18/05/2024 - Edição 540

Entrevista

Entrevista: Paulo Ângelo de Souza – membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Marçal de Souza

Publicado em 09/05/2014 12:00 -

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O Centro de Defesa da Cidadania e dos Direitos Humanos Marçal de Souza Tupã-i (CDDH) foi criado em Campo Grande (MS) no dia 15 de março de 1987 com o objetivo de promover a defesa dos direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais em âmbito estadual e nacional. Ao longo destes 30 anos o CDDH tem atuado diligentemente neste objetivo, realizando ações que lhe garantiram, em 2011, o Prêmio Direitos Humanos, a mais alta condecoração do Governo Brasileiro a pessoas e entidades que se destacaram na defesa, na promoção e no enfrentamento e combate às violações dos Direitos Humanos no país. Para falar sobre a atual situação da militância pelos direitos humanos no Brasil, entrevistamos Paulo Ângelo de Souza, ex-presidente e atual representante do CDDH no Conselho Estadual dos Direitos Humanos.

 

Por Victor Barone

Como está a militância pelos direitos humanos no Brasil?

A partir da constituição de 88 até uns nove anos atrás havia uma militância aguerrida. Depois disso houve uma diminuição da militância. Surgiram outras demandas, e também ameaças que afastam as pessoas.

Que ameaças?

Houve um histórico de violência contra militantes dos direitos humanos pelo Brasil afora, com mortes trágicas e bárbaras. Em Mato Grosso do Sul tivemos alguns casos, como o assassinato de Ortiz Lopez, morto com cinco tiros na frente das duas filhas. Isso afastou as pessoas. Eu mesmo fui vítima de ameaças de morte quando liderei um movimento contra a corrupção no Estado. Até hoje faço parte de um grupo de ativistas sob ameaça e que são monitorados pelo Governo Federal.

A defesa dos direitos humanos não deveria ser uma luta de ativistas, mas de toda a sociedade. O cidadão comum se preocupa com esta questão ou passa ao largo de seus interesses imediatos?

Trabalhamos por uma política nacional de educação e direitos humanos. Há um senso comum por parte da sociedade, especialmente entre os setores mais conservadores, de que os militantes dos direitos humanos defendem bandidos. Não é verdade. Os militantes dos direitos humanos defendem os direitos humanos de todos.

O senso comum afirma que os militantes dos direitos humanos defendem bandidos. Não é verdade. Defendemos os direitos humanos de todos.

Mas não é comum, por exemplo, que entidades de defesa dos direitos humanos se manifestem em casos de assassinatos de policiais…

Recentemente houve um policial que reagiu a um assalto em uma lotérica e foi assassinado. Representantes do CDDH, da OAB, da Comissão da Verdade, da Comissão de Justiça e Paz da igreja católica foram à sede da Associação de Cabos e Soldados levar nossa solidariedade.

Mas esta não é a regra…

Não é a regra, pois, ao longo dos anos, estimulou-se uma separação, um distanciamento que não é bom para ninguém. Esta visita que fizemos à Associação reforçou nos policiais a necessidade de criação de uma Comissão de Direitos Humanos interna. Foi um grande avanço. Sempre defendemos a tese de que uma disciplina de direitos humanos deveria constar da academia de policia. Hoje isso existe. Houve avanços, mas o Mato Grosso do Sul é um dos estados mais conservadores do país, não temos uma cultura da paz, da defesa dos direitos humanos. O poder público tende a ficar do lado do mais forte.

De que forma?

Em 2010 cerca de 500 carroceiros foram proibidos de trabalhar em Campo Grande, mas não se criou alternativas para eles. Nos procuraram no CDDH e nós os acompanhamos em uma caminhada rumo a Prefeitura. Lá, foram recebidos por camburões. Os flanelinhas, em 2008, protagonizaram outro caso. Um imenso aparato da Polícia Militar desceu a Avenida Afonso prendendo quem vendia nos sinais, flanelinhas, artistas de rua, até um senhor que se vestia de palhaço. Foram todos levados de camburão para a Cepol, na Ceará, tiveram mercadorias apreendidas, foram fichados e abandonados por lá sem dinheiro para voltar ao centro. Ou seja, não há politica clara de fortalecimento dos direitos humanos. O que há é uma politica repressiva e cartorial. As políticas são constituídas para proteger a propriedade.

O Mato Grosso do Sul é um dos estados mais conservadores do país, não temos uma cultura da paz, da defesa dos direitos humanos.

Mas a propriedade não deve ser protegida?

É preciso criar alternativas. A polícia age para retirar quem invadiu imóveis da Prefeitura, cobertos de mato há 20 anos. Famílias ocupam estes locais fugindo do aluguel caro, na perspectiva de uma moradia digna. O aparato estatal repressor retira as famílias dali. Se aquela área era destinada a uma praça, a um posto de saúde, que se faça um termo de compromisso com aquelas pessoas para que elas permaneçam ali até que a obra seja iniciada. As políticas públicas do estado nunca possibilitaram uma inclusão social efetiva. As legislações são criadas para evitar a luta social por mais direitos, para punir quem quer fazer seus direitos humanos e sociais valerem.

É possível fazer militância de direitos humanos sem ideologizar a questão?

Acho que é possível fazer a defesa dos direitos humanos sob o ponto de vista da construção cidadã.

A questão da habitação em Mato Grosso do Sul é grave.

Sim, o direito à habitação está na Constituição. É o principal problema de direitos humanos em Campo Grande. Temos gente com inscrição na Emha (Agência Municipal de Habitação) há 15 anos e que ainda não conseguiu sua casa. É preciso uma política de critérios justos e transparentes. Uma lista pública, onde qualquer cidadão possa acompanhar a fila. Outra questão é relativa aos moradores de rua, não há uma politica para eles. A politica é de escondê-los no Cetremi (Centro de Triagem e Encaminhamento ao Migrante) quando é necessário.

O morador de rua não perde seus direitos, não deixa de ser cidadão. É preciso que se aceite a ideia de que o outro exista da forma que quer existir.

Mas o morador de rua também não quer sair da rua…

É uma decisão pessoal. Mas, mesmo morando na rua ele não perde seus direitos, não deixa de ser cidadão. É preciso que se aceite a ideia de que o outro exista da forma que quer existir.

A questão dos artesãos que atuam nas ruas cai nesta questão.

Sim. Dezembro passado a Prefeitura de Campo Grande colocou a polícia e a Guarda Municipal para retirá-los da Praça Ary Coelho. Apreenderam mercadorias, algemaram, levaram de camburão. É claro que eles se exaltaram quando a polícia e a guarda desceram a borracha. Este público transitório tem o direito de existir, assim como os ciganos, etc. Não podem ser tratados como bandidos. Fomos para a Semadur (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano) falar com o então secretário (Edmar Luis Marcon). Ele não quis nos receber. Tivemos que invadir a sala para mostrar a ele que o poder público tem que respeitar a todos. Era um cara despreparado para atender a este publico, sem noção de direitos humanos.

As pessoas têm que conviver e respeitar as diferenças e a cidadania dos demais. Por outro lado há uma fatia da sociedade que optou pela criminalidade e que ameaça a fatia maior, que optou por viver dentro da lei e está exposta a todo o tipo de violência.

É uma situação difícil. O cidadão que trabalha, que tem sua família, que sabe que no Brasil a resolução de homicídios é de 6 a 8%, pensa: “O sujeito está aprontando tudo isso e não vai pagar pelo que fez”. O Brasil não resolveu a lei de execução penal. O menino com até 13 anos incompletos que cometeu algum ato infracional fica sob a responsabilidade do município, que deve aplicar medidas sócio-educativas. Acima dos 13 anos a responsabilidade é do Estado, via Uneis (Unidade Educacional de Internação). Nem os municípios e nem os Estados fazem a sua parte. Estes meninos crescem sem medidas sócio-educativas. Temos quatro Conselhos Tutelares em Campo Grande, uma cidade com 800 mil habitantes. O sistema carcerário não funciona. Ou seja: todo sistema é falho. O Estado como um todo falha nesta missão. É preciso uma reforma geral.

Se o cidadão hoje apoia o justiçamento é porque o Estado falhou antes, não lhe dando uma educação de qualidade, condições básicas de cidadania.

A questão dos justiçamentos começa aí.

Sim. O cidadão de bem vê as falhas do Estado e pensa: “Poxa, o bandido nunca vai pagar pelos seus crimes”. Daí surge uma tendência, especialmente entre grupos conservadores, de reproduzir o discurso de que bandido bom é bandido morto e da justiça pelas próprias mãos. Temos visto exemplos disso por todo o País. Este caso recente, da dona de casa do Paraná, é mais um neste sentido. Estes casos acabam se replicando sob outras formas. Teremos dificuldades para lidar com isso. Primeiro porque a consolidação de uma política de educação e direitos humanos leva tempo, depende da formação de cidadãos conscientes. Se o cidadão hoje tem esta mentalidade é porque o Estado falhou antes, não lhe dando uma educação de qualidade, condições básicas de cidadania.

Há uma descrença na capacidade do Estado em garantir a segurança do cidadão e em aplicar a punição a quem infringe a lei.

Sim. Quando as pessoas deixam de acreditar no aparato estatal, com toda a sua teia de conselhos, de operadores de segurança pública, abrimos margem para os justiçamentos.

Ouça a entrevista na íntegra.


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