18/05/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Material digital de Tarcísio não deveria estar nas escolas’, diz entidade

Governo paulista insiste que a crise do material didático com graves erros foi ‘superada’ e que problemas eram ‘pontuais’

Publicado em 12/09/2023 8:35 - Jamil Chade – UOL

Divulgação Reprodução

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O material digital do estado de São Paulo não deveria estar nas salas de aula. Quem faz o alerta é Maria Cecilia Condeixa, presidente da Abrale (Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos).

Na semana passada, o governo de Tarcísio de Freitas insistiu que a crise aberta diante da revelação do UOL de que o material didático de sua administração trazia erros foi “superada” e que tais problemas eram apenas “pontuais”. A afirmação foi de Felício Ramuth, vice-governador de São Paulo, que estava em Milão.

“É uma questão superada em relação aos materiais didáticos”, disse, que insistiu que os erros eram “pontuais”.

Entre os problemas identificados no material estão afirmações de que a capital de São Paulo tem praia, e que Dom Pedro 2º assinou a Lei Áurea — e não sua filha, a princesa Isabel. Erros de português em diversos trechos do material e outros problemas considerados como graves foram também identificados.

Após reportagem do UOL revelar o caso, a Secretaria de Educação informou ter revisado “mais de 25 mil páginas” de conteúdos de “diferentes disciplinas”. De acordo com o governo, a Coped (Coordenadoria Pedagógica) montou uma força-tarefa para reavaliar todo o conteúdo do terceiro bimestre do ano. O governo ainda exonerou o coordenador pedagógico da Secretaria Estadual da Educação do estado, Renato Dias.

A situação colocou pressão sobre o secretário de Educação, Renato Feder, que chegou a defender que o material digital fosse o único utilizado pelas escolas e, em seguida, acabou desistindo da ideia.

Para a associação, porém, os erros não são pontuais e a estratégia do governo representa um retrocesso que “aumentará as desigualdades na sociedade brasileira e não contribuirá para a formação de pessoas preparadas para um mundo científico tecnológico em constante transformação”.

O resultado de seu levantamento acaba de ser publicado no site da entidade.

 

Chade – Na semana passada, o vice-governador de São Paulo afirmou que a crise envolvendo os erros no “material digital” já foi superada. O que dizem os autores de livros educativos?

Maria Cecilia Condeixa – A Associação Brasileira de Autores de Livros Educativos, a Abrale, tem dois objetivos: defender a dignidade dos autores e contribuir para o desenvolvimento educacional e cultural do Brasil. Nesse sentido, não há conflitos de interesse em nossa análise crítica do material digital do estado de São Paulo. Trabalhamos em prol de nossos objetivos e não por interesse de um grupo econômico, o que não somos ou representamos.

Somos educadores defendendo a qualidade da educação básica e a Lei de diretrizes e bases da educação nacional, a LDBEN 9394 DE 1996.

Nós, autores de livros didáticos do Programa Nacional do Livro e do Material didático, o PNLD, estamos acostumados com leituras críticas. Elas nos ajudam a compor nossos livros. Aliás, eles são “dois em um”, porque a cada livro do aluno corresponde um livro do professor, contendo explicação da metodologia utilizada e os comentários das atividades.

Aos livros aprovados é vedado apresentar erros de conceitos, de informações, de edição e de metodologia. Os erros reprovam os livros. Igualmente reprovada no PNLD é a contradição entre a metodologia que a obra propõe e sua pedagogia, de fato apresentada no livro do aluno, que deve estar em consonância com a Base Nacional Comum Curricular. Por esses critérios, o “material digital” do estado de São Paulo não deveria estar nas salas de aula.

Por qual motivo não deveria estar?

Um material que não sofreu avaliação externa não está pronto para chegar à sala de aula. Esse é o caso do “material digital” da Seduc (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo), analisado de modo amostral, conforme relatamos no documento “Análise crítica do material do estado de São Paulo” que observa e critica um conjunto de aulas (slides) de 6º ano. Não se trata de análise pontual interessada em levantar anedotas para o grande público.

Portanto, consideramos infundado o que o vice-governador disse na matéria publicada pelo UOL.

Quais pontos continuam pendentes?

O vice-governador insiste que o “objetivo (da política educacional) continua o mesmo, que é criar uma metodologia para que as escolas tenham aulas padronizadas e, ainda assim, respeitando a individualidade do professor que pode acrescentar materiais nas aulas fornecidas”. “Na nossa opinião, é um bom caminho, com o apoio dos materiais didáticos, respeitando currículo paulista e base nacional”. Mas as afirmações são infundadas porque a padronização de aulas se transforma em camisa de força para professores, sujeitados a seguir a sequência de aulas, com tempo marcado para cada uma e suas respectivas etapas.

É virtualmente impossível ao professor modificar a proposta do “material digital” sem perder o andamento esperado e cobrado pela Seduc. Essa e qualquer outra metodologia padronizada contraria frontalmente a LDB, que defende a liberdade de ideias e métodos no ato de ensinar.

A formação de professores deveria estar a serviço de ampliar o repertório pedagógico dos professores, não a estreitá-lo, dificultando aos docentes dar aulas adequadas a diferentes turmas e estudantes, que diferem mesmo em uma só escola.

Quais outros pontos a senhora destacaria?

Em cada disciplina analisada — História, Ciências, Geografia, Matemática, Arte e Língua Portuguesa — o material da Seduc desrespeita a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). As causas são inúmeras. Mas eu destacaria o desrespeito à arte popular, desvalorização das ciências da natureza e sua história, falta de incentivo ao desenvolvimento do raciocínio matemático ou geográfico, desvalorização da História como forma de entender o momento presente, desprestígio na formação da cidadania, pela ausência de debates orientados, de contextos e textos reais que habilitam o estudante a conhecer o mundo real.

A senhora concorda com a avaliação do vice-governador de que os erros encontrados são “pontuais”?

Nosso relatório mostra com detalhes que os erros não são pontuais. Isso porque encontramos infinidade de problemas de informação, de conceitos e de edição do material — inclusive cópias da internet e texto em língua estrangeira —, entre outros. Ao concluir a leitura de uma amostra — um mês de aulas de 6º Ano —, recomendamos a revisão de todo o material.

Parece-nos pensamento mágico imaginar que 25 mil páginas possam ser revistas em duas semanas, visando acertar os textos já colocados. Mas isso não bastaria para atingir os critérios nacionais de qualidade.

A revisão não consertaria problemas estruturais devido a contradições entre o “material digital” e a Base Nacional. Nesse sentido, o material não poderia apenas ser revisado, pois os problemas são estruturais.

O governo ainda insiste que “a digitalização é um caminho sem volta”. Como vocês avaliam isso, na educação?

O tema da digitalização foi bastante debatido e já está claro que o material digital deve ser um complemento do material impresso, que é imprescindível a situações de aprendizagem. Mas de qual digitalização trata o vice-governador?

Do modo idealizado pela Seduc de Renato Feder, o material digital é tão somente apoio para aulas expositivas padronizadas. Diferentemente de jovens e adultos, maduros e motivados — como quem frequenta um cursinho pré-vestibular —, as crianças e os adolescentes, em geral, pouco ou nada se desenvolvem intelectualmente assistindo uma exposição baseada em slides que passam na TV. Constitui erro grave confundir o modo de aprender de diferentes faixas etárias e desestimular a aprendizagem significativa. A sala de aula da escola pública não é um cursinho.

Para a escola pública é um retrocesso voltar aos métodos expositivos hegemônicos há mais de cem anos, apoiado ou não em slides, quando as legislações nacionais — as diretrizes e as bases curriculares — preconizam que é papel da educação pública ou privada mobilizar os valores e a cultura que estudantes já detêm, tendo em vista propiciar aquisições estéticas, éticas e cognitivas, dirigidas à formação da cidadania democrática.

Esse retrocesso aumentará as desigualdades na sociedade brasileira e não contribuirá para a formação de pessoas preparadas para um mundo científico tecnológico em constante transformação.


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