou a atuação de 22 facções, presentes em todos os estados da Amazônia Legal. A área de fronteira com países vizinhos é a mais disputada pelos grupos, mas eles se espalham pelas cidades. Dos 772 municípios da região, 178 possuem facções atuantes e é nestes locais onde vivem 57,9% da população dos nove estados.

Dentro do sistema prisional, a presença das facções também é evidenciada nos massacres nos presídios. Em Manaus, no Amazonas, 56 pessoas foram mortas dentro do complexo Penitenciário Anísio Jobim, conhecido como Compaj, em 2017.

Massacres também ocorreram em Boa Vista, capital de Roraima, no mesmo 2017 — 33 pessoas foram mortas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo — e em Altamira, no Pará, em 2019, quando mais de 50 vítimas morreram no Centro de Recuperação Regional de Altamira.

Atuação incorreta do Estado

Há outro elemento crucial para entender a violência que avança de forma descontrolada. Há na região falta de investigação, peças-chave para o esclarecimento de crimes e redução da impunidade.

Nos estados da Amazônia Legal, o levantamento mapeou 1.249 delegacias da Polícia Civil, sendo 946 não especializadas e 303 especializadas. Estados como Roraima e Acre têm 53 e 39 delegacias, respectivamente.

Em toda a região, que compreende mais de 5 milhões de km² do território brasileiro, apenas 53 delegacias tem como objetivo investigar a violência letal ou o tráfico de drogas.

“Está tudo favorável para que esses espaços sejam tomados ou sejam geridos pelas organizações criminosas, na medida em que não tem um Estado e tem ali uma série de riquezas disponíveis, desde as riquezas ambientais, os recursos naturais, que são de alto valor, desde a própria consolidação dessas rotas de tráfico de drogas, que também tem um valor logístico muito importante para as organizações criminosas”, diz a pesquisadora Betina Barros.


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