17/05/2024 - Edição 540

Re-existir na diferença

Os corpos matáveis

O projeto liberal-fascista para o povo Yanomami

Publicado em 28/01/2023 7:43 - Túlio Batista Franco

Divulgação

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“Isso [pensar o futuro] implica responsabilidade, em não negociar mais nada, em não aceitar os termos que o capitalismo impõe: de sermos uma sociedade da mercadoria e pronto.” (Ailton Krenak).

 

Nesta semana o Brasil e o mundo viram estarrecidos os corpos famélicos que habitam o território Yanomami, em Roraima. Desnutrição grave associada a outras doenças abraçou parte significativa da população indígena em todas as faixas etárias, mas crianças e idosos são os mais atingidos. O nome para designar este povo, “yanomami”, foi produzido pelos antropólogos a partir da palavra yanõmami que, na expressão yanõmami thëpë, significa “seres humanos”.

Para o governo brasileiro de característica liberal-fascista, apesar do nome Yanomami, “seres humanos” é uma expressão que não se aplica aos povos originários. Arrisco dizer que eles adotam a versão radical do neoliberalismo, que qualifica o corpo como um “capital humano”, e como tal ele é monetarizável, ou seja, se atribui um valor aos corpos. O “capital humano” é calculado com base na sua origem social, padrão de consumo, renda, formação escolar, cor, gênero, etnia, etc… A sociedade financista se firma sobre estes conceitos econômicos, e se consolida ao produzir um novo protagonista social, o “sujeito da concorrência”. Foucault foi profético no seu curso no Collège de France em 1978, “O Nascimento da Biopolítica”, ao dar visibilidade à genealogia do neoliberalismo, falando sobre estas questões.

O “sujeito da concorrência” se institui na base da sociedade apostando em um vigoroso processo de subjetivação liberal-fascista na versão brasileira, que tem como instrumentos a linguagem direta e metafórica popular, mídias de fácil consumo abastecidas por “Fake News”, produção do inimigo e do medo.  A subjetividade capitalística constitui a base populacional para instaurar o fascismo, não só como regime, mas, “uma vida fascista”, com valores, pensamentos, ações, que se instituem na multidão, entre nós.

O grande Xamã Yanomami Davi Kopenawa chama de “o povo da mercadoria” as pessoas que só enxergam nas florestas os insumos que são precificáveis, reduzindo sua dimensão cosmológica, existencial, e significância na sustentação do mundo, para os que habitam a terra. A queima e destruição das florestas são como nas palavras do Xamã, a “queda do céu”, ou, para melhor entendermos, o fim do mundo. O pensamento liberal-fascista de tão obtuso e precário, é incapaz de se aproximar desta formulação. Para eles os corpos, “capital humano”, são mercadoria, e no caso dos Yanomami, assim como inumeráveis povos e grupos sociais, que não organizam sua vida centrada na acumulação, essas vidas têm valor próximo a zero, portanto, dispensáveis, elimináveis, matáveis.

É com este pensamento que o governo liberal-fascista no Brasil pensou a política para os Yanomami, ou seja, sua eliminação facilitaria o almejado objetivo de apossar das suas terras, e explorar o ouro presente no seu subsolo, a custa das vidas humanas, silvestres, enfim, a destruição do bioma amazônico na região. O abandono é uma forma de homicídio, em se tratando de um povo, é genocídio. Então, a inanição e doença do povo Yanomami foi um projeto de extermínio, que ceifou a vida de 570 crianças, dados subnotificados segundo indigenistas, assim como centenas de adultos foram mortos, debilitados, impedidos que estiveram de realizar as atividades corriqueiras de plantio, caça e pesca. Agrava este quadro o fato de que os rios estão contaminados por mercúrio, o que aumenta o interminável ciclo de sofrimento, doença e morte.

Toda trágica experiência atual dos Yanomami, a que o mundo assiste horrorizado, tem sua origem e fundamento no neoliberalismo, irmão siamês do fascismo. A resolução definitiva que leve paz e tranquilidade aos indígenas, vai ser conquistada quando a possiblidade de um governo autocrático e liberal for definitivamente descartada no Brasil, e estamos longe disto ainda. Este deve ser o objetivo dos esforços atuais de reconstrução do país, que é fundamentalmente a reconstrução de um povo. Isto começa por abrir à possibilidade de protagonismo das comunidades, povos, grupos, e todos movimentos que se colocam no cenário das políticas sociais, mas não apenas, econômicas, estruturais, enfim, a vida da nação não deve estar apartada das pessoas, mas, associadas a elas.

Reverter o quadro destrutivo a que se chegou no Brasil, é fundamental abrir para novas experiências que aparecem como pedagogias, no melhor estilo freiriano: _ aprender fazendo, lutando, esperançando, sempre no gerúndio, porque é um acontecendo, permanente e ilimitado no tempo. Assim, seria possível promover uma ruptura com o pensamento e subjetividade liberal. Construir deste os pequenos atos do cotidiano, até as macropolíticas, o antídoto ao “sujeito liberal da concorrência”, que passa pela produção do “sujeito solidário”, formado com base na ideia de comunidade, produção do comum. Sobre isto temos muito a aprender com as comunidades dos povos originários, os Yanomami podem ser nossos mestres, precisamos apenas ficar atentos a eles. Reconhecer que eles são os guardiões da nossa casa, que a floresta amazônica só existe porque eles estão lá. As cicatrizes dos corpos fragilizados das cenas que assistimos sobre os Yanomami, sangram também a nossa alma, e precisa no mínimo servir como um poderoso dispositivo de aprendizado para a necessária e radical mudança do país e seu povo.

Maricá, 27.1.2023

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